por Ana Lidia Aguiar, Karina Quintanilha, Tiago Rangel Côrtes e Vera da Silva Telles
Em fevereiro de 2022, protestos de revolta irromperam nas principais capitais do Brasil em resposta ao brutal assassinato do trabalhador congolês Moïse Kabagambe. Esses atos revelam uma articulação latente e uma pauta urgente para os movimentos sociais
Moïse Kabagambe, de 24 anos, refugiado da guerra da República Democrática do Congo, trabalhava desde 2019 no quiosque Tropicália, um dentre centenas de outros que perfilam a orla marítima da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro. Trabalho precário, como os demais trabalhadores desses quiosques. Conforme reportagem da revista Piauí, doze horas por dia nas areias escaldantes da praia, sem proteção contra o sol, sob condições que obstam cuidados básicos – beber água, alimento, uso de banheiro. As câmeras de vigilância registraram: na noite de 24 de janeiro de 2022, Moïse foi espancado até a morte. Três homens e tacos de beisebol. Mesmo caído no chão e já imobilizado com técnicas de artes marciais, pauladas, socos e pontapés nas costas, no tórax, na cabeça. Moïse é amarrado em um dos pilares do quiosque, com cordas. As pauladas continuam. Já morto, deixam o corpo amarrado, largado na calçada. E as atividades do quiosque seguem normalmente. Um corpo negro martirizado e amarrado no poste: cena que evoca o martírio de corpos escravizados no pelourinho, uma história que se atualiza no nosso presente.
Familiares receberam a notícia apenas doze horas depois. Foram ao local saber o que havia acontecido. Mãe e irmãos confirmam: naquele dia Moïse iria cobrar duas diárias não pagas de trabalho, o equivalente a R$ 200. A cobrança foi o pivô do espancamento. E relatam: foram intimidados por forças policiais na cena do crime e em “visita” ao local de moradia – tentativa de fazê-los silenciar sobre o espancamento e morte de Moïse. As ameaças perduram meses após o ocorrido.[1] Familiares e amigos denunciaram um misto de omissão e negligência da Polícia Militar, da guarda civil metropolitana e do Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu), e também no atendimento à família no Instituto Médico Legal (IML).
Após muita pressão, quatro dias depois as imagens que captaram a violência circularam. Junto com os familiares, a comunidade congolesa organiza protestos em frente ao quiosque Tropicália. Depoimentos dramáticos dos parentes do jovem congolês viralizam nas redes sociais. Indignação, revolta e mobilizações se espalham. Multiplicam-se reportagens na grande imprensa e intervenções nas mídias digitais, dando ressonância aos atos de indignação – violência, racismo e discriminação contra migrantes e refugiados negros foram a tônica dominante.
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Em poucos dias, nas principais cidades do país, movimentos da negritude e de migrantes realizaram reuniões de articulação e organização do que veio a ser o ato #JustiçaPorMoïse. Marco histórico da pauta da migração, estes atos escancararam a realidade do racismo xenofóbico no Brasil. Para além da repercussão da violência praticada contra Moïse e da viralização da revolta nas redes sociais, o ineditismo dos atos foi a sua capilaridade e a capacidade organizativa dos próprios coletivos migrantes em aliança com movimentos sociais brasileiros. No dia dos atos, “caravanas de migrantes”, ônibus e mais ônibus traziam trabalhadores/as das periferias dispostos a se somar às manifestações. Em mais de vinte cidades do Brasil, também do exterior (Paris, Londres, Nova York, Luanda e outras), manifestantes ocuparam as ruas com cartazes que catalizavam as lutas por “Justiça Por Moïse”, “Vidas Imigrantes Negras Importam” e contra o genocídio negro, em referência às vidas negras exterminadas pelo Estado. E isso foi inédito: nos atos do dia 5 de fevereiro, principalmente nas cidades do Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, o lugar de destaque foi ocupado pelas falas e performances de dezenas de ativistas e artistas, em especial da comunidade africana, mas também de outras nacionalidades como bolivianos e haitianos. Esses migrantes, representando múltiplas associações e coletivos, que raramente têm visibilidade, mesmo nos espaços das lutas sociais, levaram para as ruas suas culturas e pautas específicas. Chamavam a atenção para a necessidade de políticas de enfrentamento contra o racismo e a xenofobia. E vocalizavam suas pautas de reivindicação – “Regularização Já”, “Direito ao Voto”, a revalidação de diplomas, políticas afirmativas, garantia de direitos previstos na Lei de Migração e no Estatuto dos Refugiados, e outras.
