O ministro Fábio Faria (esquerda), o empresário Elon Musk (centro) e o presidente Jair Bolsonaro (direita) (Reprodução)
por Patrícia Paixão de Oliveira Leite e Paulo Victor Melo
Além de todos os prejuízos políticos, econômicos e sociais que o país acumulou sob a era Bolsonaro, ampliou-se o boicote governamental às tentativas da sociedade civil organizada de promover e efetivar o direito à comunicação
Destruição da Amazônia. Garimpeiros invadindo territórios indígenas e praticando estupros, além de provocar mortes e desaparecimentos. Cerrado em chamas. Indigenista e jornalista assassinados enquanto trabalhavam. Números alarmantes de mortes causadas por intoxicação de agrotóxicos. Crescentes índices de mortalidade infantil. Milhões de famílias passando fome todos os dias, outras milhares em insegurança alimentar e tantas outras expulsas das suas casas. Juventudes das periferias sendo assassinadas. O que todas essas violências e violações de direitos humanos têm a ver com direito à comunicação?
Se compreendermos o caráter estratégico das comunicações tanto como um direito em si, fundamental para o exercício da cidadania, quanto para a reivindicação de outros direitos, não será difícil perceber a relação entre esse setor e o conjunto das questões mencionadas acima. Afinal, uma comunicação concentrada em poucos grupos político-econômicos favorece a manutenção do status quo. Por outro lado, uma comunicação plural e diversa possibilita a visibilidade dos problemas sociais e tem capacidade de incidir na reversão desses problemas.
E uma mirada crítica para o que aconteceu no setor das comunicações em nosso país, em 2021, não deixa dúvidas de que, infelizmente, o Estado brasileiro segue optando por agravar as mazelas sociais e distanciar-nos da efetivação da comunicação como um direito.
Não fosse assim, não teríamos, apenas no ano passado, de acordo com relatório da Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj), 430 casos de violência contra jornalistas. Ao expressar o crescimento das práticas de silenciamento, intimidação e censura, em que o presidente da República, seus filhos e aliados são os principais responsáveis, esse dado contribuiu, por exemplo, para que o Brasil entrasse na chamada “zona vermelha” do Ranking Mundial de Liberdade de Imprensa, índice da organização internacional Repórteres sem Fronteiras (RsF).
O cenário em relação à comunicação pública também é emblemático. Se durante a campanha presidencial, Bolsonaro falava em “fechar” a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), como declarou em diferentes momentos, há agora um escancarado uso da TV Brasil e de outros veículos de comunicação da EBC para a promoção de propaganda oficial. E jornalistas que ousarem seguir o Código de Ética da profissão e, assim, não se pautarem pelo governismo, são alvos de censura. Em um ano, entre julho de 2020 e agosto de 2021, conforme a 3ª edição do relatório elaborado pela Comissão de Empregados da EBC e pelos sindicatos representativos dos trabalhadores e trabalhadoras, foram 250 denúncias nesse sentido.
Mas, infelizmente, censura não parece ser uma exclusividade do governo Bolsonaro. Diferentes episódios demonstram que esse é também um modus operandi das plataformas digitais. Um estudo realizado pela organização Coding Rights revelou como, por exemplo, as expressões “sapatão” e “sapatona” eram invisibilizadas ou excluídas pelo Instagram e pelo Facebook, assim como fotos de casamentos entre mulheres e comentários elogiosos sobre casais lésbicos.
A celebração do amor homoafetivo incomoda as plataformas digitais, mas o mesmo não se pode dizer dos discursos de ódio. Ao contrário, no contexto atual da guerra da Ucrânia, a Meta – big tech que administra o Facebook, Instagram e Whatsapp – anunciou que permitiria conteúdos odiosos contra militares russos, incluindo discursos que defendessem a morte de soldados e líderes do país.
Discurso de ódio é violência simbólica, seja quando omite para invisibilizar ou quando publiciza, a fim de agredir. As palavras ditas podem violar direitos humanos. As não ditas podem cercear liberdades. Os discursos refletem a vida, a vida reflete os discursos. Vale reverberar o que escreveu Grada Kilomba, na carta à edição brasileira de Memórias da plantação – episódios de racismo cotidiano: “Não posso deixar de escrever um último parágrafo, para lembrar que a língua, por mais poética que possa ser, tem também uma dimensão política de criar, fixar e perpetuar relações de poder e de violência, pois cada palavra que usamos define o lugar de uma identidade. No fundo, através de suas terminologias, a língua informa-nos constantemente de quem é normal e de quem é que pode representar a verdadeira condição humana”.
São as mesmas plataformas digitais que – evidenciando o descompromisso com um ambiente democrático – utilizaram a sua força econômica para promover publicidade e lobby contra o estabelecimento de mecanismos efetivos que regulem a circulação de desinformação, sendo o principal resultado a recusa, pela Câmara dos Deputados, da tramitação em regime de urgência do Projeto de Lei 2630/2020, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.
Assim, a disseminação massiva de conteúdos de desinformação, que é operada a partir de estratégias políticas e visando ganhos econômicos e políticos, tem uma estrada aberta para seguir interferindo em processos eleitorais.
E isso num país que, ao ser caracterizado por profundas desigualdades no acesso à internet e às tecnologias digitais de informação e comunicação, deixa milhões de pessoas, sobretudo as mais pobres, negras e de áreas rurais, reféns das empresas de telecomunicações e plataformas digitais que promovem a prática do zero rating, que, como já apontado em diferentes pesquisas, propicia assimetrias no acesso à informação e cria condições favoráveis para a circulação de desinformação. Vale lembrar que 85% dos usuários de internet das classes D e E, segundo pesquisa TIC Domicílios 2020, fazem uso da internet exclusivamente por meio de dispositivos móveis.
