terça-feira, 3 de maio de 2022

AS DUAS VIDAS DE CLARICE LISPECTOR

Imagem: Luísa Vasconcelos

Escrito por Italo Moriconi 

Devorei por nacos e por inteiro as biografias de Clarice Lispector porque já era devorador ruminante de suas obras literárias. E ler suas biografias, ou capítulos delas, sempre me devolveu à leitura, à releitura da obra original. Sim, você sabe disso – o texto de Clarice cresce na releitura. Como nos contam suas biografias, ela ficou feliz quando se deu conta disso, num momento em que andava assaltada pelo medo de ser banalizada como autora de autoajuda.

Na última etapa de sua vida, no período em que ela mesmo chamou de sua “hora do lixo”, por ocasião do lançamento de A via-crúcis do corpo, de 1974, Clarice gostava de dizer que se orgulhava de não ter feito concessões. Seu texto dirigia-se a leitores ruminantes, carnívoros e herbívoros. Leitores em busca do caroço úmido da matéria viva, como em A paixão segundo G.H., como em Água viva, os livros dela que mais prezo, além dos contos de Laços de família, que considero um exemplo de perfeição literária no sentido moderno clássico.[nota 1]

Não sou o único que incorporou a biografia à experiência Clarice. O signo Clarice Lispector já não remete apenas à sua obra ficcional. Trata-se de um signo que se refere a uma vidaobra. A nuvem do biográfico a envolve, impossível fugir dela.* Impossível ao leitor fugir dela, pois já suas obras ficcionais que devorávamos e redevoramos são escritas bio, são “bioescritas”, para evocar a expressão da crítica e professora Ana Chiara.[nota 2] “Eu quero ser bio”, escreve a narradora em Água viva.

São histórias que pensam por dentro as vidas sendo vividas de seus/suas protagonistas. É saber consolidado que na literatura de Clarice o fato (o enredo) é por assim dizer envelopado por sua repercussão na intimidade de personagens e narradores. Nos textos da “hora do lixo” é que vão aparecer figuras que são pura exterioridade, como a Macabéa de A hora da estrela. Na verdade, a hora do lixo é hora de muito luxo, mas um outro tipo de luxo, o luxo da criação enraizado na carência de novos recursos, sintonizado com o momento pós-moderno da história recente da literatura.

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Na cultura literária, autores podem se tornar personagens tão vivos quanto as figuras ficcionais que criaram. Se a curiosidade pelas biografias de artistas já é muito forte entre os aficionados de pintura, de música, etc., que dirá da tribo letrada. Escritores tornam-se mitos, tornam-se casos, tornam-se pivôs de constelações históricas da vida literária. Criar esses mitos, reconstituir essas constelações, é o trabalho reservado às biografias. Nos últimos anos, além do crescimento no número de biografias de escritores do tipo tradicional, multiplicaram-se também as biografias ficcionais, em que escritores reais são personagens e/ou narradores em enredos inventados.

Uma biografia de escritor será tanto melhor quando conseguir delinear seu/sua personagem enquanto tal, numa operação propriamente romanesca: identificar o que seria seu drama de vida e ensaiar relacioná-lo ao impulso propriamente autoral, às estratégias de escrita adotadas. Entra ai o risco da interpretação. É preciso ter ousadia interpretativa para extrair da nuvem biográfica uma biografia-livro, no sentido elementar de narrativa de uma vida desde o nascimento até a morte. Na nuvem biográfica de Clarice, quem vai mais longe nesse tipo de empreitada é Benjamin Moser, beneficiando-se do grande acúmulo de informações produzidas pelo ciclópico trabalho arquivístico e depoimental de Teresa Montero assim como pela incontornável biografia escrita por Nádia Batella Gotlib.

