Quando Kim Kataguiri carregou um vídeo no YouTube em que fala de Karl Marx como se ainda estivesse vivo no século 20, é difícil não rir ou zombar dos erros da direita que promove o pânico moral diante de uma suposta Marxismo. (Foto retirada do Twitter)
Embora hoje seja contra o governo Bolsonaro, o Movimento Brasil Livre (MBL) tem, no fundo, mais semelhanças do que diferenças com o bolsonarismo. E podemos provar isso.
O Movimento Brasil Livre (MBL) se enquadra na categoria dos novos movimentos da direita brasileira. O grupo se destaca não apenas por defender um projeto de privatização e mercado fundamentalista, mas também por fazê-lo por meio de uma militância anti-esquerda baseada em ataques e polêmicas. Não surpreende, então, que o MBL tenha sido um dos líderes da campanha pelo golpe contra a presidente Dilma Rousseff.
Outros momentos emblemáticos do movimento foram sua mobilização contra a "arte imoral" da exposição Queermuseu, sua denúncia de uma "ideologia de gênero" representada pela luta pelos direitos das mulheres e da comunidade LGBT, e sua cruzada contra o "vitimismo" de o movimento negro em defesa das cotas raciais. O MBL também vê "doutrinação marxista" por toda parte, e o Escola Sem Partido é o carro-chefe das ações de seus militantes.
Em conjunto, essas agendas foram suficientes para torná-los um grande expoente de uma guerra cultural no Brasil, contribuindo para a campanha vitoriosa de Jair Bolsonaro, a quem ofereceram “apoio crítico”. Desde então, o movimento, incluindo seus parlamentares eleitos, tem atuado de forma convergente em suas agendas centrais: a agenda de Paulo Guedes na economia e a do ex-ministro Sérgio Moro na política criminal.
Mais armas, menos livros
Apesar desse apoio crítico, o MBL e o bolsonarismo convergem diretamente em vários pontos. A liberdade da posse e porte de armas é apenas uma delas. Kim Kataguiri, líder mais destacado do movimento, orgulha-se de ter Benedito Barbosa como referência. Barbosa é um aclamado "especialista" em segurança pública e política de armas que, por sua vez, tem como referência o modelo norte-americano. Seus argumentos são simples: o Estatuto do Desarmamento teria sido um completo fracasso porque desarmou os bons cidadãos, deixando-os indefesos contra criminosos armados. Armar bons cidadãos teria um efeito intimidador sobre o crime, sendo assim uma medida eficaz contra a violência. O direito às armas é tratado como um "direito natural" ligado à autodefesa.
A política armamentista do grupo ignora os efeitos negativos causados pela proliferação do estoquee a circulação de armas em uma sociedade. O Instituto Sou da Paz, ONG que atua há mais de 15 anos para reduzir a violência no Brasil, destaca que o Estatuto do Desarmamento foi um fator importante para reverter o rápido crescimento das mortes por armas de fogo no país. Segundo dados do Mapa da Violência 2015, entre 1993 e 2003, a taxa de óbitos por armas de fogo por 100.000 habitantes cresceu aproximadamente 6,9% ao ano. Essa tendência começou a se reverter a partir de 2004, com o crescimento caindo para 0,3% ao ano. Outra pesquisa realizada em 2000 pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo e pelo Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM) indicou que a existência de armas nas residências contribui para mortes durante ataques a propriedades.
Não que o MBL despreze um argumento baseado em evidências. O movimento apresenta indícios em seus discursos, mas estes não condizem com a produção acadêmica sobre os temas. Ao invés de ver nisso uma contradição, o movimento busca desqualificar as conclusões científicas como resultado de centros universitários atingidos por uma " infiltração Gramsciana " que visa minar os fundamentos do conhecimento baseado na tradição "judaico-cristã", como prega constantemente os polêmico Olavo de Carvalho.
O próprio Benedito Barbosa defende em seu livro Mentiram para mim sobre o desarmamento (Vide, 2015), que o desarmamento é uma ideologia de dominação do Estado sobre os indivíduos, fruto de uma conspiração internacional de esquerdistas. Quando são utilizadas referências científicas, elas são selecionadas de acordo com a finalidade. É o caso da citação do economista John Lott Jr, cuja longa carreira na defesa de leis frouxas sobre o porte de armas o tornou o braço ideológico da National Rifle Association (NRA) nos Estados Unidos, organização sempre em mão para o lobbyanti-restricionista Lott Jr. é alvo de críticas do Fórum Brasileiro de Segurança Pública e de seus pesquisadores, cujas análises apontam para uma correlação positiva entre menos armas e menos crimes com armas.
Um pacote de prisão
A armadilha de usar dados para justificar políticas aparentemente lógicas também se repete quando se trata de encarceramento. Roberto Motta, ativista do MBL e um dos principais conselheiros do ex-governador do Rio de Janeiro Wilson Witzel, baseou-se no trabalho de um economista americano para argumentar que mais prisões reduzem a criminalidade.
O economista Steven Levitt argumenta em um artigo de 1996 que existe uma relação de causa e efeito entre o aumento das taxas de encarceramento e a queda das taxas de crimes registrados, o que apoiaria a suposta eficácia das prisões na redução do crime. No entanto, revisando e desenvolvendo sua tese, em outro artigo de 2004, Levitt admite que sua hipótese é incapaz de explicar a correlação inversa em outro período de análise. O conjunto de evidências no qual o MBL se baseia é tão frágil que até mesmo Levitt reduziu as inconsistências em suas conclusões a parte de um "enigma".
