Lynn Chadwick, O Peixinho, 1951.
Por GYÖRGY LUKÁCS*
A filosofia da história como parâmetro decisivo das táticas socialistas
Na ação política, a posição e o significado da tática diferem muito, em todos os partidos e classes, de acordo com a estrutura e o papel histórico-filosófico particular desses partidos e classes: se definirmos a tática como um meio para a realização dos objetivos escolhidos pelos grupos atuantes, como um elo entre o fim último (Endzweck)[i] e a realidade, produzem-se diferenças fundamentais, dependendo de o fim se encontrar categorizado como um momento que está dentro da realidade social dada ou além dela (que a transcende)[ii].
A imanência ou a transcendência do fim último contém, em seu interior, principalmente, a seguinte diferença: no primeiro caso (imanência)[iii], a ordem legal existente é dada como um princípio que determina, necessária e normativamente, o escopo tático da ação; por outro lado, no caso de um objetivo “social-transcendente” (gesellschaftlich-transzendenten), essa ordem se apresenta como sociedade pura, como poder real, e o fato de contar com ele, como tal, pode ter, no máximo, um sentido utilitário. Salientamos que se trata de um sentindo utilitário na melhor das hipóteses (besten Fall)[iv], uma vez que um objetivo tal como, por exemplo, o da restauração “legitimista” francesa – a saber: o reconhecimento, de qualquer modo, da ordem legal da revolução – já era equivalente a um compromisso.
No entanto, este exemplo mostra também que os vários objetivos transcendentes – no âmbito de uma sociologia totalmente abstrata e desprovida de quaisquer valores – devem ser colocados no mesmo nível. Se, porventura, a ordem social estabelecida como fim último já existiu no passado, se se tratava somente de restaurar um estágio de desenvolvimento já superado. Logo, o desconhecimento da ordem legal vigente é apenas uma aparente superação dos limites das ordens legais dadas, então uma ordem legal real se confronta com outra ordem legal real.
A continuidade do desenvolvimento não é rigorosamente contestada; o fim mais extremo consiste, então, apenas em anular um estágio intermediário (Zwischenstation). Noutra perspectiva, todo “objetivo” essencialmente revolucionário nega a razão de ser moral e a atualidade (ou seja, nega a legitimidade)[v] histórico-filosófica tanto das ordens legais vigentes quanto das passadas; para o referido “objetivo”, torna-se, portanto, exclusivamente tática a pergunta se essas ordens legais deverão ser levadas em consideração e, em caso de resposta afirmativa, em que medida haverá de fazê-lo.
Mas, tendo em vista que a tática se liberta, dessa forma, das limitações normativas da ordem legal, é preciso encontrar algum parâmetro novo capaz de regular a tomada de posição tática. Uma vez que o conceito de conveniência (Zweckdienlichkeit) é ambíguo, é necessário diferenciar, nesse sentido, se tal conceito compreende um objetivo atual, concreto, ou um fim último ainda mais afastado do terreno da realidade.
Para aquelas classes e partidos, cujo fim último já foi na realidade alcançado, a tática é regida, necessariamente, de acordo com a viabilidade dos objetivos atuais e concretos; para eles, aquele abismo que separa o objetivo atual do fim último, aqueles conflitos que surgem dessa dualidade, simplesmente não existem. Aqui a tática se manifesta sob a forma de Realpolitik legal, e não é nenhuma coincidência que, em tais casos (excepcionais)[vi] em que se apresenta um conflito desse gênero, como, por exemplo, em contexto de guerra, essas classes e partidos sigam a mais trivial e catastrófica Realpolitik; não podem proceder de outro modo, visto que o seu fim último atual só admite semelhante Realpolitik.
Este contraste é muito apropriado para ilustrar a tática das classes e dos partidos revolucionários; para eles, a tática não é regulada de acordo com vantagens momentâneas, praticáveis no presente, inclusive, devem rejeitar algumas vantagens dessa natureza, já que estas poderiam pôr em perigo o que é verdadeiramente importante, o fim último (o propósito final)[vii]. No entanto, posto que o fim último não é categorizado como utopia, mas, sim, como realidade que deve ser alcançada, a postulação do fim último não pode significar nenhuma abstração da realidade, nenhuma tentativa de impor sobre ela certas ideias, mas, sim, o conhecimento e a transformação prática daquelas forças que atuam no seio da realidade social; daquelas forças, pois, que conduzem à realização do fim último.
