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por Cássio Santana
Em um contexto de crise sanitária e proximidade das eleições gerais deste ano, a circulação massiva de informações falsas preocupa organismos internacionais, instituições do Estado e entidades da sociedade civil
Entre o dia 11 de março de 2020, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a existência de uma pandemia de Covid-19, e 30 de abril do mesmo ano, as pesquisas na internet sobre a doença cresceram entre 50% e 70% nos públicos das diversas faixas etárias em todo o mundo, de acordo com a Organização Pan-Americana de Saúde (OPAS). A título de exemplo, apenas no primeiro mês da pandemia, 361 milhões de vídeos foram carregados no YouTube com a classificação “Covid-19” ou “Covid 19”, 550 milhões de tuítes continham os termos covid-19, covid19, covid_19, pandemic, coronavirus ou corona virus. Os riscos de contaminação, meios de prevenção, a necessidade de isolamento social, os números de óbitos diários – tudo se tornou objeto de pesquisa rotineira.
Esse aumento na busca por informações, num contexto de crescimento da desinformação, fez com que os organismos internacionais de direitos humanos alertassem para um outro tipo de pandemia, a desinfodemia, entendida, segundo a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), como um processo sistemático de desinformação com o objetivo de deslegitimar a ciência médica voltada para a Covid-19, com impacto na vida de um grande número de pessoas.
Em uma atividade específica sobre a relação entre Covid-19 e desinformação, o secretário-geral da ONU, António Guterres, declarou que “assim que o vírus se espalhou pelo globo, mensagens imprecisas e até perigosas proliferaram descontroladamente nas redes sociais, deixando as pessoas confusas, enganadas e imprudentes”.
Compreendendo que a desinformação não é um fenômeno exclusivo desses tempos, mas que ganhou roupagens próprias em uma sociedade em rede, marcada pela instantaneidade na produção, circulação e consumo de mensagens, as plataformas digitais tornaram-se o ponto de convergência no qual o processo de desinformação ocorre à solta, muitas das vezes com a anuência, ainda que tácita, das próprias plataformas, que não desenvolvem mecanismos eficientes e transparentes de combate à desinformação. Levantamento realizado pelo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social, intitulado “Fake news: como as plataformas enfrentam a desinformação”, analisou as principais medidas contra notícias falsas adotadas pelo Instagram, Facebook, WhatsApp, YouTube e Twitter. A conclusão é que essas plataformas desenvolvem ações pontuais e não apresentam políticas e processos estruturados sobre o problema.
Com a pandemia da Covid-19, a problemática da desinformação revelou o quanto pode ser nociva à sociedade, com consequências, literalmente, mortais no cotidiano. “Um dos maiores impactos da desinformação no contexto pandêmico tem sido a quebra de confiança da população no que diz respeito às medidas de prevenção à Covid-19, prejudicando sua adesão e engajamento, o que acaba por ser refletido no número de contaminações e mortes no país”, explica a membra da Coalizão Direitos na Rede e da organização não-governamental Artigo 19, a cientista social Brenda Cunha.
“A desinformação, promovida pela proliferação de informações falsas, pela falta de transparência por parte dos gestores públicos e pelos constantes ataques do governo visando descredibilizar especialistas e jornalistas contrários aos posicionamentos do governo federal, impõe barreiras para a compreensão da real dimensão da Covid-19 no país”, prossegue a ativista, que acredita no caráter doloso de ações de representantes do governo federal em difundir, nas redes, informações falsas por meio de plataformas de mensageria.
Problemas para um país desigual
Em um país com desigualdades históricas e persistentes, o consumo de informação, em si mesmo, torna-se um problema. A qualidade da recepção das mensagens é um fator importante da questão, que lança luz sobre as políticas de letramento, criticidade em relação a conteúdos recebidos e a diversidade de fontes de informação. Segundo Brenda Cunha, assimetrias socioeconômicas e educacionais são pontos que devem ser considerados na análise do fenômeno da desinformação no Brasil, embora não sejam determinantes.
“A existência de déficits educacionais e de renda para grande parcela da população brasileira, associados a um processo de inclusão digital precário, impactam diretamente na qualidade dos meios de acesso à informação e, consequentemente, na qualidade do conteúdo das informações acessadas por esses grupos”, explica.
