Parar o saque e a espoliação parece ser um primeiro e necessário movimento das forças sociais organizadas
A conjuntura brasileira se processa acelerada numa dupla condição convergente: a barbárie social instalada e a crise econômica profunda. Analisar essa conjuntura não pode estar circunscrita, como muito temos visto, a interação de curto prazo, temos que visualizar a lógica de longo prazo que está por trás da atual construção histórica. Considero que a dinâmica do que denominamos de “acumulação por despossessão” constitui o eixo da trajetória histórica em que estamos, assim nos dedicaremos primeiramente neste artigo em tratar com os leitores o significado teórico e histórico do termo “acumulação por despossessão” ou “acumulação por espoliação”, suas formas concretas no Brasil e, por fim, como esse imperativo da dependência se relaciona com a nossa conjuntura presente bárbara e letal.
O capitalismo nacional se desenvolveu ao longo dos últimos dois séculos baseado em profunda subordinação ao capitalismo internacional, marcadamente desde sua vida colonial o Brasil foi território de dependência e transferência de riqueza desde a produção interna para o circuito internacional. O que se convencionou denominar de acumulação por despossessão constitui justamente essa continua exploração das forças do trabalho nacionais com destino aos interesses de formação do lucro médio do capitalismo internacional.
A acumulação por espoliação constitui um mecanismo histórico de reprodução do capital com base na apropriação ou “despossessão” de riquezas ou propriedades previamente existentes, capaz de dar vazão as condições de expansão de capital frente às crises recorrentes do capitalismo. Esta forma de acumulação remete as condições prévias de desenvolvimento do modo de produção capitalista, o que Marx denominou de acumulação primitiva de capital. O que se coloca historicamente é que as condições de reprodução do capital no centro imperialista requerem uma continua expansão “colonial” ou reinvenção de processos “neocoloniais”.
Essas formas de acumulação espoliativa são muito diversificadas, mas têm como ponto comum serem mecanismos de elevado grau de degradação social e ambiental. Desta forma a exploração dos recursos naturais e o neoextrativismo mineral são bastante característicos de um processo de exploração em elevada escala. Aqui temos cinco pontos a serem esclarecidos:
(i) A rentabilidade do capital ao nível mundial tem se mostrado declinante desde a década de 1970 (ver dados em: https://thenextrecession.wordpress.com/2022/01/22/a-world-rate-of-profit-important-new-evidence/), o que requereu crescentes regiões ou fronteiras de acumulação continuamente sendo estabelecidas. Como observou o marxismo clássico o neocolonialismo tem a função de resolver os problemas de rentabilidade e ganhos do capitalismo central.
(ii) Desde o fim da antiga URSS o capitalismo retornou a uma forma de interação internacional muito próxima com aquela existente no século XIX, ou seja, relações coloniais e neocoloniais são parte do regramento imperialista. Vale notar que após a segunda guerra o imperialismo estadunidense buscou uma forma de interação mais “cordial” com parcela das regiões periféricas, o caso brasileiro é um exemplo central, algo que se encerrou e definiu, desde os anos 1970, uma nova ordem neocolonial.
(iii) A dependência enquanto ordem econômica internacional estabeleceu padrões de subordinação financeira ao longo dos últimos setenta anos. A transferência de valores é oscilante ao longo do trajeto histórico, sendo maior nos momentos de maior crise de rentabilidade nos países centrais, especialmente na década de 1990 e agora os interesses da acumulação rentista imperialista impõem maior sangria de valores e riquezas dos países periféricos, o Brasil se constitui em base territorial fundamental para maior transferência de valores.
(iv) A parcial solução para o declínio da rentabilidade do capital nos países centrais é a crescente transferência de valores da periferia, algo que nas décadas anteriores foi questionado teoricamente, mas os dados e a própria forma como o capitalismo se conformou nos últimos vinte anos deixaram essa forma de transferência de valores como algo pouco discutível.
(v) Por fim, a acumulação por despossessão se tornou fenômeno central da vida diária brasileira. Como um “de já-vu” histórico retornamos ao centro colonial brasileiro: basicamente produzimos e exportamos minérios, soja, milho e café. Um retorno curioso a forma colonial, o problema é que agora somos uma sociedade urbana e de mais de duzentos milhões de pessoas, algo que não se mantem soberanamente somente com essa forma simplória de reprodução social.
Nas últimas seis décadas tivemos pelo menos três ondas de “acumulação por despossessão” no Brasil. A desapropriação das rendas pessoais ou publicas se tornou ponto central da lógica de ganhos do rentismo capitalista nacional e forâneo, sendo que essa despossessão manifesta a ordem de crise do capitalismo desde os anos 1970, porém em crescente ritmo de violência.
Ainda durante o período da ditadura militar-empresarial tivemos a primeira onda de despossessão. Os militares, mediante a legislação do FGTS (Lei n° 5.105 de 1966) que significou uma primeira reforma liberal contra o trabalho aprofundou as condições de precarização das relações de trabalho, sancionando a lógica de superexploração da força de trabalho brasileira, forma de despossessão fundamental para as relações entre o capitalismo periférico brasileiro e o centro imperialista estadunidense e europeu.
