terça-feira, 19 de julho de 2022

O que sobrou de 1932?

Imagem: C. Cagnin

Por LINCOLN SECCO*

Cabe olhar a história sempre da esquerda para a direita para não sermos eternos expectadores no teatro das ilusões constitucionalistas

Em 1932 “São Paulo”[i] reagiu contra a Revolução de 1930 e desencadeou o maior movimento militar da história do Brasil. Não retomou jamais o poder que se lhe escapara; mas exerceu, desde então, um simulacro de poder moderador na política nacional.

É provável que novas abordagens daquele momento sejam doravante influenciadas pelo fim da “Nova República”. Em 2016 as passeatas das classes médias, financiadas por empresários e latifundiários, em favor da derrubada do governo, tiveram forte apelo na capital paulista. Foi assim também em 1932 quando São Paulo exibiu sua formidável capacidade econômica e propagandística em favor de suas classes conservadoras.

A natureza estratégica de sua capital revelou-se em diversos momentos. O centro formado pela Praça da Sé e a área dominada pelo velho triângulo[ii] encheram-se de manifestantes em 1932. Aos poucos ele se espraiava também pela cidade nova e abrangia o entorno da Praça da República e as ruas retilíneas que a ligavam ao Chá, ao Teatro Municipal, ao Mappin e ao Largo do Paissandu. O dia 23 de maio transcorreu entre a Praça do Patriarca e a Rua Barão de Itapetininga.

Nos anos subsequentes, os integralistas tentaram inscrever-se na cartografia ideológica da urbe. Até que uma de suas demonstrações foi desbaratada por anti-fascistas em outubro de 1934. As classes conservadoras voltaram à carga e, em 19 de março de 1964, na Praça da Sé, juntaram seus apoiadores em favor do golpe militar. Por outro lado, não se pode olvidar a mesma Praça da Sé ou o Vale do Anhangabaú lotados na campanha das “Diretas Já!” em 1984. Em 1992 a Brigadeiro Luiz Antônio e a Consolação já serviam de ligação entre o centro histórico e a centralidade econômica da Avenida Paulista. Nessas vias houve megaprotestos contra o presidente Fernando Collor de Mello.

Nos protestos de 2013 a extrema direita apropriou-se de manifestações que irradiaram pelo Brasil. Em São Paulo, a novíssima esquerda dispersou-se, perdida em longas caminhadas pela Marginal Tietê ou Avenida Nove de Julho. Não era essa a história da cidade. A direita situou-se no novo centro, na Avenida Paulista. Embora o veio financeiro do país já se tivesse deslocado à Faria Lima.

Em 2016 a campanha por novo golpe de Estado concentrou-se na Avenida Paulista. Como em junho de 2013, havia indivíduos portando símbolos da independência paulista, enquanto celebridades de ocasião e pretendentes ao posto de digital influencer posavam ao lado de policiais para uma selfie.

Apesar daquelas expressões marginais, o sentimento separatista não tem a mínima incidência na política prática do Estado de São Paulo, mas representa a sobrevivência de uma ideia que remonta ao Império e que atingiu o seu zênite em 1932. Mas mesmo lá, a independência de São Paulo foi defendida só ocasionalmente, pois o interesse das classes conservadoras paulistas era retomar o controle da política nacional. O separatismo restringiu-se a importantes intelectuais como Monteiro Lobato, José Alcântara Machado, o bibliófilo Rubens Borba de Morais e o historiador Alfredo Ellis Júnior que editou o jornal O separatista.

O que sobrou de tudo aquilo? As comemorações de 1932 se acanharam no escorrer dos anos, reduzidas a um ato comemorativo de ex-combatentes e da Polícia Militar de São Paulo. A PM, embora seja uma instituição nova, criada a mando da ditadura em dezembro de 1969 pelo governador nomeado Roberto Abreu Sodré, herdou o patrimônio da antiga Força Pública, que combateu em 1932. Cujo comandante, aliás, foi o primeiro a render-se.

A plateia eclética daqueles desfiles era de membros de academias de letras e monarquistas empedernidos; a juventude janista e militantes da TFP; o sodalício do Instituto histórico e a Associação de Veteranos de 32; motociclistas com jaqueta de couro e desenho de caveira e halterofilistas do Fonseca’s Gang; frequentadores de clubes de tiro e carecas do subúrbio.

No século XXI outros movimentos apareceram, como Liberdade Paulista e São Paulo para os Paulistas. São organizações virtuais e descontínuas que hibernam em redes sociais e despertam em momentos de adensamento da extrema direita. E eis que a oportunidade histórica surgiu com o bolsonarismo.

Talvez Jair Bolsonaro sequer saiba o que houve em 1932, embora alguns de seus apoiadores paulistas sim. A ditadura de 64 também não se interessava muito pelo assunto devido ao caráter regionalista da data. O pai do último ditador, General Figueiredo, foi um dos comandantes da revolta de São Paulo e na versão oficial das Forças Armadas o conflito é tratado como uma luta em que combatentes de ambas as partes teriam mostrado o valor do soldado brasileiro e a capacidade de trabalho da população.

O poder que São Paulo ergueu contra o governo Dilma Roussef reeditou uma vez mais o espírito revanchista de 1932. No entanto, é preciso ir além da dicotomia Vargas x São Paulo, porque se o conflito envolveu a alta política e as trincheiras, também exigiu da classe operária o esforço para uma guerra que não era a sua. Isso não significa igualar os dois lados e nem recusar os direitos trabalhistas conquistados após 1930.

Cabe olhar a história sempre da esquerda para a direita, pois a classe trabalhadora sabe o abismo de direitos sociais que separa um governo de outro; mas também devemos olhar de baixo para o andar de cima onde conservadores e progressistas ensaiam sua contradança dentro de uma ordem estabelecida. Ou seremos eternos expectadores no teatro das ilusões constitucionalistas.

*Lincoln Secco é professor do Departamento de História da USP. Autor, entre outros livros, de História do PT (Ateliê).

 

Notas


[i]Aqui entendido pelas suas classes conservadoras e os outros grupos sociais mobilizáveis por elas.

[ii] Ruas XV de Novembro, São Bento e Direita.

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