Sem esse conhecimento, a tática de qualquer classe ou partido revolucionário oscila sem orientação entre uma Realpolitik desprovida de ideias e uma ideologia sem conteúdo real. Esse conhecimento esteve ausente na luta revolucionária da classe burguesa. Também existiu ali, por certo, uma ideologia orientada para um fim último, porém, essa ideologia não pôde inserir-se organicamente na regulação da ação concreta; em vez disso, desenvolveu-se em grande parte no sentido da atualidade[viii], criou instituições que logo se converteram em fins em si mesmas (Selbstzweck), e, por isso, turvaram (Vernebelteen) o próprio fim último e se rebaixaram ao nível de uma ideologia pura e ineficaz (Ermiedrigten).
O significado sociológico singular do socialismo reside precisamente em ter encontrado uma solução para este problema, pois o fim último do socialismo é utópico na mesma medida em que, concomitantemente, ultrapassa as estruturas econômicas, legais e sociais da sociedade atual, e só pode ser alcançado através da destruição dessa sociedade; no entanto, não é utópico na medida em que o caminho para esse fim último implica uma realização (Absorbierung) de ideias que se aproximam e pairam, hesitantemente, além dos limites da sociedade ou acima dela.
A teoria marxista da luta de classes, que, neste aspecto, segue inteiramente (vollkommen) a obra conceitual hegeliana, converte o objetivo transcendente em imanente; a luta de classes do proletariado é o próprio objetivo e, ao mesmo tempo, a sua realização. Esse processo não é um meio cujo sentido e valor possam ser medidos seguindo o parâmetro de um fim que o excede, em verdade, representa uma nova forma de elucidação[ix] (Klarstellung) da sociedade utópica, passo a passo, salto a salto, de acordo com a lógica da história. Isso significa uma imersão na realidade social atual. Esse “meio” não é alheio ao “fim” (como foi o caso na realização da ideologia burguesa), mas uma aproximação do “fim” à autorrealização[x] (Selbstverwirklichung). Isso significa que entre os meios táticos e o fim último existem transições conceitualmente indetermináveis; jamais é possível saber, de antemão, qual passo tático já haverá de tornar realidade o próprio fim último em si.
Isso nos leva ao parâmetro decisivo das táticas socialistas: a filosofia da história (Geschichtsphilosophie). O fato da luta de classes nada mais é do que uma descrição sociológica e uma elevação dos acontecimentos à condição de legalidade[xi] que ocorre na realidade social; no entanto, a intenção da luta de classes do proletariado ultrapassa esse fato. Aliás, esta intenção é, em essência, indissociável deste fato, embora tenha em vista o surgimento de uma ordem social diferente de qualquer outra que tenha existido até o presente, e na qual já não se reconhecem a existência de opressores e nem de oprimidos; com a finalidade de cessar a era da dependência econômica, que humilha a dignidade humana, é necessário – como disse Marx – quebrar o poder cego das forças econômicas, substituindo-o por um poder mais elevado, adequado e correspondente à dignidade do ser humano[xii].
Dessa forma, a ponderação e o reconhecimento das atuais conjunturas econômicas e sociais, do real equilíbrio de poder[xiii], nada mais são do que pré-requisito, e não o critério do proceder correto[xiv], da tática correta, de acordo com os princípios do socialismo. O verdadeiro parâmetro só pode ser o modo como a ação serve, em determinado caso, para a realização desse fim, na perspectiva do movimento socialista; e, na verdade – uma vez que para esse fim não servem meios qualitativamente diferentes, os próprios meios em si já significam a aproximação ao fim último – devem ser bons todos os meios pelos quais este processo, no plano da filosofia da história, é despertado à consciência e à realidade; devem ser maus (schlecht) todos os meios que dificultam (vernebeln) esta consciência como, por exemplo, aqueles que ofuscam a consciência da ordem legal e da continuidade do desenvolvimento “histórico”, ou mesmo dos interesses momentâneos do proletariado. Se existe um movimento histórico para o qual a Realpolitik é nefasta e sinistra, esse movimento é o socialismo.