São essas mesmas pessoas – que têm cor, têm gênero e têm local de moradia definidos – que durante toda a pandemia de Covid-19 não conseguiram acessar serviços públicos ou mesmo políticas básicas para a sobrevivência, a exemplo do Auxílio Emergencial e do Benefício de Prestação Continuada, dado o acelerado processo de plataformização das políticas sociais no país – ignorando o contexto de vulnerabilidade social, ainda mais agravado pela insegurança sanitária.
Como bem pontuou Sueli Carneiro, em Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil, “(…) as duas ideologias – o mito da democracia racial e a perspectiva da luta de classes – têm em comum, portanto, a minimização ou o não reconhecimento e/ou a invisibilidade da intersecção de raça para as questões dos direitos humanos, da justiça social e da consolidação democrática, elementos que dificultam a erradicação das desigualdades raciais nas políticas públicas”. As parcas políticas públicas lançadas em 2021 pelo governo brasileiro jamais consideraram essas interseccionalidades – e aqui acrescentamos as territorialidades.
Foram as crianças e adolescentes dessas famílias as principais impactadas pela ausência de internet e dispositivos digitais para participar das atividades educacionais remotas, o que resultou na interrupção dos seus ciclos escolares. A respeito disso, três dados alarmantes: conforme Nota Técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), aproximadamente seis milhões de estudantes (pré-escola, ensino fundamental e ensino médio) não têm acesso domiciliar à internet banda larga, sendo que 97,5% deles estão matriculados em estabelecimentos públicos de educação; de acordo com estudo do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), dois milhões de estudantes de escolas rurais passaram todo o ano de 2020 sem acesso digital, sendo a distribuição de conteúdos impressos a única alternativa encontrada em diversos lugares; segundo levantamento do Instituto DataFavela, 55% dos estudantes que vivem em favelas no Brasil admitiram a possibilidade de abandonarem os estudos devido às dificuldades com o ensino remoto.
Vale lembrar que, enquanto o direito de acesso à educação é sistematicamente negado a milhões de crianças e adolescentes, as mesmas plataformas digitais que agem contra a democracia no país são beneficiadas com contratos que lhes garantem a gestão de bancos de dados de escolas, universidades e institutos públicos em todo o Brasil. Monitoramento do projeto Educação Vigiada indica que, dentre 193 instituições educacionais analisadas, 145 (cerca de 74%) têm seus e-mails institucionais alocados em data centers da Google ou da Microsoft: 84% das universidades estaduais, 65% das universidades federais, 78% dos institutos federais de educação e 76% das secretarias estaduais de educação investigadas pelo Educação Vigiada possuem algum tipo de acordo com essas duas big techs.
Uma das implicações mais visíveis desse quadro é em relação à segurança dos dados, que passam ao controle de empresas privadas, sem que estudantes, professores/as e outros/as agentes educacionais saibam se os seus dados pessoais e a sua privacidade estão sendo respeitadas. Afinal, vale lembrar que, mesmo após a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados em setembro de 2020, há, ainda, um longo caminho para a efetivação prática desses direitos.
Na radiodifusão, que é regida por uma lei (Código Brasileiro de Telecomunicações) com quase 60 anos (a serem completados em agosto de 2022), a situação é também de violação de direitos, sobretudo por meio de programas policialescos, que cotidianamente propagam discursos de ódio contra mulheres, população LGBTQIA+ e jovens negros/as. Em Racismo recreativo, Adilson Moreira chama atenção para o papel da televisão em referendar estereótipos e preconceitos. Mais: reifica uma visão de mundo a partir de um lugar de privilégio. “A televisão tem sido um dos meios mais importantes na criação de significações culturais sobre grupos minoritários, um lugar de divulgação de representações cotidianas da negritude em nossa cultura. As imagens exibidas na televisão são exemplos de política cultural porque veiculam ideias que permitem a transformação da branquitude como um tipo de capital cultural, e a negritude como elemento de inferioridade moral”.
Ao olhar para a história do nosso país, ao fazer as tradicionais retrospectivas sobre anos idos, a televisão tem que – por obrigação e honestidade intelectual – apresentar toda a sua reponsabilidade em propagar racismo, LGBTfobia e misoginia por meio de sua programação, em especial, dos famigerados policialescos.
Todo esse cenário confirma um crescente distanciamento da necessária ideia de comunicação como direito humano, atesta a opção histórica do Estado brasileiro em privilegiar os já privilegiados grupos econômicos e políticos proprietários de mídia, evidencia o compromisso do atual governo em ampliar as desigualdades e violações de direitos e aponta a amplitude dos desafios postos para as organizações e movimentos sociais que defendem uma comunicação democrática, diversa e plural, aspectos que são observados nos textos do “Relatório Direito à Comunicação no Brasil”, produzido anualmente pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e publicado pelo Le Monde Diplomatique Brasil.
Patrícia Paixão de Oliveira Leite é jornalista, doutora em Comunicação, professora substituta na Universidade Federal de Pernambuco e pesquisadora na área de mídia, discurso e decolonialidade. Paulo Victor Melo é jornalista, doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas, pós-doutorando no Laboratório de Comunicação e Artes da Universidade da Beira Interior/Portugal. São associados/as ao Intervozes e editoras/es do Relatório Direito à Comunicação no Brasil 2021.
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