No dia 5 de fevereiro, a luta contra o apartheid à brasileira esteve estampada em diversas intervenções. A advogada congolesa Hortense Mbuyi, importante liderança da comunidade migrante em São Paulo, convidada a abrir o ato no Rio de Janeiro, do alto de um carro de som em frente ao quiosque Tropicália, convocou a multidão: “Até quando vão nos matar? (…) o racismo no Brasil está sendo misturado com a xenofobia (…) o racismo está vivo no Brasil, pedimos justiça por Moïse”.
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A rapidez e extensão dos protestos Brasil afora é algo que merece uma reflexão mais detida. E é precisamente isso que gostaríamos de enfatizar neste artigo. Não surgiram do nada, como uma explosão de momento movida pela indignação e protesto contra a crueldade e violência que se abateram sobre o jovem congolês. Há toda uma trama política multifacetada e heterogênea que vem sendo construída há anos – miríades de coletivos e suas redes de apoio, formas de associação e de articulação de migrantes e refugiados de nacionalidades diversas. Experiências partilhadas do viver em diáspora e das dificuldades e percalços da precária inserção dos migrantes transnacionais nas cidades brasileiras. Histórias e situações de violência e crueldade pontilham esses percursos e o cotidiano dessas populações, em que se entrelaçam as precárias condições de trabalho e moradia, inseguranças engendradas pelas dificuldades de documentação e garantias de permanência no país, ameaças de deportação e expulsão, tudo isso eivado por desconfianças e discriminações, racismo e situações de xenofobia que recaem sobretudo sobre os migrantes não brancos, latinos, indígenas e, sobretudo, os africanos negros.[2]
A morte de Moïse se soma a muitos outros casos de assassinatos de migrantes negros em situações crivadas pelo racismo xenofóbico. Situações e eventos de violência e crueldades contra esses migrantes estão tramadas no cotidiano da vida. Gustavo Assano, ao comentar o abominável do espancamento e morte do jovem congolês, enfatiza o solo histórico no qual se inscreve algo como uma espantosa e chocante familiaridade nessa “fúria e despudor para a crueldade” – eventos que se repetem ao longo de uma história de longa duração, que se multiplicam no tempo presente e compõem uma ordem das coisas na qual a violência aparece como elemento constitutivo das relações sociais, como desenlace de desavenças cotidianas. É nesse mesmo solo histórico que eventos de violência policial se repetem, como dispositivo de controle e governo da pobreza e seus territórios, tudo isso, para além do espetáculo de violência e crueldade exposto nas operações policiais e milicianas visíveis na cena brasileira, igualmente entranhado nos procedimentos e rotinas das forças da ordem, em seus modos de fazer a gestão das vidas e das mortes[3].
Mas também é preciso dizer que em torno desses eventos e dessas situações se estruturam práticas de resistência e protesto, e isso vem de longa data. Também entre populações migrantes, como nos lembra a pesquisa do congolês Bas’Ilele Malomalo sobre a mobilização política de migrantes africanos em São Paulo a partir do assassinato da angolana Zulmira em 2012 e o movimento “Mobilização Zulmira somos nós!”[4] É toda uma movimentação que, por vezes, como aconteceu em torno da morte de Moïse, se constelam em um campo de articulação envolvendo associações de migrantes, coletivos e movimentos negros, sindicatos, grupos de defesa dos direitos humanos e profusões de coletivos atuantes e suas redes de apoio, envolvendo advogados, defensores públicos, parlamentares comprometidos com causas populares, além de comunicadores/as e videomakers, conformando alianças políticas de perfis variados.
Eis o ponto que gostaríamos aqui de enfatizar: a violência é elemento constitutivo das relações sociais e da vida política deste país. Mas também se constitui um campo de conflito – eventos críticos de violência se configuram como campo de gravitação de uma conflitualidade que, também ela, faz parte da história brasileira.[5]
Importante lembrar: os migrantes transnacionais não estão confinados em supostos enclaves étnicos em nossas cidades. Assim como Moïse, estão presentes nos vários circuitos dos mercados informais e, no mais das vezes, compõem as franjas mais vulneráveis do comércio ambulante que, nestes tempos de pobreza e desemprego massivo, se expandem por todos os lados em nossas cidades. Presentes nos circuitos precários de serviços e comércios das cidades, compartilham com os brasileiros as condições de vida nas favelas, nas ocupações e nos bairros mais distantes. Portanto, esses eventos de violência e crueldade reverberam na vida urbana, entram em ressonância e interagem com tantos outros eventos, também de violência e crueldade, que afetam e compõem a experiência de multidões de despossuídos e precarizados pela lógica predatória e excludente dos mercados.