Isto significa, concretamente, que qualquer solidariedade com a ordem social vigente oculta a possibilidade de um perigo semelhante. Embora enfatizemos em vão, com autêntica convicção interior, que qualquer solidariedade é apenas uma comunidade de interesses, momentânea, atual, que nada mais é do que uma aliança provisória para a obtenção de um fim concreto. É, no entanto, inevitável o perigo de que o sentimento de solidariedade se instale naquela consciência cuja necessidade esconde (verfinstert) a consciência universal, o despertar para a autoconsciência da humanidade.
A luta de classes do proletariado não é uma mera luta de classes (se se limitasse a isso, só seria regulada pela Realpolitik), mas, em verdade, ela é um meio para a libertação da humanidade, um meio para o verdadeiro começo da história humana. Cada compromisso (solidariedade)[xv] oculta (verdunkelt) precisamente esse aspecto da luta e, por isso – apesar de todas as suas vantagens eventuais, momentâneas, mas, sobretudo extremamente problemáticas – resulta em fatalidade em relação ao autêntico fim último. Portanto, enquanto a ordem social vigente existir, as classes dominantes se encontram em situação de compensar, aberta ou veladamente, a vantagem econômica ou política obtida dessa forma; e, após essa “compensação”, a luta só prosseguirá em circunstâncias desfavoráveis, já que, obviamente, o compromisso[xvi] enfraquece o ânimo de luta.
Por isso, o significado dos desvios táticos tem um efeito mais profundo no socialismo do que em outros movimentos históricos; o sentido da história universal é aqui o parâmetro tático; e, levando-se em conta as considerações de fins últimos úteis, aquele que se desvia do caminho da conduta correta prescrita pela filosofia da história – um caminho que é estreito e íngreme, mas que é o único que conduz à meta –, assume perante a história uma responsabilidade por todos os seus atos.
Pareceria que, com isso, também, estar-se-ia fornecendo uma resposta ao problema ético; como se seguir a tática correta já fosse ético em si. No entanto, chegamos ao ponto em que se tornam visíveis as facetas perigosas do legado hegeliano presentes no marxismo. O sistema de Hegel não tem ética alguma; nele, a ética é substituída por aquele sistema de bens materiais, espirituais[xvii] (geistigen) e sociais em que culmina a sua filosofia social. Esta forma de ética foi assumida, no essencial, pelo marxismo (como vemos, por exemplo, no livro de Kautsky[xviii]), só que este apenas estabeleceu outros “valores” (Werte) em vez dos hegelianos, sem formular a pergunta se a busca dos “valores” socialmente corretos, dos fins socialmente corretos – independentemente das forças motrizes internas da ação – já é intrinsicamente ética, embora seja óbvio que uma questão ética só pode ter o seu ponto de partida nesses fins socialmente corretos.
Quem nega o desdobramento que aqui se produz das questões éticas, nega, também, a sua possibilidade ética e entra em contradição com os fatos intelectivos (seelischen) mais primitivos e mais gerais: a certeza subjetiva da consciência (Gewissen) e o senso de responsabilidade (Verantwortungsbewußtsein). Todos estes não visam a analisar, primeiramente, o que fez ou quis fazer o ser humano (isso é regulado pelas normas da ação social e da ação política), mas indagam se era objetivamente correto ou incorreto o que fez ou quis fazer o ser humano, e por que ele fez ou quis fazer. Mas essa pergunta do porquê só pode surgir em casos individuais; só tem sentido em relação ao indivíduo, em nítido contraste com a questão tática da correção objetiva (objektiven Richtigkeit), que só pode encontrar uma solução unívoca na ação coletiva de grupos humanos. Portanto, a questão diante de nós é: como se comportam a certeza subjetiva da consciência (Gewissen) e o senso de responsabilidade (Verantwortungsbewußtsein) do indivíduo face ao problema da ação coletiva taticamente correta?
Em primeiro lugar, deve-se estabelecer aqui uma dependência mútua, justamente porque os dois tipos de ação reunidos e postos em relação, são, no essencial, independentes entre si. Por um lado, a questão de saber se uma determinada decisão tática é correta ou incorreta, independe da questão de constatar se a decisão daqueles que atuam com esse intuito foi determinada por motivos morais; por outro lado, um ato derivado da fonte ética mais pura pode ser totalmente equivocado do ponto de vista tático. Essa independência mútua, no entanto, é apenas aparente. Pois, se a ação individual determinada – como veremos a seguir – por motivos puramente éticos entra no âmbito da política, sua correção ou incorreção (histórico-filosófica) objetiva não pode ser indiferente nem mesmo eticamente.