A cientista social avalia que “as restrições de acesso à internet a populações de baixa renda atuam como barreiras às fontes de informações confiáveis, tais como dados oficiais e orientações fornecidas por autoridades de saúde, por universidades e instituições dedicadas à pesquisa científica e por veículos de mídia comprometidos com a fidedignidade de suas fontes e com qualidade da apuração e exatidão dos dados”.
No entanto, Cunha faz a ressalva de que “considerar a importância dos fatores de renda e escolaridade não significa, contudo, afirmar uma relação determinística do fenômeno sobre essa população, muito menos que se restrinjam a elas”. Conforme entendimento da ativista, “a desinformação também atinge populações escolarizadas e pertencentes a estratos sociais de renda mais elevada”.
Para a diretora executiva do projeto Redes Cordiais, Clara Becker, o processo de desinformação instalado no país ameaça desde políticas públicas de saúde até o próprio sistema eleitoral. Segundo Becker, ao fim e ao cabo, a “saúde mental de todos é comprometida com o conteúdo tóxico resultante da guerra de narrativas” das notícias falsas. “Sem informação de qualidade as pessoas não podem fazer as melhores escolhas para suas vidas. As fake news podem levar o cidadão a votar ou deixar de votar em alguém, baseado em uma mentira ou deixar de se vacinar por ter sido exposto a teorias conspiratórias”, avalia.
Desafios e respostas institucionais
Com a proximidade das eleições deste ano, o temor de que a produção indiscriminada e dolosa de fake news coloque em xeque a lisura do processo eleitoral é uma realidade. Tanto é verdade que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) desenvolve, desde 2019, uma série de ações voltadas ao combate à desinformação, que vão desde programas educativos a penalidades. Uma dessas iniciativas foi o Programa de Enfrentamento à Desinformação, iniciado com foco nas Eleições 2020 e que, considerando a gravidade da questão, passou a ter caráter permanente no órgão.
“As medidas tomadas pela Justiça Eleitoral são uma reação a um panorama global de pós-verdade e extremismo político, evidenciado desde meados da década de 2010, e, a partir das eleições municipais brasileiras de 2018, a um cenário local de ataques cibernéticos e desacreditação midiática da instituição”, explica o servidor do Tribunal Regional Eleitoral de Sergipe e membro da Comissão Local de Enfrentamento à Desinformação Eleitoral, o professor Hermano de Oliveira Santos.
De acordo com Hermano, com o acirramento da disputa político-eleitoral no país, alguns partidos, candidatos e apoiadores adotaram a prática do “vale-tudo”, cujas consequências imediatas foram ações de desinformação contra adversários políticos, contra a justiça e contra o próprio processo eleitoral. “Nesse sentido, veiculam-se e difundem-se informações inverídicas segundo as quais o aparato tecnológico das eleições seria frágil e a Justiça Eleitoral seria parcial”, diz.
O servidor endossa que “diante de ações como essa, a Justiça Eleitoral vem atuando de modo consistente e firme em defesa de sua credibilidade institucional e, com mais razão, em defesa da estabilidade do Estado Democrático de Direito”. E complementa afirmando que “com a implantação do Programa Permanente de Enfrentamento à Desinformação, a Justiça Eleitoral demonstra claramente seu compromisso institucional de realizar eleições de modo eficiente e colaborar imparcialmente para a higidez do regime democrático”.
Para Ramênia Vieira, do Intervozes, as iniciativas do Judiciário, a exemplo da criação de uma página para centralizar informações confiáveis sobre as eleições e para recebimento de denúncias, são importantes “para pressionar as plataformas a se comprometerem com a lisura do processo eleitoral brasileiro”. A integrante do Intervozes entende, porém, que “o trabalho isolado da Justiça Eleitoral não vai ser efetivo se não houver respaldo de leis vindas do Congresso Nacional que regulem as plataformas digitais”.