O fato é que a presença dos migrantes transnacionais nas cidades é algo incontornável. Desde o início dos anos 2000, com o endurecimento dos controles nas fronteiras dos países do Norte, o Brasil ganhou importância como destino de muitos desses deslocamentos diaspóricos que passaram a ser um traço predominante do cenário mundial. No correr dos anos, chegaram migrantes de origens variadas. A crise multidimensional que se acentua desde a crise global de 2007 – desemprego em massa, guerras, desastre ambiental, violências sistemáticas – provoca a migração de novos fluxos para o Brasil, a exemplo dos congoleses, malineses, sírios, haitianos, venezuelanos, bolivianos, e outros tantos que animam redes transnacionais de comércio, como angolanos, senegaleses e nigerianos. Essas populações que rumam em direção às cidades brasileiras em busca de novas oportunidades de vida encontraram aqui barreiras que tingem de cores sombrias ou mesmo sinistras a “boa fama” de um país hospitaleiro: exclusões e discriminações no acesso à moradia e ao trabalho; desamparo nas situações mais difíceis, sobretudo entre os que chegavam sem contar previamente com redes locais de apoio; dificuldades para regularização de documentos; inviabilidade para validação de diplomas, além da violência e, para os migrantes negros em sua maioria de origem africana e caribenha, o desconcerto frente às práticas de racismo que passaram a conhecer e experenciar em seus percursos brasileiros.
Em São Paulo, pudemos acompanhar, como citadinos e pesquisadores que somos, o quanto a vida urbana foi alterada pela presença migrante de várias nacionalidades no comércio, nos serviços e nos circuitos culturais da cidade. Além disso, há toda uma cartografia política que vem se constituindo ao longo dos anos. Multiplicaram-se associações e coletivos migrantes, grupos e redes de apoio em torno de igrejas localizadas em bairros periféricos ou dos centros de saúde (salve, os bravos agentes do SUS!) em vários pontos da cidade e centros de defesa dos direitos humanos espalhados periferias afora. Alguns desses coletivos se articulam na cidade de São Paulo por meio de associações fundadas e constituídas por migrantes, como é o caso da União Social dos Imigrantes Haitianos (USIH), da Associação de Mulheres Imigrantes Luz y Vida (AMILV), da Associação dos Congoleses pelo Brasil, da Associação da Comunidade da Guiné Bissau e da Comunidade Senegalesa. Há também organizações institucionalizadas, como é o caso da Pacto pelo Direito de Migrar – África do Coração (PDMIG), que recebe recursos do Acnur e de outras fontes para atuar junto aos migrantes, além de entidades filantrópicas mais antigas (Missão Paz, Cáritas, CAMI, CDHIC) e que há muitos anos operam como ponto de apoio e referência sobretudo para os recém-chegados.
Impossível neste artigo – tampouco é nosso objetivo – inventariar todos os coletivos, suas formas de ação e iniciativas junto às populações migrantes. Por ora, aqui nos interessa enfatizar a constituição de toda uma trama associativa, certamente heterogênea e muito diferenciada internamente, que responde a pautas específicas e por vezes localizada. É uma trama atravessada por uma rede informal de “vasos comunicantes” por onde as informações circulam, que fazem ecoar os eventos criticos de violência e discriminação de um ponto a outro da cidade e que tecem, no mesmo passo, a interface feita de convergências e alianças com outras institucionalidades e atores políticos para além do campo migratório e do refúgio.
É essa capilaridade das experiências migrantes que, de alguma forma, se constelou no Fórum Internacional Fontié Ki Kwaze (Fronteiras Cruzadas, em creole haitiano). A partir de uma iniciativa de pesquisadores da USP e Unicamp, estruturou-se uma extensa rede que articula pesquisadores e grupos de pesquisa, associações, ONGs, advogados e defensores de direitos humanos, coletivos negros e movimentos sociais. O Fronteiras Cruzadas conseguiu deslocar as fronteiras das universidades por meio de formas inovadoras de produção de conhecimento ao interagir e incorporar práticas, conhecimentos e saberes dos coletivos migrantes. Assim, por exemplo, contando com a participação ativa de migrantes e refugiados em diversos fóruns e locais de encontro, por meio de dispositivos de audiovisual e de produção artístico-cultural, tem sido possível construir ambientes de sensibilização e participação e, a partir desses lugares, gerar dados e informações mobilizados em redes articuladas em torno de campanhas em defesa dos direitos das populações migrantes.
