terça-feira, 6 de setembro de 2022

O SUS chantageado


Por PAULO CAPEL NARVAI*

É urgente rever o papel de “tabelas” na remuneração do trabalho em saúde e dar transparência às receitas e despesas de qualquer organização que utilize recursos do SUS

“Se fosse um fato isolado, seria fácil de resolver. O problema é que é chantagem o tempo todo” – ouvi de um experiente gestor, quando comentávamos sobre a decisão tomada pela direção do Hospital A.C. Camargo, especializado em tratamento de câncer, de suspender a partir de dezembro o atendimento de “pacientes do SUS”, em São Paulo, anunciada em meados de agosto de 2022.

O anúncio foi seguido de compreensível indignação generalizada.

A perplexidade se justificava, pois o A. C. Camargo Cancer Center, “especializado em vida”, como diz o slogan da instituição, tem mais de meio século de existência e, durante seus quase 70 anos de atividades, teve sua atuação marcada pelas necessidades de pessoas com câncer, independentemente de suas condições socioeconômicas. A decisão, inusitada, desconsiderava a história do próprio hospital, inaugurado em 1953.

A história do “A.C. Camargo Cancer Center” tem origem em uma bela história de amor entre um jovem médico oncologista e uma jornalista poliglota, unidos também pela crença na filantropia como instrumento útil para minorar o sofrimento de seres humanos enfermos. O trabalho de Antônio Prudente Meireles de Moraes e Carmen Annes Dias resultou no hospital paulistano que é hoje uma referência nacional e internacional no tratamento e nas pesquisas científicas do câncer.

Carmen, que ficaria mais conhecida como Carmen Prudente, liderou a comunidade paulista para obter doações para enfrentar o câncer. A primeira Campanha Contra o Câncer, ocorreu logo após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, promovida pela Associação Paulista de Combate ao Câncer (APCC), presidida à época por Antônio Cândido de Camargo. Essa história registra importantes esforços da comunidade para reunir recursos para construir um hospital especializado em câncer. Segundo a instituição, o A. C. Camargo foi “o primeiro hospital de São Paulo construído com o dinheiro da população, e a ela destinado, sem ligação a nenhuma instituição de saúde oficial brasileira, sem respaldo financeiro de nenhuma organização religiosa, tampouco patrocínio de colônias de imigrantes, como era usual”.

Porém, como ocorre invariavelmente, no Brasil e em outros países, instituições dessa envergadura não são viáveis apenas com doações. A caridade e a filantropia são suficientes para financiar a obra e erguer a construção física. Mas donativos são insuficientes para manter o funcionamento. E quando as contas não fecham, os gestores batem às portas dos governos, em busca de recursos públicos. Costumam querer os aportes, mas rejeitar controles públicos. Tratam sua contabilidade como negócio privado, como propriedade particular que, efetivamente, são. Aí está, porém, o núcleo do problema.

No presente, o “A. C. Camargo Cancer Center” – que este articulista prefere denominar de Hospital A. C. Camargo – é uma unidade dependente de recursos públicos, como deixou claro o anúncio de agosto sobre “pacientes do SUS”. O hospital até poderia, com algum esforço, ser economicamente viável sem os recursos do SUS, deixando de atender o que se vem denominando, impropriamente, “pacientes do SUS”, mas, para seguir produzindo as investigações científicas que realiza, seguiria dependendo – muito – dos fundos que financiam pesquisas científicas. Fundos públicos. E seria ético valer-se, de um lado, de recursos públicos e, de outro lado, selecionar pacientes sob o critério “SUS”, “não-SUS”?

O que diriam sobre isso Carmen e Antônio Prudente?

Dirigentes do A. C. Camargo afirmam que “a tabela SUS” para consultas, procedimentos e cirurgias estaria “defasada”, o que requer que anualmente “o hospital tenha que aportar recursos próprios para cobrir o rombo”.

Os conceitos de “paciente do SUS” e “tabela SUS” merecem algumas considerações antes de se prosseguir analisando o episódio.

