Por HENRI ACSELRAD*
Considerações sobre a situação dos vulneráveis nas cidades
A desmontagem das políticas públicas agravou visivelmente as condições de vida nas cidades. Logo que os rumos da história afastarem do governo os responsáveis pelo aguçamento desta crise, a perspectiva de se reconstruir políticas urbanas vai requerer, de forma mais ampla, uma reconstrução das relações sociais nas cidades. Isto porque o liberal-autoritarismo que se instalou no governo em 2019, ao mesmo tempo em que concentrou nas cidades os efeitos do desemprego e do aumento da desigualdade, nelas disseminou os maus fluidos de uma ideologia social-darwinista que aguçou o preconceito e a violência contra negros e pobres.
Um grande desafio é o de buscar construir, nas cidades, laços de urbanidade, respeito aos direitos e combate ao racismo. Juntamente com as ações de enfrentamento às desigualdades no acesso aos recursos da cidade, as políticas urbanas vão precisar do apoio de processos educativos, que enfrentem, nas cidades, as práticas que buscam inferiorizar os despossuídos. Há muito o que fazer para se desembaraçar de uma sociabilidade urbana que ainda guarda os traços das hierarquias coloniais.
No campo das ações concretas, cabe interromper os processos que retiram dos mais pobres suas capacidades de autodefesa ante os riscos urbanos como enchentes, deslizamentos, proximidade com águas contaminadas etc. A proteção ambiental equânime é uma responsabilidade política do Estado. Para isso, os processos decisórios devem cuidar de proteger, dos riscos, os grupos sociais menos capazes de se fazer ouvir na esfera pública – seja nas decisões de localização de equipamentos perigosos ou nos impactos inigualitários mediados pelo mercado de terras. Não se deve, por exemplo, admitir a flexibilização de normas urbanas e ambientais em nome da atração de investimentos poluentes que penalizam correntemente os grupos já vulnerabilizados.
O Estado, em sua configuração corrente de máquina pública, costuma – hoje, podemos dizer costumava – se interessar em identificar, medir e localizar os ditos “vulneráveis”. Isto se fazia através do mapeamento de situações estáticas, retratadas num determinado momento, assim como é feito no mapa da fome. Mas não se costuma atentar para os processos de vulnerabilização. Ora, a vulnerabilidade decorre de processos de vulnerabilização – de retirada das condições que permitiriam a certos grupos se defenderem das ameaças, riscos e agravos.
Nas definições mais correntes, a condição de vulnerabilidade costuma ser posta nos sujeitos sociais e não nos processos que os tornam vulneráveis.[i] Uma alternativa mais consequente é, porém, a de definir os vulneráveis como vítimas de uma “proteção desigual”. Esta é, por exemplo, a formulação do Movimento de Justiça Ambiental, que procura pôr o foco no déficit de responsabilidade do Estado e não apenas no déficit de capacidade de defesa dos sujeitos. A proteção ambiental equânime, do ponto de vista de renda, cor e gênero, é, pois, algo devido aos cidadãos como um direito, um princípio cujo respeito permitiria prevenir a criação de situações de desigualdade ambiental, em que males urbanos atingem mais que proporcionalmente grupos negros e de baixa renda.
Ações afirmativas urbanas devem, por sua vez, buscar desfazer as situações de racismo ambiental já existentes, que penalizam – nas condições ambientais de trabalho, moradia e deslocamento – em particular as populações não-brancas. Programas de arborização, por exemplo, devem ser estimulados a serem destinados prioritariamente a áreas periféricas atingidas por ilhas de calor. A transição ecológica, que se propõe a substituir as fontes de energia fóssil, deve ser feita com justiça ambiental.
Ela não se deve resumir a expedientes estritamente tecnológicos, mas abranger reordenamentos sociais e espaciais que busquem despenalizar os grupos vulnerabilizados e prevenir a possibilidade de transferência de danos ambientais para eles. Ao lado das ações de adaptação a eventos climáticos extremos, devem ter destaque aquelas que previnem desastres, o que implica contar com a percepção de riscos da própria população. Ao lado dos esquemas técnicos de observação climatológica e geotécnica, a prevenção deve buscar valorizar o saber ecológico dos próprios moradores e lançadores de alerta através, por exemplo, de mapeamentos populares de riscos ambientais, industriais e de desastres.