Moser coloca dois elementos cruciais para buscar desvendar o chamado “mistério de Clarice”. Por um lado, o trauma causado pela culpa que nunca deixou de sentir por ter acompanhado impotente a doença da mãe até perdê-la aos 9 anos de idade. Por outro, a angústia (mas também a ironia e a autoironia) pelo inalcançável do “nome oculto”, a palavra-chave do Sentido, uma estrutura de emoção e pensamento conforme com a tradição judaica herdada. Moser levanta uma hipótese ousada, um tanto sensacionalista, mas fundamentada com brio, de que a mãe de Clarice teria contraído sífilis ao ser violentada num pogrom em sua cidade natal na Ucrânia. Moser elabora ainda a dificuldade de Clarice equacionar, no nível de escrita, sua judeidade, fonte última do que ele vê como imbróglio identitário jamais resolvido. O nome oculto da obra e da vida só é revelado na lápide, quando Clarice já não pode mais alcançá-lo. Sobre a lápide, seu nome judaico: Chaia. A fala de Clarice, através de suas máscaras autoficcionais, é a fala de uma subjetividade subtraída, compensada pela opulência da linguagem, com seu rigor proliferante.

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O que chamei de momento pós-moderno na vidaobra de Clarice é o momento de um depois de algo grandioso. Depois do moderno. Depois do grande romance moderno, realista ou não. Refiro-me à percepção muito forte, no mundo da literatura, no período que vai de fins dos anos 1960 a fins dos anos 1970, de que o romance como gênero estava morto, de que já não tinha atrativo nem força intelectual. “Cada vez mais acho, como você, que romance não é literatura”, escreve para João Cabral. O que vem depois dessa percepção, dessa angústia, é desambicioso, é o momento em que a vontade literária, para sobreviver, retrai-se ao mínimo, reduz-se àquilo que lhe é mais básico, anterior mesmo à vontade de contar: a vontade de escrever. A vontade de pegar o lápis com a mão e grafar, inscrever uma verdade, uma presença.

O amor ao romance é substituído ou deslocado pelo interesse por diários, por cartas de escritores. A forma romanesca que sobrevive pertinente é a fragmentária, que Clarice adota em Água viva. Trata-se de um momento na linha do tempo literário. O fragmentarismo permanecerá, nas múltiplas formas de pós-modernismo nos anos 1980. Mas já nesses anos 1980 a forma canônica do romance moderno clássico opera seu retorno. Muito da sua pulsão motivadora será porém carreada para as biografias de escritores, como as que configuram a nuvem biográfica de Clarice.

O depois é também um grandioso depois na vida de Clarice. Conceber o romance como impossível vinha junto com a percepção do fim de um modo de vida, de um certo mundo. Por mais heterodoxas que fossem suas obras, Clarice Lispector construíra uma carreira de crescente consagração como autora de romances. Romances de alta qualidade intelectual, romances pensantes. No entanto, A paixão segundo G.H., de 1964, já representa uma inflexão, um descaminho para fora do gênero romance.

O apogeu da Clarice romancista coincidiu com o apogeu de sua vida burguesa. Quando escreveu G.H., já estava separada do marido, entregue à dura labuta de mãe de dois filhos e de profissional frila da imprensa. As fotos do tempo em que escrevia o anterior A maçã no escuro, obra em que foi mais longe na extensão e fôlego exigidos pelo modelo romance moderno, nos trazem uma Clarice esplendorosamente linda e chique, brilhando entre as mulheres com quem convivia nas festas diplomáticas.

Mas nos trazem também as fotos com Érico Veríssimo, apontando para o outro círculo social de que fazia parte, o Olimpo da literatura brasileira, sua inserção de pleno direito entre aqueles que se intuíam encarregados de levar à frente a construção de algo culturalmente importante para a língua brasileira e para o patrimônio universal. Clarice conviveu com as figuras que fizeram do século XX uma espécie de “siglo de oro”[nota 3] da literatura em língua brasileira. Até que vieram o incêndio em seu quarto, que prejudicou sua mão (em setembro de 1966) e o início de sua colaboração como cronista no Jornal do Brasil, que se estendeu de agosto de 1967 a janeiro de 1974. É nessa quadra que entra em cena a segunda vida de Clarice.

