(Foto: ABr)
"O atual alinhamento acrítico do Brasil aos EUA é uma espécie de terraplanismo estratégico, profundamente obtuso", escreve Marcelo Zero
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1. Causou estranheza a realização de exercícios conjuntos Brasil/EUA de adestramento combinado com o Exército dos EUA, denominados CORE (Combined Operations and Rotation Exercises). Eles ocorreram em dezembro de 2021, no Vale do Paraíba. Tais exercícios foram concebidos durante a XXXVI Conferência Bilateral de Estado-Maior BRASIL-EUA, realizada em outubro de 2020. Ou seja, foram fruto de uma decisão exclusiva do governo Bolsonaro.
2. Tais exercícios têm como objetivo principal incrementar a “interoperabilidade entre os dois exércitos”, o que evidencia o desejo dos EUA de usar as Forças Armadas do Brasil como forças auxiliares de seus interesses estratégicos. Com previsão de ocorrência todos os anos até 2028, eles foram iniciados, em 2021, entre os meses de janeiro e março, em Fort Polk, no Estado de Louisiana, EUA.
3. Tais exercícios conjuntos, contudo, não deveriam surpreender.
4. Na realidade, eles se inserem numa clara tendência de subalternidade geoestratégica aos EUA, que se implantou a partir do golpe de 2016 e se consolidou no governo de Bolsonaro.
5. É preciso lembrar que o Exército dos EUA participou, a convite do governo Temer, de um exercício militar conjunto que foi realizado, em novembro de 2017, na tríplice fronteira amazônica entre Brasil, Peru e Colômbia. Tratou-se de uma decisão inédita na história militar recente do Brasil, que surpreendeu a todos.
6. O nosso país, até a chegada dos governos conservadores, vinha investindo na gestão soberana da Amazônia, em parcerias com países da América do Sul, estabelecidas em mecanismos de cooperação regionais, particularmente os da Unasul e os da Organização do Tratado de Cooperação Amazônica (OTCA). Assim, esse convite a uma superpotência estrangeira, que não faz parte da Bacia Hidrográfica da Amazônia, representou um “ponto fora da curva”, na tradição de afirmação da soberania nacional numa região estratégica para o país.
7. No mesmo diapasão, o Ministério da Defesa do Brasil e o Departamento de Defesa dos EUA assinaram, em data aproximada, o Convênio para Intercâmbio de Informações em Pesquisa e Desenvolvimento, ou MIEA (Master Information Exchange Agreement), na sigla em inglês. Com tal decisão, os governos conservadores decidiram investir na cooperação com os EUA, como forma de “desenvolver” nossa indústria de defesa. Na prática, isso significa renunciar a ter real autonomia no campo do desenvolvimento industrial e tecnológico da defesa nacional.
8. Tal convênio foi complementado por outro ato internacional, denominado Acordo para a Pesquisa, Desenvolvimento, Teste e Avaliação de Projetos em Matéria de Defesa (RDT&E, no acrônimo inglês), o qual possibilita o acesso do Brasil ao bilionário fundo norte-americano para o desenvolvimento tecnológico da defesa (cerca de US$ 100 bilhões anuais) e o desenvolvimento de “produtos binacionais” em armamentos.
9. Ao que tudo indica, setores das Forças Armadas, hegemônicos após o golpe, renunciaram ao desenvolvimento tecnológico relativamente autônomo e, agora, apostam numa relação de dependência com os EUA para o seu reaparelhamento.
10. Mais recentemente, houve também uma série de iniciativas que tendem a comprometer a defesa do Brasil, entre as quais destacamos a inserção das Forças Armadas do Brasil no Comando Sul dos EUA.
11. Com efeito, contrariando toda a nossa tradição na área da defesa nacional, o Brasil aceitou submeter nossas Forças Armadas ao Comando Sul dos EUA.
12. O Comando Sul (SOUTHCOM) é um dos seis comandos unificados com foco geográfico dos EUA, responsável pelas operações militares americanas no Caribe, América Central e América do Sul, bem como pela cooperação de segurança com as forças de defesa e segurança pública na região.
13. O Comando Sul tem como tarefa fundamental implementar a política de segurança dos EUA nas Américas Central e do Sul e no Caribe. Dessa forma, o Brasil se converteu em instrumento dessa política de segurança dos EUA, em detrimento de seus interesses próprios na área da defesa.
14. Observe-se que um dos objetivos dessa política de segurança dos EUA para a região é obrigar as forças armadas desses países a cooperar com o combate ao tráfico de drogas, o que já provocou danos enormes às forças armadas da Colômbia e do México. Outro grande objetivo é o de possibilitar intervenções para combater o “terrorismo” e impedir a influência de “outras potências” na região.
15. Tal subordinação exigirá que o Brasil descarte cooperação militar com países rivais dos EUA ou que tenha política de defesa autônoma, baseada em seus próprios interesses.
16. Como assinalou o comandante do SOUTHCOM, almirante Craig Faller, em depoimento ao Senado dos EUA, no início de 2020: “Se os governos da América Latina e do Caribe continuarem a usar sistemas chineses de informação, nossa habilidade e capacidade de compartilhar informações em rede será afetada.”
17. Ressalte-se que essa subordinação estratégica das forças armadas do Brasil será reforçada com a nova condição do país de aliado extrarregional da OTAN, que deverá propiciar a extensão da jurisdição daquela organização do Atlântico Norte para as águas do Atlântico Sul, onde se localiza o pré-sal.
18. Dessa forma, a sinergia virtuosa entre política externa ativa e altiva e a política de defesa com uma base industrial sólida, proposta nos governos do PT, foi substituída, nos governos pós-golpe, por um círculo vicioso formado por uma política externa e de defesa que colocam os interesses do Brasil na órbita subalterna dos interesses geoestratégicos dos EUA e implicam renúncia a forças armadas bem aparelhadas e ao desenvolvimento tecnológico autônomo, nessa área estratégica.
19. Tal círculo vicioso de fragilização dificulta muito a projeção dos interesses nacionais no exterior e redunda, inevitavelmente, na transformação do Brasil num país menor, de escasso protagonismo internacional ou regional.
20. A bem da verdade, tudo isso evidencia a “colombianização” estratégica do Brasil. Isto é, a transformação do Brasil em país que apenas secunda, de forma subalterna e acrítica, interesses que não são o seus e que colidem com a integração da América do Sul e a transformação do subcontinente em uma zona de paz e de desenvolvimento. Compramos brigas que não são nossas.
21. O atual alinhamento acrítico do Brasil aos EUA, mantido mesmo com as fricções do governo Bolsonaro com o governo Biden, tende a criar grande instabilidade geopolítica na região e submete nosso país a conflitos que não têm nenhuma relação com seus interesses nacionais.
22. É uma espécie de terraplanismo estratégico, profundamente obtuso, que só se justifica com base numa visão anacrônica do mundo, herdada da Guerra Fria.
23. A recente guerra da Ucrânia bem demonstra o perigo de não se ter uma política externa e uma política de defesa baseadas em interesses nacionais, as quais seguem, ao contrário, imperativos de potências externas.
24. Recolocar a política de defesa e a política externa do Brasil no rumo correto dos interesses nacionais e da integração regional, buscando construir um subcontinente de paz e cooperação será tarefa fundamental para o futuro governo do Brasil. Não podemos cair em armadilhas estratégicas baseadas em ideologias obsoletas e em visões de mundo ultrapassadas.
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