E em virtude da orientação histórico-filosófica da tática socialista, deve ocorrer naquela vontade individual – após a sua associação com outras vontades – uma ação coletiva, e a consciência histórico-filosófica reguladora deve expressar-se, especialmente porque sem isso seria impossível a necessária rejeição da vantagem presente em função do fim último. O problema pode agora ser formulado nos seguintes termos: quais considerações éticas produzem no indivíduo a decisão para que a consciência histórico-filosófica necessária se torne nele a ação política correta, isto é, um elemento de uma vontade coletiva, desperte e também possa determinar essa ação?
Salientamos novamente: a ética orienta-se para o sujeito e, como necessária consequência dessa relação, apresenta-se diante da consciência e do senso de responsabilidade do indivíduo o postulado segundo o qual ele deve agir como se a mudança do destino do mundo dependesse da sua ação ou inação, e a busca pela realização desse destino deve encorajar ou desencorajar as táticas atuais adotadas. (Pois na ética não há neutralidade e nem imparcialidade[xix]; mesmo quem não quer agir, deve também ser capaz de responder à sua consciência por sua inação). Todo aquele que, atualmente, se decidir pelo comunismo está, portanto, comprometido a assumir a mesma responsabilidade individual por cada vida humana que morre lutando por ele, como se ele mesmo a tivesse matado.
Mas todos aqueles que aderem ao outro lado – a defesa do capitalismo – devem arcar com a mesma responsabilidade individual pela destruição que será produzida nas novas guerras imperialistas que, certamente, hão de ser geradas em represália (contrapondo às lutas comunistas)[xx], bem como pela futura opressão de nações e classes. Do ponto de vista ético, ninguém pode fugir da responsabilidade alegando ser meramente um indivíduo, do qual o destino do mundo não depende. Não só não podemos saber isto objetivamente com certeza – pois sempre é possível que tal destino dependa precisamente desse indivíduo –, mas, também, a essência mais íntima da ética, a consciência e o senso de responsabilidade, torna impossível um pensamento semelhante; quem não toma uma decisão com base nessas considerações – ainda que nos demais aspectos se mostre como um ser muito elevado – encontra-se, do ponto de vista da ética, ao nível de um instinto primitivo, de uma vida pulsional inconsciente.
No entanto, essa definição puramente ético-formal da ação individual não é suficiente para explicar[xxi] a relação entre tática e ética. Pelo fato de seguir ou rejeitar uma ética qualquer, o indivíduo que toma uma decisão ética dentro de si mesmo passa para um nível especial de ação – a saber, o da política –, e essa particularidade de sua ação acarreta, do ponto de vista da ética pura, a consequência de dever saber como e em quais circunstâncias ele atua.
No entanto, o conceito de “conhecimento”, que se introduz com isto, requer uma explicação mais detalhada. Por um lado, o “conhecimento” não implica de forma alguma um entendimento perfeito e completo da situação política atual e de todas as consequências possíveis; por outro lado, tal “conhecimento” não pode ser considerado como o resultado de reflexões puramente subjetivas, segundo as quais o indivíduo envolvido atua de acordo com o “melhor de seu conhecimento e de sua consciência”. No primeiro caso, toda ação humana seria de antemão impossível; no outro caso, se encontraria aberto o caminho para a maior leveza e frivolidade, e qualquer parâmetro moral se tornaria ilusório.
Todavia, visto que a seriedade e o senso de responsabilidade do indivíduo configuram um parâmetro moral para cada ação, segundo o qual o indivíduo em questão poderia saber a consequência dos seus atos, surge a pergunta se ele, na medida em que conhece essa consequência, poderia responder por ela perante a sua consciência. Essa possibilidade objetiva varia, certamente, de acordo com o indivíduo e de caso em caso, mas, no essencial, sempre pode ser determinada para cada indivíduo e em cada caso.
Mesmo agora, para cada socialista, o conteúdo da possibilidade objetiva de que se realize o ideal do socialismo e o fazer-se possível dos critérios de possibilidade, estão determinados pela atualidade histórico-filosófica desse ideal. Portanto, para todo socialista, a ação moralmente correta encontra-se dependente do conhecimento correto da situação histórico-filosófica dada; e a via para a obtenção desse conhecimento só pode ser alcançada quando cada indivíduo se empenha para fazer essa autoconsciência, consciente para si mesmo.