Entre os criminologistas e sociólogos da violência, o consenso é contrário ao propagado pelo MBL: a taxa de encarceramento não tem relação causal com a redução da criminalidade encontrada. Existem até casos empíricos que testemunham todo tipo de relacionamento: positivo, negativo e neutro. Segundo o Departamento Penitenciário Nacional, de 1990 a 2016 a população carcerária brasileira aumentou 707% (de 90.000 para 726.000) e sua taxa por 100.000 habitantes cresceu 477% (de 61,1 para 352,8).
A política carcerária brasileira é um desastre no combate ao crime. Bruno Paes Manso e Camila Nunes Dias, autores de Guerra: a ascensão do PCC no mundo do crime no Brasil (Todavia, 2018), argumentam que o modelo de encarceramento em massa no Brasil, com superlotação média em torno de 200% e condições carcerárias degradantes, está na base do fortalecimento de facções como o Primeiro Comando da Capital (PCC) e a Rede Vermelha. Comando (CV). Grupos criminosos aproveitam esse estado de coisas para atrair novos presos, gerenciar o caos nas prisões e manter um negócio lucrativo em torno de drogas arbitrariamente criminalizadas. O mercado de drogas funciona segundo uma lógica que promove massacres entre facções rivais que disputam a hegemonia, o que é um dos principais motivos do aumento da taxa de homicídios no Nordeste nos últimos anos.
Além da intensificação da tragédia e da violência que a multiplicação de armas trará para todos nós, a política policial do MBL é digna de um filme de terror. Como se não bastasse a altíssima letalidade policial no país, principalmente com estados em permanente “guerra às drogas”, como o Rio de Janeiro, a ideologia punitiva do senso comum distorce até a realidade das ações policiais. O discurso usual é que policiais morrem porque não conseguem se defender adequadamente. O problema está nos defensores dos direitos humanos que perseguem implacavelmente os policiais e exigem punições injustas para corporações inteiras.
É por isso que a aliança entre o MBL e Moro tem promovido pacotes de medidas contra o crime com presunção automática de inocência para policiais que matam em flagrante. A polícia brasileira já desfruta de um acobertamento estrutural através dos "carros de resistência". A investigação do delegado Orlando Zaccone sobre o assunto é interessante, pois analisa cerca de 300 pedidos de procuradores para apresentar esses relatórios. Segundo ele, o discurso do promotor está ao lado dos policiais envolvidos e foca nas características do local do evento, especialmente os territórios da favela, e no registro criminal da vítima; isto é, "os mortos são investigados, não as mortes". Essa impunidade pode ser ainda mais intensificada por uma política criminal concebida sem preocupação com provas concretas.
Eficácia na promoção de danos
A coalizão de novos atores de direita que vem governando o Brasil defende uma concepção bélica de segurança pública que prioriza o confronto militarizado no controle do crime e expõe as forças policiais a um grave risco de morte, o real motivo da alta letalidade policial . O mesmo acontece em relação ao «bom cidadão», que ao portar armas e visar a autodefesa acaba por ficar mais vulnerável à letalidade criminosa do que se estivesse desarmado.
O MBL investe na narrativa simplista de enfrentamento ao crime pela força bruta porque isso funciona como um discurso eleitoral. Após as eleições, a materialização do discurso na política criminal é ineficaz na proposta de redução da insegurança pública e gera uma espiral de violência que atinge tanto a força policial quanto a população civil. Esses atores refutam os defensores dos direitos humanos acusando a esquerda de manipulação ideológica "gramsciana", mas é sua própria distorção ideológica das razões e circunstâncias da criminalidade que coloca a sociedade em risco.
A defesa do hiperencarceramento como a melhor resposta à violência serve para esconder sua verdadeira função de criminalização racista da pobreza. A ênfase nos crimes contra a propriedade e no pequeno tráfico de drogas promove a supremacia da propriedade privada, ao mesmo tempo em que minimiza os crimes violentos cometidos por homens contra mulheres e por empregadores contra trabalhadores e o meio ambiente. Seu objetivo é esconder a todo custo que as principais vítimas da violência urbana não pertencem à classe média branca assustada, mas são jovens negros da periferia presos em um círculo vicioso de marginalização e vulnerabilidade social.
Quando Kim Kataguiri postou um vídeo no YouTube falando de Karl Marx como se ele estivesse vivo no século 20, é difícil não rir ou debater os erros da direita que promove intensamente o pânico moral contra um suposto marxismo cultural. Não se pode ignorar que, por mais desavisadas que pareçam, as táticas do MBL e de seus aliados vêm funcionando uma após a outra, com consequências irreparáveis para a sociedade. É preciso dizer que distorcem os fatos e mentem sobre a esquerda, mas isso não significa que não tenham um projeto.
O que pode parecer mera negligência ou falta de capacidade de gestão só ocorre porque o efeito dessa situação é exatamente o desejado. O fracasso permanente em atingir os objetivos declarados é deliberado, pois reproduz as condições para continuar intensificando o programa punitivo, militarista e armamentista como a solução que um dia será bem-sucedida. Enquanto isso, promove-se um controle funcional para perpetuar as dominação estruturantes da sociedade brasileira. Sua política criminal é fraca e por isso, para fins de direito, tão forte.
Este texto foi publicado na primeira edição em papel da Jacobin Brasil , “Marx & Companhia”, disponível aqui .SAMUEL SILVA BORGESDoutoranda em sociologia pela Universidade de Brasília e produtora do canal Cifra Oculta.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
12