Unidades de saúde, financiadas no todo ou em parte por recursos públicos, devem prestar assistência a qualquer pessoa que necessite de cuidados de saúde, sem qualquer tipo de discriminação, sob os princípios constitucionais da saúde como “direito de todos” e do “acesso universal” (art. 196), de modo compatível com o nível de atenção em que atuam, o qual deve ser a única restrição eticamente válida para recusar assistência, ainda assim sob certas condições. Por essa razão, a expressão “paciente do SUS” corresponde a uma categorização das pessoas que vem sendo feita de modo ilegal, ilegítima e antiética e, ainda que tenha finalidade “apenas administrativa”, deve ser combatida por todos os defensores do SUS e do direito à saúde, pois um paciente é, antes de tudo, alguém que necessita cuidados de saúde, não importando quem seja – entendimento este, aliás, em total conformidade com os valores humanistas que animaram as ações de Antônio e Carmen Prudente.

A expressão “paciente do SUS” serve, portanto, conforme ouvi, apenas para chantagear administradores públicos, responsáveis pelo SUS. O termo chantagem me pareceu, de início, exagerado. Mas constatei que, nesses casos, seu emprego é tecnicamente correto. As duas acepções mais frequentes para o termo corroboram esse entendimento e se referem: (1) à tentativa de obtenção de dinheiro ou favores com ameaça de escândalo ou outras consequências nefastas, no caso de negativa; e, (2) à pressão para conseguir alguma coisa. É, portanto, de chantagem que se trata sim.

A prática, aliás, está generalizada e consolidada no Brasil. Veja-se o caso das Santas Casas. Estima-se que o país conta com mais de 2.500 hospitais que se caracterizam com essa denominação. Constituem um importante capital social e um recurso sanitário de valor inestimável, construído ao longo de décadas e, em alguns casos, séculos. Mas esse patrimônio notável convive com graves e crônicos problemas de gestão.

Por vezes, alguma Santa Casa encerra suas atividades, prejudicando as comunidades a que serviam. Mas ao invés de se integrarem ainda mais fortemente ao SUS, muitas dessas empresas (de propriedade particular, registre-se) optam por criar “planos de saúde”, com a ilusão de que a solução para seus problemas está no mercado. Naufragando em dívidas, batem às portas dos governos, com especial predileção pelo governo federal. Parlamentares solícitos, com suas emendas ao orçamento, tanto as públicas quanto as secretas, completam o desserviço à política pública de saúde e contribuem para desorganizar a governança do SUS, atropelando o planejamento setorial e impondo aos gestores loco-regionais pautas desconectadas das necessidades de saúde das populações desses territórios.

Sobre isso manifestou-se recentemente o Conselho de Secretarias Municipais de Saúde de São Paulo (Cosems-SP), publicando uma dura crítica ao chamado “orçamento secreto”, segundo o qual um deputado ou senador, valendo-se de emendas parlamentares ao orçamento, pode alocar recursos federais sem a necessidade de especificar em que o dinheiro deve ser aplicado. Esse mecanismo deforma o planejamento em saúde. Um exemplo eloquente ocorreu, segundo o jornalista Breno Pires, na reportagem “Farra ilimitada” (Revista Piauí, n°.190, p.14), em Pedreiras, no Maranhão. Para tentar justificar a alocação de dinheiro público na saúde, a Prefeitura informou ter realizado 540,6 mil extrações dentárias em sua população de cerca de 39 mil habitantes. Esse número, de mais de meio milhão de cirurgias dentárias, corresponde a mais de quatro vezes o realizado pelo SUS na cidade de São Paulo, a maior do hemisfério Sul.

Trata-se, evidentemente, de um dado espúrio. Por isso, dentre outros motivos, o Cosems-SP afirmou que “este processo de desregulamentação, flexibilização e crescimento representativo da destinação parlamentar no orçamento público no SUS vem enfraquecendo os alicerces do sistema, corroendo as competências dos espaços de pactuação interfederativa e participação social e criando novos obstáculos à implementação dos princípios do SUS, especialmente da equidade”.