O primeiro e inevitável pressuposto para isso é o desenvolvimento da consciência de classe. Para que a ação correta se torne um regulador verdadeiro e correto, a consciência de classe deve elevar-se acima de sua existência meramente dada e ajustar-se à sua missão histórico-universal (welthistorische), pois o interesse de classe, cuja realização constitui o conteúdo da ação efetuada com consciência de classe, não coincide nem com a totalidade dos interesses pessoais dos indivíduos que pertencem à classe, nem com os interesses atuais e momentâneos da classe como uma unidade coletiva.
Os interesses de classe, que tornam o socialismo uma realidade e a consciência de classe que concede expressão a esses interesses, significam uma missão histórico-universal; e, dessa forma, a possibilidade objetiva mencionada acima sugere a questão de saber se já chegou o momento histórico que deve conduzir – por meio de um salto – do estágio da aproximação contínua ao da autêntica realização (echten Verwirklichung).
Cada indivíduo deve, porém, estar ciente de que aqui, de acordo com a essência da coisa, só pode haver uma possibilidade. Não se pode conceber uma ciência humana que, com a mesma precisão e certeza com que a astronomia estabelece a aparição de um cometa, possa dizer para a sociedade: chegou agora o momento em que devem realizar-se os princípios do socialismo. Tampouco pode haver uma ciência capaz de afirmar que o momento ainda não chegou hoje, mas que chegará amanhã, ou apenas daqui a dois anos. A ciência, o conhecimento, só pode mostrar possibilidades; e uma ação moral, carregada de responsabilidade, uma verdadeira ação humana se encontra somente no campo do possível. Todavia, para o indivíduo que percebe e compreende essa possibilidade, não existe, se ele é um socialista, nenhuma opção ou hesitação.
Isso, no entanto, não pode de forma alguma significar que a ação assim constituída já deva ser necessariamente, do ponto de vista moral, impecável ou irrepreensível. Nenhuma ética pode ter como fim encontrar ou inventar receitas para a ação correta, suavizar e negar os conflitos insuperáveis, trágicos do destino humano. Ao contrário: o autoconhecimento ético evidencia, precisamente, que existem situações – situações trágicas – nas quais é impossível agir sem assumir a culpa; mas, ao mesmo tempo, nos ensina, também, que, mesmo se tivéssemos que escolher entre duas formas de incorrer em culpa, haveria um parâmetro para a ação correta e a ação incorreta. Esse parâmetro é chamado de sacrifício.
E assim como o indivíduo que escolhe entre dois tipos de culpa, finalmente, encontra a escolha correta quando sacrifica o seu eu inferior no altar das ideias mais elevadas, assim também há certa força em afirmar esse sacrifício em função da ação coletiva; aqui, no entanto, a ideia se corporifica como um imperativo da situação histórico-mundial, como uma missão histórico-filosófica. Ropschin (Boris Savinkov)[xxii], o líder do grupo terrorista durante a Revolução Russa de 1904-1906, formulou, em um dos seus romances[xxiii], o problema do terror individual, nos seguintes termos: o assassinato não é permitido; é uma culpa absoluta e imperdoável; certamente não “pode”, mas, mesmo assim, “deve” ser feito.
Em outra passagem do mesmo livro encontra, não a justificativa – pois ela é impossível –, mas a raiz moral última da ação do terrorista, em que este não só sacrifica a sua vida por seus irmãos e irmãs, mas, também, a sua pureza, a sua moral e a sua alma. Em outras palavras: somente o crime cometido pelo homem que sabe com firmeza e sem sombra de dúvida que o assassinato não pode ser cometido ou permitido em nenhuma circunstância, pode ser, ainda assim, – tragicamente – de natureza moral.
Para expressar esse pensamento da mais profunda tragédia humana, nas palavras inimitavelmente belas de Judith de Friedrich Hebbel: “E se Deus tiver colocado o pecado entre mim e a missão que me foi designada, quem sou eu para escapar disso?”[xxiv].
*György Lukács (1885-1971) foi um filósofo e teórico marxista húngaro. Autor, entre outros livros, de História e consciência de classe (WMF Martins Fontes).
Tradução e notas: Caique de Oliveira Sobreira Cruz & Manassés de Jesus Santos Júnior.