Já no âmbito do Poder Legislativo, o ano de 2021 foi encerrado sem uma definição a respeito da criação de um instrumento legal que avance efetivamente em mecanismos de impedimento à circulação massiva de desinformação. Como agravante, em abril de 2022, portanto às vésperas de mais um processo eleitoral, a Câmara dos Deputados recusou a tramitação em regime de urgência do Projeto de Lei 2630/2020, que institui a Lei Brasileira de Liberdade, Responsabilidade e Transparência na Internet.
Ao não ser apreciado em regime de urgência, após ter passado por quase dois anos de discussões em comissões e audiências públicas organizadas pelo Senado e pela Câmara dos Deputados, o PL 2630 segue sem indicação de quando será discutido e votado pelos deputados e deputadas federais, o que impacta diretamente na possibilidade de tratamento pelo Estado brasileiro de uma questão que tem fragilizado a democracia do país.
Em publicação nas suas redes sociais, à época da derrota que solicitava a urgência da votação, a integrante da Coalizão Direitos na Rede, Bia Barbosa, escreveu que “quem perde são os cidadãos/ãs que diariamente têm seus dados explorados por anunciantes em redes sociais, que recebem disparos em massa antivacina, que acreditam em posts distribuídos por robôs, que não têm direito de apelar de uma moderação abusiva feita pelas plataformas. Perdemos nós que vemos as contas de autoridades sendo usadas ilegalmente c/recurso público p/ toda e qualquer disputa política na Internet. E que temos nosso direito à informação sobre como operam de fato as grandes plataformas negado em relatórios pouco ou nada transparentes”.
Para o presidente da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) das fake news, senador Ângelo Coronel (PSD-BA), a maior dificuldade em combater a desinformação nas plataformas digitais é o posicionamento das próprias plataformas, que não contribuem a contento para mitigar os efeitos da problemática.
“Eu vejo dificuldades efetivas no combate às fake news porque precisamos da contribuição das plataformas digitais, das empresas de mensageria, ou seja, WhatsApp, Telegram, porque só podemos combater se essas empresas contribuírem. É necessário banir contas que são criadas para depreciar, desinformar”, avalia o senador, que acredita que o PL poderá ajudar no combate à desinformação. “Esse projeto de lei, após a sua aprovação e sanção, será um grande balizador para combatermos as fake news”, destaca.
Para Coronel, as atividades da comissão, que está suspensa desde o início da pandemia da Covid-19, devem se voltar, agora, para o combate à prática de desinformação político-eleitoral. “Esperamos que a gente utilize o expediente da CPMI para evitar que as pessoas nas eleições deste ano utilizem meios digitais para promover seus candidatos e depreciar os seus concorrentes. Estamos buscando coibir isso. Precisamos também utilizar a CPMI de combate a fake news para tirar do ar vários canais, principalmente no YouTube, de pessoas que pregam contra a vacina”, defendeu.
Uma perspectiva punitivista, presente no posicionamento de alguns parlamentares da CPMI, tem preocupado entidades da sociedade civil. Ramênia Vieira, do Intervozes, defende o PL 2630 e entende que “as legislações penal e eleitoral brasileiras já possuem infrações que dão conta dos ilícitos mais graves envolvidos na produção e disseminação de informações falsas, discursos violentos e ataques às instituições. Dos crimes contra a honra, passando pela ameaça, a lavagem de dinheiro e os crimes contra o Estado democrático de direito são várias leis já constituídas de processar as redes profissionalizadas de desinformação e seus agentes. Em 2021, com a criação de um crime eleitoral tipificando a violência política, este cenário ganhou ainda mais um instrumento”. Por isso, para ela, “criar mais um enquadramento penal projeta riscos à liberdade de expressão legítima de usuários de internet, como nos casos de “crimes contra a honra” para cercear críticas legítimas a agentes poderosos.
Caminhos possíveis
É consenso que, para se avançar no combate efetivo à desinformação, é necessário trabalhar com as redes e plataformas digitais. “Nos últimos anos, ficou claro que eles desempenham um papel mediador essencial para garantir um ambiente seguro que não seja usado como ferramenta para manipular a opinião pública com a produção de fake news”, explica o jornalista e engenheiro da computação, Janeil Kempers.