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Voltemos à cena do protesto contra a morte de Moïse no Rio de Janeiro. A brutalidade do espancamento e morte do jovem congolês teria sido apenas mais um caso entre outras incontáveis histórias de violência e crueldade, na melhor das hipóteses uma pequena nota no noticiário local, não fosse a intensa e persistente mobilização dos seus familiares e da comunidade congolesa do Rio de Janeiro. Tão logo receberam a notícia, familiares e conterrâneos fecharam o trânsito na Barra da Tijuca para exigir informações sobre o que havia acontecido. Os familiares fizeram frente à intimidação da polícia, não recuaram e pressionaram por se fazerem representados nas imagens das câmeras de filmagem, na mídia. Assim que essas cenas vieram a público, protestos e mobilizações foram imediatos, e, quatro dias depois, a comunidade congolesa estava presente em massa na manifestação em frente ao quiosque em que o seu conterrâneo fora assassinado.
“Eu fugi do Congo para que eles não nos matassem. No entanto, eles mataram o meu filho aqui como matam em meu país. Mataram o meu filho a socos, pontapés. Mataram ele como um bicho”. Essa declaração de Ivana Lay, mãe de Moïse ao jornal O Globo, tão logo a notícia veio a público, pode ser tomada como fórmula sintética, quase uma pauta política pelo que se explicita nesse ato de brutalidade. Ivana Lay estabelece uma equivalência entre uma guerra que dizimou seus parentes, conhecidos e outros milhões de congoleses, e essa espécie de guerra social larvar ou aberta, própria da cena brasileira e que opera por agressivas práticas de racialização pelas quais o outro é jogado fora dos limiares da humanidade – “mataram ele como bicho”. Aqui, nesse ato e nessa fala, os pontos se articulam: entram em ressonância a violência que se abate sobre corpos negros, migrantes e não migrantes.
Logo que as imagens circularam, os coletivos e movimentos negros se mobilizaram para tomar as ruas em protesto, tecendo ao mesmo tempo proximidades e articulações com coletivos de migrantes africanos. E foi tudo tão rápido quanto eficaz. Assim, por exemplo, a extensão e densidade dos protestos simultâneos em várias cidades do país já naquele sábado, dia 5 de fevereiro, teve as marcas da notável capilaridade e capacidade de mobilização da Coalizão Negra por Direitos, uma ampla rede que articula mais de 250 grupos e coletivos dos movimentos negros, de perfis variados e envolvidos em torno de temas e questões diversas, locais e nacionais, sempre presente em atos públicos de protesto e manifestações contra políticas punitivistas, de morte e destruição do governo Bolsonaro.
Entre as várias faixas em riste na cena do protesto, “Vidas Imigrantes Negras Importam”. Mais do que uma faixa, este é o lema e pauta de uma rede de apoio à população migrante, formada em São Paulo dois anos antes por ocasião da morte violenta de um angolano em um bairro da periferia leste.
Em maio de 2020, já em plena pandemia e sob o impacto das exigências de confinamento como medida para contenção da circulação do coronavírus, João Manuel, angolano de 47 anos e frentista, foi morto a facadas por um vizinho em frente à sua casa em Itaquera. Segundo as testemunhas, minutos antes o vizinho brasileiro havia declarado: “vocês estrangeiros vem para cá para roubar nossos empregos. Vocês estrangeiros não deviam receber nada”. O discurso de ódio seguido do ataque físico ocorreu durante uma conversa entre João Manuel e dois amigos, também atingidos pelas facadas, sobre o auxílio emergencial do governo já em pauta no cenário brasileiro. Declaração de um dos amigos à reportagem do jornal O Globo: “Eu queria defender meu irmão. Foi racista, ele deixou claro que foi racismo, porque ele estava a falar queria matar meu irmão, mas dando risada, tipo como se fosse matar um animal”. Conforme a reportagem, esse migrante diz que se mudou do bairro com medo de represálias após a morte do colega. O processo criminal aguarda júri popular e o acusado está foragido da justiça. Na região onde os fatos ocorreram há uma presença expressiva de migrantes africanos, entre congoleses, angolanos e camaroneses. Denúncias de racismo e xenofobia são recorrentes, micro-histórias que mal chegam ao noticiário, mas que compõem o cotidiano da experiência desses migrantes no uso dos serviços públicos, nos ambientes de trabalho, nas ruas, nos transportes públicos. Tudo isso acirrado nos meses de pandemia.