Notas
[i] Literalmente: o “propósito final” ou o “objetivo final”. Aqui trazemos como “fim último”, tal qual foi feito na versão em espanhol de Miguel Vedda (2014), por acharmos mais compatível com o entendimento em português brasileiro. (Nota dos Tradutores).
[ii] (Adendo dos Tradutores).
[iii] (A.T).
[iv] Literalmente: no melhor dos casos. (N.T).
[v] (A.T).
[vi] (A.T).
[vii] (A.T).
[viii] Atualidade no sentido do que já estava posto na concreticidade social, ou seja, a “ideologia” burguesa desenvolveu o que estava dado mais do que efetuou uma suplantação geral dessa realidade. (N.T).
[ix] Neste caso, optamos não pela tradução literal “esclarecimento” (Klarstellung), utilizamos “elucidação”, para evitar a reprodução de termos com possíveis cargas semânticas racialistas como é o caso de “esclarecimento”. Em alguns momentos, evidentemente, este tipo de termo terá de ser reproduzido, quando não houver possibilidade de utilização de sinônimos que possam expressar a mesma ideia contida no texto original (N.T).
[x] Uma espécie de redução da distância entre o objetivo final e a sua autorrealização. (N.T).
[xi] Legalidade, neste ponto, não no sentido jurídico, mas de lei/tendência social concreta. (N.T).
[xii] Formulação que Lukács retirou de O capital, volume III, de Karl Marx. Encontra-se correspondente no Brasil, na seguinte edição: (MARX, Karl. O capital:crítica da economia política: livro III: o processo global da produção capitalista /edição de Friedrich Engels; tradução Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo, 2017, p.1079). (N.T).
[xiii] No sentido que compreendemos contemporaneamente como “correlação de forças”. (N.T).
[xiv] Proceder enquanto sinônimo de ação. (N.T).
[xv] (A.T).
[xvi] Lukács se refere aqui ao “compromisso” ou a “solidariedade” com a ordem social vigente, mesmo em termos táticos. (N.T).
[xvii] O termo “espirituais” é utilizado por Lukács no sentido de mental e intelectual, de pensamento. Não é em caráter metafísico e, por isso, em algumas ocasiões, traduziremos o literal “espiritual” como “intelectual” em português. (N.T).
[xviii] Lukács está se referindo, nesta passagem, ao livro do filósofo tcheco-austríaco, Karl Kautsky (1854- 1938), intitulado Ethik und materialistische Geschichtsauffassung (Ética e concepção materialista da história), 1º edição, Stuttgart, 1906. (N.T).
[xix] Nos termos de Lukács: dentro do horizonte da ética não há a possibilidade de se utilizar do “Parteilosigkeit” (apartidarismo). (N.T).
[xx] (A.T).
[xxi] Lukács utilizou outro termo: “Klärung”, que em português, nos remeteria a já mencionada possibilidade de uma gramática racialista. (N.T).
[xxii] Boris Viktorovich Savinkov (1879-1925) foi um teórico e literato russo, além de ter sido um revolucionário. Ele militou pelo “Partido Socialista Revolucionário”, sendo uma de suas principais lideranças. (N.T).
[xxiii] Conforme Vedda (2014, p.38), o romance de Boris Savinkov, mencionado por Lukács, teria sido o “Como si no hubiera ocurrido” (título da versão em espanhol. Infelizmente, não encontramos o texto publicado em português). O livro de Savinkov foi publicado em 1913, em alemão, pela “Frankfurt a. M.: Literarische Anstalt Rütten & Loening”, sendo escrito e produzido por Boris Savinkov sob o pseudônimo de “W. Ropschin”, provavelmente entre 1911-1913, com o seguinte título: Als wär es nie gewesen: Roman aus der russischen Revolution (Em português, seria aproximadamente: Como se nunca tivesse acontecido: um romance da Revolução Russa. Noutra possibilidade, seria: Como se não tivesse acontecido nada: um romance sobre a Revolução Russa). (N.T).
[xxiv] Segundo Miguel Vedda (2014, p.38), a frase correta dita por “Judith”, na obra de Christian Friedrich Hebbel (1813-1863, teria sido um pouco diferente da citação realizada por Lukács. Portanto, na tradução em Espanhol, Vedda (2014, p.38) apresenta a frase da seguinte forma: “Si Tú [Dios] colocas um pecado entre mí y el acto que debo hacer, iquién soy yo para discutir contigo sobre ello y para escapar de ti!” (Judith, 111). (N.T).
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