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Em sua segunda vida, como escritora que precisa, mas não quer ou não consegue dar continuidade à carreira de romancista, como mulher portadora de cicatrizes, Clarice Lispector torna-se uma autora de crônicas. Agora recolhidas em volume único, constituem um dos tesouros legados por nosso “século de ouro”. As crônicas são a ponta de um iceberg obsessivo, uma atividade constante e compulsiva de escrita, manifesta na infinidade das anotações que faz a todo momento e que espalha por todo o canto. É bem-sabido que esses escritos fragmentários eram utilizados indiscriminadamente em crônicas e no livros. Por serem crônicas, não há separação entre a pessoa da autora e aquilo que escreve. São textos de vida, entrelaçando pose literária, anotação do cotidiano e carta, pela interlocução com leitores. É a textualidade interativa do escritor-comunicador.

Na segunda vida, Clarice está sempre procurando alguém para organizar suas anotações, feito a cabra-cega do desejo de Ana C. Diferente da primeira vida, quando debatia com seus pares questões de técnica e estética literária. Seus últimos livros, A hora da estrela e Um sopro de vida (póstumo) foram organizados pela amiga que a acompanhou até a morte, Olga Borelli. Estruturar um romance saíra de seu horizonte, embora A hora da estrela chegue perto, entre romance e novela (pela linearidade unívoca). O livro relata o contraponto entre o fracasso de Macabéa como pessoa e o fracasso do narrador em compreender um drama de vida de outrem.

A interpelação que nos faz hoje a vidaobra de Clarice dirige-se àqueles e àquelas que optam por um caminho de trabalho com a escrita que assume a impossibilidade do romanção fechado num Sentido e a exigência de uma concentração por demais extensa no tempo. A escrita desambiciosa como atividade colada à vida. A compulsão gráfica da escrita, bilhete endereçado. Tática de enganar a morte, chamando-a para a briga.

Faço um paralelo com a situação de Roland Barthes, tal como abordada por Paloma Vidal quando discute a mais recente biografia sobre o escritor francês. O Barthes de A preparação do romance trabalha no diapasão da mesma impossibilidade. A leitura, o amor, o estudo profissional detalhado dos clássicos o sufoca. Ele enuncia no condicional o que seria escrever o seu romance, mas não o escreve. Trazendo para Clarice o que Paloma escreve sobre Barthes, talvez ela “não quisesse escrever um romance no sentido de terminar um romance, mas no sentido de se manter na escrita, de poder continuar na escrita”. E mais adiante: “não é uma pulsão negativa de não escrever, mas uma pulsão vital de não terminar.”[nota 4] Não escrever, escrevendo muito. Clarice não cessou de grafar bilhetes, mesmo em seu leito de morte.



NOTAS

*A nuvem biográfica (não exaustiva): a pioneira Uma vida que se conta, de Nádia Batella Gotlib (Ática, 1995) e a recém-lançada À procura da própria coisa, de Teresa Montero (Rocco, 2021), uma biografia-compilação que amplia para 700 páginas uma primeira versão com 300, intitulada Eu sou uma pergunta (Rocco, 1999). Entre elas, os impactos de Clarice: Fotobiografia, da mesma Nádia Gotlib (Edusp, 2008) e Clarice, do americano Benjamin Moser (Companhia das Letras, 2009), biografia endereçada ao público internacional. E mais Todas as crônicas, organizado por Pedro Karp Vasquez (Rocco, 2018), e Todas as cartas (Rocco, 2020).

[nota 1] Vale lembrar que a ideia de leitor/a ruminante vem de Machado de Assis.

[nota 2] Ana Chiara e outrxs, Bioescritas, biopoéticas (Porto Alegre: Sulina, 2017).

[nota 3] “Século de ouro”, expressão usada pela historiografia literária para referir-se a um período de grande florescimento da literatura espanhola, entre os séculos XVI e XVII.

[nota 4] Paloma Vidal, Não escrever. Cadernos com R.B. Em: Experimento aberto: Invenções no ensaio e na crítica (org. de Felipe Charbel, Ieda Magri e Rafael Gutierrez; Relicário Edições, 2021, p. 51-60).

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