Empresas de propriedade particular que se relacionam com o SUS de algum modo, contratadas para produzir cuidados de saúde, recebem recursos públicos com essa finalidade. Assumem, portanto, a gestão do exercício de um direito social (Constituição da República de 1988, art. 6º) e se propõem a produzir “ações e serviços de saúde” que o texto constitucional define como sendo de “relevância pública” (art. 197). Tais pessoas jurídicas operam, portanto, com algo (o cuidado de saúde) que não é mercadoria, mas direito social e que, por suas características, não pode ser gerido como um bem ou serviço qualquer. Gestores de saúde não se equivalem, nesse aspecto, a gerentes de supermercados, postos de gasolina, administradores de uma rodovia, ou uma loja qualquer. Para tomar decisões precisam de muito mais do que planilhas e alguns gráficos.

O significado mais profundo dessa objeção às planilhas como recurso administrativo-financeiro no setor saúde foi magistralmente enunciado por Carlos Gentile de Mello, ainda nos anos 1980, quando o microcomputador pessoal sequer havia sido inventado. Ao criticar o sistema de remuneração de ações e serviços de saúde adotado à época pelo extinto Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), Gentile costumava repetir que o financiamento dos serviços segundo o número de unidades de serviços médicos executados era “um fator incontrolável de corrupção”. No livro “SUS: uma reforma revolucionária”, registro que Gentile sempre contava, bem-humorado em suas palestras, que de tanto ouvi-lo dizer que “o pagamento por unidade de serviço é um fator incontrolável de corrupção”, quando alguém o procurava pelo telefone e ele não estava, todos em sua casa explicavam que ele não estava e completavam: “mas ele mandou dizer que o pagamento por unidade de serviço é um fator incontrolável de corrupção”.

Sua crítica contundente e reiterada ao modelo que se consolidara na chamada “medicina previdenciária”, e que décadas depois segue essencialmente inalterado no SUS, foi mencionada num trecho da notícia sobre o seu falecimento, em 28/10/1982, pelo jornal Folha de S.Paulo, do qual Carlos Gentile de Mello foi articulista: “Crítico do modelo de medicina previdenciária adotado no Brasil, Gentile entendia que a forma de remuneração dos hospitais particulares conveniados do Inamps, baseada no pagamento por Unidade de Serviço, induz ao superfaturamento e à proliferação de atos médicos desnecessários provocando a exaustão dos recursos destinados à assistência médica”.

O tal modelo inampiano de remuneração de ações e serviços de saúde se reproduz atualmente como metástase e o caso do Hospital A. C. Camargo é apenas um deles, sob a forma da “tabela SUS”. O modelo é também adotado nas relações com as Santas Casas.

O problema é que o modelo de remuneração da produção de cuidados de saúde com base em “tabela de procedimentos” é péssimo, pois traz para o interior do SUS e para as relações entre entes federativos e as organizações da chamada saúde complementar, o que há de pior na saúde suplementar – justamente a ideia de que cuidados de saúde podem ser “planilhados” com base em estimativas de preços de serviços definidos pelo mercado, acrescidos por margens de lucros e outras deformações que enviesam o cálculo de custos das ações e serviços de saúde.

A “tabela SUS” tem origem na “tabela do Inamps”, que é mãe também, de certo modo, do antigo Rol de Procedimentos e Eventos em Saúde (RPES), uma lista dos procedimentos, exames e tratamentos com cobertura obrigatória pelos “planos de saúde”, atualmente transformado na TUSS, a Terminologia Unificada da Saúde Suplementar, uma espécie de glossário contendo nomes e descrições de procedimentos de saúde conforme o padrão de nomenclatura estabelecido pelo segmento empresarial que atua na saúde suplementar, sob os auspícios da ANS. O RPES/TUSS é o que se conhece como “tabela dos planos”, ou da saúde suplementar, pois a cada item da tabela são fixados valores com base em preços definidos pelo mercado.

Brandir a “tabela dos planos” na testa de gestores do SUS, como fez o Hospital A. C. Camargo em São Paulo, pedindo-lhes mais dinheiro, não é apenas inadequado, mas sobretudo injusto.