Hortense Mbuyi, congolesa e advogada, na época também moradora do mesmo bairro, tomou a iniciativa. Ativista reconhecida e sempre presente em coletivos migrantes e movimentos contra o racismo e xenofobia, ela era, então, suplente no Conselho Municipal de Migrantes de São Paulo. Com seus parceiros do Fórum Fronteiras Cruzadas, do qual também participa, mobilizaram advogados, jornalistas, associações de migrantes, coletivos de negritude. Lançaram uma campanha de denúncia, de valorização da cultura negra e africana e apoio à família de João Manuel – principalmente em busca de reparação dos direitos trabalhistas e previdenciários por terem encontrado evidências de que o posto de gasolina havia retido a carteira de trabalho do migrante. O assassinato de João Manuel aconteceu na sequência da morte de George Floyd nos Estados Unidos. Demarcando a sintonia e ressonância com os amplos protestos e mobilizações dos movimentos negros norte-americanos, também em outros países, a rede de solidariedade que então estava se formando ganhou o lema e título “Vidas Imigrantes Negras Importam”, em referência evidente ao movimento “Black Lives Matter”. Um posicionamento claro e militante de articulação de pautas de movimentos negros e de migrantes. Em 2021, Hortense foi eleita presidenta do Conselho Municipal de Imigrantes de São Paulo. Como dito linhas atrás, esteve na linha de frente do ato de protesto contra a morte do jovem Moïse, no Rio de Janeiro.
No início de 2021, os “sensores críticos” dessa rede captaram o que havia de importante em um caso que poderia, em outras circunstâncias, se diluir entre tantas outras histórias de migrantes aprisionados. Apenas uma notícia menor em uma publicação voltada a públicos migrantes. Falilatou Sarouna, togolesa, com pouco domínio do português falado e nenhum do português escrito, trabalhava no comércio ambulante no Brás, bairro da região central da cidade. Como tantos outros migrantes, compõe as franjas mais precárias do comércio ambulante, com suas tendas modestas, vendendo produtos variados, rendimentos exíguos, tirados no dia a dia, expostos e vulneráveis às recorrentes ações arbitrárias dos fiscais da prefeitura e à violência policial nessas regiões. Na sua ausência, teve sua modestíssima casa, nas imediações, invadida e revirada. Na companhia de seu irmão, sempre ao seu lado para ajudá-la na lida com as complicações da vida cotidiana, Falilatou foi à delegacia de polícia para saber do ocorrido, talvez fazer um Boletim de Ocorrência. Saiu de lá presa. Havia um mandado de prisão: seu nome constava como titular de conta bancária que teria movimentado volumes milionários de dinheiro. No âmbito da Operação Anteros, uma mega investigação da Polícia Civil contra uma suposta quadrilha transnacional que aplica “estelionato emocional”, o caso da Falilatou figurou entre os duzentos mandados de prisão emitidos ao mesmo tempo em várias cidades do país. Ao que parece, assim como aconteceu com Falilatou, muitos outros migrantes tiveram seus nomes e identidades surrupiados para abrir e movimentar contas bancárias das quais jamais poderiam imaginar a existência. O processo criminal de Falilatou corre em Martinópolis, interior paulista, onde não existe sequer Defensoria Pública.
Agentes policiais e os juízes encarregados do caso pouco se importaram em considerar as contra-evidências de toda essa história. Além da pobreza e precariedade das condições de vida e trabalho de Falilatou, a assinatura que constava dos documentos bancários era escandalosamente diferente da dela. A peça de acusação, os meandros do julgamento, os argumentos técnico-jurídicos para justificar a prisão provisória da togolesa e seu prolongamento, a ausência de intérprete e/ou tradutor na delegacia, os obstáculos para acolher um habeas corpus, a recusa e demora para aceitar o pleito pela sua liberdade (direito de responder ao processo em liberdade), tudo isso valeria uma discussão à parte – exclusões, discriminações, racismo são operantes em meio à opacidade dos meandros por onde correm processos e os ritos que regem os vários momentos do julgamento. Essa discussão fica para um outro momento.