Dentre as especificidades sócio-territoriais a serem consideradas nas políticas urbanas, destaca-se a necessidade de reconhecer direitos territoriais quilombolas nas cidades, através de ações articuladas com as políticas culturais e de proteção ao patrimônio histórico.[ii] Nas áreas relevantes para os direitos indígenas, notadamente nas cidades amazônicas e do Nordeste, cabe dar visibilidade à memória dos lugares e aos lugares de memória.[iii] Trata-se de pôr em evidência a presença do que é culturalmente diverso, não redutível a relações de consumo, que procure recuperar na cidade a experiência do encontro entre diferentes histórias e culturas.
A reconstrução de relações sociais urbanas implica, também, em problematizar as antigas fronteiras entre o rural e o urbano, dialogando com as diferentes formas de presença do campo na cidade e da cidade no campo. O espaço é socialmente produzido sob formas particulares de “ruralidade” e “urbanidade”: áreas de transição urbano-rural, espaços pluri-funcionais e híbridos de usos do solo que apresentam estruturas fundiárias e sociais internamente heterogêneas.[iv] Cabe reconhecer a existência de espaços plurilocais, associados a uma diversidade de identidades, com o movimento pendular de sujeitos portadores de uma memória que é transportada na migração rural-urbano-rural. O deslocamento espacial das pessoas não apaga a memória relativa a suas culturas materiais e de usos do solo.
Isto porque a periurbanização tem se dado pela expansão das cidades sobre áreas antes dedicadas à produção agrícola, mas também através da criação de localidades onde se instalam populações recém-chegadas do campo, que desenvolvem formas de vivência da cidade que são próprias a uma cultura rural. A agricultura urbana é uma expressão destas práticas que acionam redes de interação tanto em âmbitos urbanos como rurais.
A consideração desta presença do campo na cidade – ou seja dos hábitos de trabalhadores que foram compelidos a deixar o campo – é parte desta disputa para fazer da cidade um espaço público, com áreas comuns compartilhadas por gente que ganha autonomia em relação ao mercado centralizado – tanto da cadeia agroquímica como do imobiliário. As disputas pelo sentido da vida urbana passam, pois, pela afirmação das identidades diversas de uma população que luta para não ser tratada como refugiada em seu próprio país[v] e para retomar o território histórico de seus direitos.
*Henri Acselrad é professor do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPPUR/UFRJ).
Apresentação no painel “Reconstrução e transformação das cidades brasileiras; diálogos pelo Brasil”, organizado pela Fundação Perseu Abramo, em 16/8/2022.
Notas
[i] H. Acselrad, Vulnerabilidade social, conflito ambiental e regulação urbana, O Social em Questão, Ano XVIII, n. 33, 2015, p. 57-68.
[ii] J. M. Arruti, Quilombos e cidades: breve ensaio sobre processos e dicotomias, In: P. Birman, M. P. Leite, C. Machado e S. de Sá Carneiro (orgs.) Dispositivos urbanos e trama dos viventes: ordens e resistências, ed. FGV, Rio de Janeiro, 2015, p. 217-238; F. Mota, As vozes do samba: um percurso de luta da comunidade quilombola do Sacopã. In: M.Guran. (Org.). Roteiro da herança africana no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2018, p. 124-130. S. Rodriguez, Lugar, memórias e narrativas da preservação nos quilombos da cidade do Rio de Janeiro, Tese de Doutorado, Instituto de Geociências, Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2012. C.E.Marques, D.S.Simão, A.L.Sampaio, Territórios e direitos entre os quilombos urbanos de Belo Horizonte: o caso de Mangueiras, in Quilombolas: reivindicações e judicialização dos conflitos, Cadernos de Debates Nova Cartografia Social, vol.1, n.3, Manaus, 2012, p. 147-161.
[iii] A. W. de Almeida, A nova “fisionomia étnica” das cidades amazônicas, in R.Marin e A.Almeida (orgs.), Terra urbana e territórios na Pan-Amazônia, PNCSA, Manaus, 2009, p.45-67. Ver, a título de exemplo, os diversos fascículos do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia; entre outros, Associação dos indígenas da área metropolitana de Belém, Indígenas na cidade de Belém; Associação Poterika´ra Numiâ, Mulheres indígenas e artesãos do Alto Rio Negro em Manaus; Comunidade Sateré-Mawé Y´apyrehhyt, Indígenas na cidade de Manaus: os Sateré-mawé no Bairro Redenção; Associação Comunidade Wotchimaücü, Indígenas Tikuna na cidade de Manaus; Nova Cartografia Social da Amazônia, Belém e Manaus, 2006, 2007 e 2010.
[iv] Pedro Martins, Hector Ávila Sánchez, Tania Welter (orgs.). Território e Sociabilidade – relatos latinoamericanos, Ed. UDESC, Florianópolis, 2012.
[v] Julián Fuks, A Ocupação, Cia das Letras, São Paulo, 2019, p. 80
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