Vale observar que a “técnica” de extração de mais-valia baseada na espoliação pura e simples do trabalhador, algo que se estabelece via compressão da taxa média de salário sob diversas formas, como o uso da inflação, a repressão sindical e a violência policial. Os militares brasileiros e seus cupinchas civis foram, definitivamente, uma das primeiras forças neoliberais na América Latina, anterior ao próprio experimento fascista chileno de Pinochet.
Importante chamar atenção ainda para o Código Mineral de 1967 e ainda hoje vigente, inclusive com o reforço de legislações mais recentes, cuja característica central é a completa transferência dos chamados direitos de lavra para os interesses privados, estabelecendo o completo controle das chamadas rendas minerais e a transferência de riquezas para o grande capital internacional e nacional.
A presença do capital internacional na indústria extrativa mineral remonta a década de 1950, inclusive na Amazônia brasileira, o que estabeleceu a estreita interação entre o controle da produção mineral por grandes grupos industriais e financeiros internacionais, e a complexa condição de um dinamismo econômico somente centrado no extrativismo com baixa capacidade de irradiamento de desenvolvimento a outros setores da economia local, cumprindo, basicamente, a função de expropriação de grandes massas líquidas de valores materiais e sua transferência ao circuito reprodutivo do capital internacional, sendo que as minas amazônicas de ferro, manganês, ouro, bauxita (alumínio) e outros minerais estratégicos garantem as grande mineradoras condições de rentabilidade diferenciadas.
A segunda onda de despossessão se dá com a privatização da Companhia Vale do Rio Doce e Telebrás já na década de 1990 e sob o governo FHC, a conhecida “privataria tucana”. A CVRD foi “doada” por três bilhões de reais, algo que a empresa ganhava em somente três meses de faturamento. Mas não somete isso, a CVRD enquanto estatal controlava três rotas ferroviárias, as maiores do país e parcela considerável do subsolo brasileiro que foi transferido aos interesses do capital transnacional. A transferência de riquezas faz parte da lógica do desenvolvimento desigual, possibilitando a relativa estabilidade no centro capitalista, onde o capital central assimila ganhos extraordinários produzidos na periferia, a custa da miséria e morte dos povos “meridionais”.
O geografo inglês David Harvey define “acumulação por espoliação” como um mecanismo histórico de reprodução do capital capaz de dar vazão as condições de acumulação frente às crises recorrentes do capitalismo, o que nos leva a hipótese de que as condições de reprodução do capital requeiram uma continua expansão “colonial” ou reinvenção de processos “neocoloniais”. A segunda onda de despossessão se deu de forma muito mais radical: se desapropria parcela gigantesca de riqueza acumulada durante sessenta anos, tanto no caso da CVRD, quanto do Sistema Telebrás/Embratel. Podemos aventar que o processo neoliberal brasileiro da década de 1990 foi juntamente com o desfazimento da antiga União Soviética e a desapropriação radical ali ocorrida, os dois processos mais violentos de acumulação por despossessão do final do século passado.
A terceira onda de despossessão se desenvolve a partir do golpe de Estado de 2016. Vale observar que a lógica da acumulação por espoliação não parou em nenhum momento, mas a gradação e virulência do processo de transferência de riquezas são gradativos e vinculados aos interesses da rentabilidade do capital dos países centrais, por mais que no caso da Dívida Pública, como já tratado por nós em outro artigo, seja continua.
O atual ciclo de espoliação se estabelece em três formatos centrais: (a) primeiramente a privatização de todas as empresas públicas, especialmente o setor elétrico, isso por conta da massa de capital fixo envolvida e o tempo de “payback” que possibilita ganhos de transferência e securitização de títulos. A privatização da Petrobrás e Eletrobrás será o maior movimento de privataria e roubo de riqueza pública no atual ciclo de espoliação global.
(b) Segundo a desnacionalização das terras e recursos naturais, algo que torna o que ocorreu na Rússia na década de 1990 algo pequeno. Assim, teremos tanto a expulsão e morte de populações tradicionais, quanto o destino de enormes áreas de terras públicas destinadas a especulação e exploração por grupos internacionais. A vinda e tratativas de Elon Musk preparam essa gigantesca rodada de despossessão, algo que poderá caminhar para o desfazimento da própria ideia de nação brasileira.
(c) Terceiro, como parte da continuidade da intensa espoliação social que se processa, temos o desmonte de todas as regras sociais e, via EC 95/16, a transferência do fundo público para interesses que controlam a base fiscal do Estado, via dívida estatal.
O quadro até aqui exposto é bastante sombrio, mas a realidade de fato nos descortina um contexto muito crítico. O que fazer é a pergunta tantas vezes feita ao longo da nossa história. Parar o saque e a espoliação parece ser um primeiro e necessário movimento das forças sociais organizadas ou não. Caso não tenhamos essa capacidade, provavelmente caminharemos para hipótese acima elencada de desfazimento da própria ideia de nação brasileira. O tempo urge!
*José Raimundo Trindade é professor do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas da UFPA. Autor, entre outros livros, de Agenda de debates e desafios teóricos: a trajetória da dependência (Paka-Tatu).
Referências
Karl Marx. O capital: crítica da economia política, livro 1. São Paulo: Boitempo, 2013 [1867].
David Harvey. O novo imperialismo. São Paulo: Loyola, 2008.
Ernest Mandel. O capitalismo tardio. São Paulo: Nova Cultural, 1985.
José Raimundo Trindade. Seis décadas de intervenção estatal na Amazônia. Belém: Paka-Tatu, 2014.
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