Quando a prisão de Falilatou veio a público, já corriam quatro meses em que estava presa. A mobilização das redes de apoio foi rápida e ganhou proporções notáveis: além dos advogados que se encarregaram da defesa jurídica, grupos de ativistas de direitos humanos, coletivos migrantes, coletivos negros, representantes de associações de trabalhadores ambulantes. Também coletivos anti-carcerários. Como se vê, uma composição que desenha campo de articulação de pautas diversas, defendidas por seus respectivos movimentos e coletivos, cujos repertórios e questões plasmadas em suas próprias experiências circulam e entram em ressonância uns com os outros. Em seu entrecruzamento, as linhas de força que atravessam os espaços de vida e trabalho de populações precarizadas, sujeitas à violência policial e à lógica punitivista que rege os dispositivos de “gestão da ordem”, tudo isso crivado por agressivas práticas de racialização e criminalização.
A participação ativa de assessores e representantes da bancada da deputada estadual Érica Malunguinho (Psol) foi também importante para dar ressonância pública à campanha pela liberdade de Falilatou, além de acionar recursos políticos e jurídicos próprios do legislativo para a campanha chegar a bom termo. Além disso, audiência pública sob a presidência do vereador Eduardo Suplicy (PT) conferiu mais força à pressão para que os juízes encarregados acolhessem o pleito pela liberdade da togolesa e se dispusessem a acelerar a superação dos supostos entraves técnico-jurídicos para essa decisão.
No dia de sua liberdade, à saída da prisão, Falilatou foi recebida por uma calorosa comissão formada por membros dessa rede de apoio. E a campanha continuou para mobilizar recursos de apoio financeiro à togolesa, também para viabilizar a vinda de seu filho, no Togo, para o Brasil – objetivo no qual Falilatou se empenhava há tempos, projeto ameaçado com a prisão e a suspensão dos rendimentos com os quais contava para ajudá-lo em seus país de origem.
A campanha pela liberdade de Falilatou ainda estava em andamento quando, em meados de 2021, chega a notícia de uma nova ordem de expulsão de Nduduzo Siba, sul-africana, multiartista bastante conhecida e reconhecida nos circuitos culturais da vida paulistana.[6] Agora, um segundo lance de uma campanha lançada anos antes – uma ampla rede de apoio para suspender uma ordem de expulsão emitida pelo Ministério da Justiça em 2017. Um embate jurídico também importante. A decisão mobilizava a categoria pessoa perigosa. E afrontava uma brecha da nova lei de migração (artigos 54 e 55 da Lei 13.445/2017) que prevê a expulsão salvo no caso de comprovação de efetiva integração no país (trabalho, moradia, família, redes de sociabilidade). Foi nas ambivalências nada ingênuas da interpretação da lei que essa ordem se apoiava. Nduduzo é uma “sobrevivente do cárcere”. Durante três anos e seis meses, ela compartilhou no presídio feminino o destino de muitas outras migrantes, negras e africanas em sua maioria, presas ao entrar no país acusadas de tráfico de drogas. Acusação e tipificação desmedidas, como bem sabemos, no caso desses migrantes, homens e mulheres, que tentam um lance de sorte para suas vidas precárias, esperanças de algum ganho ao transportar pequenas quantidades de droga em seus corpos e/ou bagagens. Presa e condenada, cumpriu a pena até obter o direito ao indulto – o perdão do restante da pena. Durante os anos de prisão, soube se conectar com as redes de apoio às mulheres encarceradas, sobretudo por via das atividades promovidas pelo projeto Voz Própria do Coral da USP e o ITTC (Instituto Terra, Trabalho e Cidadania). Ao sair da prisão, estava decidida a reconstruir sua vida no Brasil. E empenhou-se nisso. E foi assim que se fez conhecida e reconhecida nos circuitos culturais da cidade, fonte também dos rendimentos com os quais tratava (e trata) de garantir sua sobrevivência e dar seguimento a seus projetos pessoais. A campanha pela permanência de Nduduzo mobilizou coletivos negros, coletivos migrantes, coletivos pelo desencarceramento, redes de artistas, parlamentares e bancadas ativistas, advogados e defensores públicos, também pesquisadores e seus centros pesquisa. A rede Fronteiras Cruzadas foi (e é ) um espaço importante para dar ressonância e envergadura à campanha. Nduduzo é presença constante em todas as suas atividades. Advogados e defensores públicos se empenharam nos embates judiciais e conseguiram a suspensão da ordem de expulsão por meio de inédita sentença favorável. Agora, na segunda instância do tribunal, por decisão da 3ª Turma do TRF3, a ordem de expulsão foi reafirmada. No momento em que estas linhas estão sendo escritas, a expulsão pode acontecer a qualquer momento. Nduduzo segue na luta para seu direito à regularização migratória e permanência no Brasil. Redes de apoio e advogados continuam e persistem na campanha #NduduzoTemVoz e #NduduzoFica.