Segundo Kempers, em um cenário adverso, em que não haja retorno das plataformas digitais às demandas da Justiça Eleitoral, uma das opções possíveis seria a intimação judicial. “Um caminho seria intimar judicialmente os representantes dessas plataformas e em último caso, como algumas não têm representação no Brasil, buscar a cooperação internacional, haja vista que, segundo o TSE, há um risco às eleições no país”, pontua.
O banimento dessas plataformas, a exemplo do que ocorreu brevemente com o Telegram, conforme entendimento de Kempers, não seria uma opção, “pois apesar de termos um lado negativo, que é o compartilhamento de informações falsas, milhões de pessoas utilizam essas plataformas como meio de trabalho legal”.
Para Clara Becker, não há soluções fáceis. A ativista de direitos digitais argumenta que “no caso da desinformação, as plataformas precisam ser mais transparentes e colaborativas, principalmente com anúncios e impulsionamentos de conteúdos. Mas os Estados também precisam avançar na questão regulatória, além de investigar e asfixiar financeiramente as redes de desinformação”. E completa que “as faculdades de comunicação precisam atualizar seus currículos para incluir técnicas de verificação de informações. O combate às fake news também passa pela educação midiática e pela consciência de cada um de se responsabilizar pelo conteúdo que compartilha. Até que o problema seja abordado de maneira multidisciplinar, não há como ser otimista”.
Já Brenda Cunha acredita que a solução do problema passa pela “alteração do modelo de negócio das plataformas baseadas em publicidade digital, sustentadas fundamentalmente na coleta excessiva de dados e na inflação das métricas de visualizações aos anunciantes”. A pesquisadora reforça também a necessidade de regulação. “Além disso, reforçar a regulação das plataformas a fim de ampliar as garantias aos usuários, tais como reparação por danos causados pela retirada de conteúdo legal, censura, responsabilização pela manutenção de conteúdo ilegal, por exemplo, e que sejam ampliados deveres que garantam maior transparência quanto aos critérios para a moderação e derrubada de conteúdo; além disso, é importante que seja garantido o devido processo para aqueles que tiveram seus conteúdos removidos”, diz.
Brenda entende ainda que “além de regular, é essencial que seja garantida uma efetiva aplicação da lei, seja sobre as plataformas, como aos usuários mal intencionados. No campo da política pública, vejo como positivo para um ambiente mais seguro nas redes, o fomento ao jornalismo plural e independente, bem como uma educação digital que prepare os usuários para lidar com os diferentes riscos na rede”.
Plataformas não contribuem
A postura do setor empresarial tem sido, porém, uma das principais dificuldades na discussão do PL 2630, que escancarara a ausência de compromisso das plataformas digitais com o tratamento democrático da matéria. Para a Coalizão Direitos na Rede, que congrega dezenas de entidades e ativistas de direitos digitais, “a maior parte das grandes plataformas da internet não se colocou de maneira construtiva no processo de debate e amadurecimento do texto, o que tem sido extremamente negativo”.
Acompanhando e participando ativamente dos debates sobre o referido Projeto de Lei, a CDR tem defendido a necessidade de uma regulação das plataformas digitais no Brasil como urgência democrática e de direitos humanos na era digital.
Numa extensa análise do último relatório do PL, a CDR lembrou que são fundamentais “parâmetros e princípios para garantir que estes gigantes do meio digital atuem prestando contas à sociedade e no sentido de princípios democráticos. Tais parâmetros devem enquadrar e dar transparência na atuação das plataformas e em seus modelos de negócio, assegurar garantias a usuários frente à moderação de conteúdos, por exemplo. Além disso, esta também é uma oportunidade para tratar da responsabilidade de agentes públicos atuando em redes sociais, figuras que protagonizaram graves processos recentes de desinformação e que não devem ser tuteladas apenas por empresas de redes sociais, mas também pelo Estado democrático de Direito”.
Cássio Santana é jornalista, mestre e doutorando em Comunicação e Culturas Contemporâneas, membro do Centro de Comunicação Democracia e Cidadania (CCDC) e do Centro de Estudo e Pesquisa em Análise do Discurso e Mídias (Cepad). É cofundador da plataforma Semiótica Antirracista.
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