A voz de Nduduzo em depoimento que abre a “Carta Aberta ao Judiciário: contra expulsão de Nduduzo Siba do Brasil, pela defesa dos direitos garantidos pela Lei de Migração”:
“trata-se de uma luta contra o encarceramento em massa, em especial contra as condições degradantes que são impingidas às mulheres migrantes encarceradas, sobretudo às negras. (…) Este decreto de expulsão está me matando. Eu que quero renascer novamente. Eu quero viver aqui. Eu sei que tem quem queira me ouvir cantar. Tem quem queira me ver dançar. Tem quem queira me ver atuar nos palcos. Então eu quero viver. Quero ficar aqui”.
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Nas circunstâncias que singularizam cada um desses casos (e tantos outros…), temos as linhas de força que atravessam e configuram uma experiência partilhada: o trabalho precário, a violência, o punitivismo e políticas de encarceramento, tudo isso regido por práticas agressivas de racialização e que se desdobram no xenorracismo contra os corpos negros não brasileiros. Em torno de cada um, diagramas diferenciados de questões que esclarecem algo das formas pelas quais essas linhas de força se entrelaçam nas tramas sociais e fazem o cotidiano dessas “vidas precárias”, para mobilizar aqui o termo cunhado por Judith Butler.[7] Mas também em torno de cada um deles (e tantos outros…), um campo político de articulação que nos ajuda a bem situar o que esteve e está em jogo nas cenas de protesto contra o espancamento e morte do congolês Moïse e, reatando o fio da meada, a extensão e ressonância que esses protestos ganharam Brasil afora.
Em todas essas cenas de protesto podemos ver a força política dos “corpos em aliança”. Violência estatal e precariedade das vidas e formas de vida, dois eixos de uma experiência partilhada e que pode se desdobrar em esferas de articulação – nos termos de Butler, dos corpos em aliança. Esferas públicas de manifestação dos corpos afetados pela violência estatal e atravessados por uma condição comum de precariedade – precariedade politicamente induzida por dispositivos de despossessão que tendem a desfazer as redes de relações e de proteção das quais dependem as possibilidades de vida. Nas dimensões performáticas de suas formas públicas de aparecimento e protesto, diz a autora, está se colocando a vida passível de ser vivida do primeiro plano da política.
Isso não é de agora, bem sabemos. Mas agora é questão exposta no epicentro da vida política deste país. A lógica policial-miliciana própria da constelação de extrema-direita que tomou forma no governo Bolsonaro opera como uma espécie de caixa de ressonância dos “estados de violência”[8] que vêm se disseminando no tecido social. De um lado, a violência policial, que não é novidade na cena brasileira, recebe algo como um “salvo conduto” (na falta de um termo melhor) que confirma, autoriza, exacerba e generaliza a virulência de práticas violentas – e de extermínio – em territórios populares, favelas e periferias; de outro, e ao mesmo tempo, os micro fascismos surgem, se multiplicam e fazem seu trabalho de cupim, erodindo tramas de sociabilidade no mesmo passo em que a lógica miliciana avança e se fortalece em práticas de controle e extermínio de populações “indesejáveis”.
Neste texto, ao chamar a atenção para o campo de conflito e gravitação política em torno de eventos críticos de violência, não queremos exercer um bom-mocismo edificante e mostrar um “outro lado das coisas”. Reafirmando que já dissemos em artigo recente, a rigor não existe um outro lado das coisas. É um modo de perspectivar as questões postas no cenário atual – a guerra social em curso. E a defesa da vida como campo de batalha, como campo de conflito. Também como campo de experimentações políticas que se fazem ver nas micro práticas de resistência e formas de articulação que dão densidade e ressonância às cenas de conflito, como aconteceu nos atos de protesto contra a morte de Moïse Kabagambe. Ao lado das dimensões performáticas das cenas abertas de protesto, essas práticas constroem e se ancoram em tramas associativas que, sob formas variadas, fazem, refazem e reinventam redes de sociabilidade, de proteção, de cuidados e afetos, tudo isso que é duramente atingido pela operação de destruição em curso por essa simbiose entre a lógica policial e um neoliberalismo extremado em seu programa de um mundo sem mediações, o reino dos reino dos “indivíduos livres”.[9] Livres e armados! Pois é também nesses planos miúdos e cotidianos da vida social, que a defesa da vida e das possibilidades da vida está em questão. Também por esse lado, a importância politica de toda essa trama associativa que se faz ver em torno dessas manifestações e atos de protesto.
A defesa da vida e das possibilidades de vida é questão posta e exposta nesse campo multifacetado de conflitos e das tramas associativas nas quais estão ancoradas. No cenário atual de políticas de morte e destruição, corpos negros e indígenas em risco de vida sob práticas e programas genocidas, é a aposta que será preciso assumir. E foi com esse sentimento de urgência que este artigo foi escrito. Uma tentativa de chamar a atenção para a potência inscrita nas experimentações políticas em curso nas miríades de formas de protesto e articulação e que, como ocorreu no caso Moïse, podem entrar em ressonância e se constelar na cena pública, abrindo e descortinando fronteiras de ação. Brechas de possíveis que ativam, suscitam e renovam – esta também nossa aposta – a imaginação política. Nos meses e anos que temos pela frente, iremos precisar disso, e muito.
Ana Lídia Aguiar é doutoranda em Sociologia na USP, integra o Grupo de Pesquisa Cidade e Trabalho (PPGDS-USP) e o Fórum Fronteiras Cruzadas Fontié Ki Kwaze; é professora da rede estadual de ensino em SP.Karina Quintanilha é advogada e doutoranda em Sociologia na Unicamp, integra o grupo de pesquisa Metamorfoses do Mundo do Trabalho; é curadora do Fronteiras Cruzadas e colaboradora do Grupo de Pesquisa Cidade e Trabalho.Tiago Rangel Côrtes é doutorando em Sociologia na USP, integra o Grupo de Pesquisa Cidade e Trabalho e o Fórum Fronteiras Cruzadas e exerce trabalho de técnico no Dieese.Vera da Silva Telles é professora sênior do Departamento de Sociologia da USP, coordenadora do Grupo de Pesquisa Cidade e Trabalho, pesquisadora do Laboratório de Pesquisa Social (LAPS-USP) e colabora com o Fórum Fronteiras Cruzadas.*Este artigo é fruto de discussão conjunta e elaboração cooperativa de pesquisadores do Grupo de Pesquisa Cidade e Trabalho (PPGS-USP) e do Fórum Fronteiras Cruzadas (LAPS-USP e Metamorfoses do Mundo do Trabalho-Unicamp). Agradecemos à Hortense Mbuyi, Bianca Santana e Juliana Gonçalves pela disponibilidade de tempo para conversas e esclarecimentos de várias das questões tratadas neste texto. Estendemos os agradecimentos à Regina Lúcia dos Santos, do Movimento Negro Unificado (MNU) e à Witness por todo o apoio e reflexões partilhadas.Referências[1] Reportagem da CNN Brasil traz relato de amigos de Moise que tiveram que deixar o Brasil.[2] QUINTANILHA, K; PEREIRA, A. Deportação e trabalho escravo: governo e Exército tornam política migratória um desastre humanitário. The Intercept, 23 jul. 2021.[3] TELLES, V. A violência como forma de governo. Le Monde Diplomatique Brasil, jan. /2019.[4] MALOMALO, Bas’ilele. Mobilização política dos imigrantes africanos no Atlântico Sul pela conquista de direitos em São Paulo: o caso da morte da Zulmira em 2012. Revista Crítica Histórica. Ano VII, nº 13, jun. 2016.[5] Em outro contexto de discussão, porém em conexão com o que se está aqui tratando, essa é questão trabalhada em BRITO, J.M; GODOI, R; MALLART, F.; TELLES, V. Combatendo o encarceramento em massa, lutando pela vida. Cadernos CRH, v. 33, p. 1–16, 2020.[6] Para uma análise detalhada sobre a política de expulsão e os meandros da campanha contra a expulsão da artista Nduduzo Siba, ver QUINTANILHA, K. “Migração forçada no capitalismo contemporâneo: trabalho, direitos e resistências no Brasil”, dissertação de mestrado, PUC-SP, 2019.[7] BUTLER, J. Corpos em aliança e a política das ruas: notas para uma teoria performativa de assembleia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.[8]. GROS, F. États de violence: essai sur la fin de la guerre. Paris: Gallimard, 2006.[9] LESSA, Renato. “Homo bolsonarus. De como nasceu e se criou o confuso e perigoso animal artificial que encarna momentos arcaicos da sociabilidade brasileira”. Serrote, Edição Especial, julho de 2020.
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