É inadequado, pois preço e custo são conceitos muito diferentes. O cálculo dos custos de ações e operações de saúde com base em valores implicados nessas atividades nos serviços públicos do SUS, incluindo a parte relacionada com a remuneração de profissionais de saúde e pessoal administrativo costuma resultar em valores bem diferentes dos que constam nas “tabelas dos planos”. Mas a prática da chantagem aos gestores do SUS é além de inadequada também injusta, pois deve-se operar com o pressuposto de que o serviço público remunera profissionais (de saúde, no caso), com base na necessidade social desse trabalho, que deve ser realizado em condições adequadas, sob o princípio do trabalho decente, e tendo como referência não a venda de uma mercadoria, mas o atendimento a uma necessidade social. Isso significa que, no âmbito do SUS, a remuneração profissional deve se dar sob a forma assalariada e não fragmentada segundo procedimentos, ou tarefa realizada.

No SUS, a tabela herdada do Inamps deveria servir apenas como uma espécie de memória de cálculo para os custos de ações e operações no âmbito do sistema, tendo em vista a estimativa de recursos a serem transferidos para estados e municípios, relativos à parte federal do financiamento do SUS, mas sempre levando em conta os demais aspectos referidos no art. 35 da Lei 8.080/90, como os perfis demográfico e epidemiológico da população da região, as características quantitativas e qualitativas da rede de saúde na área, o desempenho (técnico, econômico e financeiro) no período anterior, a previsão de investimentos na rede de atenção, dentre outros. Porém, prestadores privados, como os administradores do Hospital A. C. Camargo de São Paulo, sentem-se à vontade para comparar “tabelas” e reclamar da “defasagem” do SUS. Erram ao proceder desse modo, pois comparam “tabelas” como se seus conteúdos fossem comparáveis. Não são. Não devem ser, pois têm finalidade e ocupam-se de objetos muito diferentes.

Cabe reafirmar, porém, como foi enfatizado pelo movimento da Reforma Sanitária no período histórico de criação do SUS, em que a credibilidade do Inamps era baixíssima em decorrência das deformações do financiamento derivadas do emprego e das distorções da sua “tabela”, que o principal problema da remuneração de cuidados de saúde com base em procedimentos individuais é que esse mecanismo não leva em conta que a produção do cuidado é também um processo de trabalho coletivo. Desde o início os principais líderes da Reforma Sanitária rejeitaram frontalmente que o SUS reproduzisse as práticas de remuneração dos cuidados de saúde consolidadas na medicina previdenciária.

Mas essa reprodução é justamente o que se tem visto nesses 34 anos de existência do SUS, seja para transferir recursos da União para estados e municípios, seja para “pagar” prestadores privados, como as Santas Casas, as Organizações Sociais de Saúde, dentre outros. A consequente dispersão de recursos, e sua má alocação, agrava ainda mais o cenário de subfinanciamento crônico do SUS.

Por isso, especialistas em todo o mundo convergem quanto à necessidade de a remuneração do trabalho em saúde ser feita sob a forma de salário, sob vínculos trabalhistas sólidos, estabilidade funcional definida em carreiras gerenciadas por profissionais do setor, padrões salariais compatíveis com a economia de cada país, respeito à legislação que deve ser orientada à proteção dos profissionais, assegurando-lhes condições de trabalho dignas. No caso brasileiro, tudo isso deve se dar sob controle público de conferências e conselhos de saúde.

Essa perspectiva nada tem a ver, decerto, com privatizações, terceirizações e quarteirizações. Muito menos com a “uberização” do trabalho no SUS, sob a referência de “tabelas de preços” de procedimentos. Este caminho, se trilhado nos próximos anos, cedendo-se às chantagens da “tabela defasada” é o caminho da insustentabilidade financeira do SUS, vale dizer, da inviabilização do direito de todos à saúde, conforme consagra a Constituição brasileira.

É urgente rever o papel de “tabelas” para remunerar o trabalho em saúde. Tão urgente quanto isso é dar transparência às receitas e despesas de qualquer organização, seja de propriedade particular ou estatal, que utilize recursos públicos para realizar suas atividades. As autoridades do SUS e os conselhos de saúde deveriam ser oficialmente informados, periodicamente, sobre a aplicação de recursos públicos, incluindo a folha salarial dessas organizações, nos termos da lei, aprimorando-se a legislação sobre essa matéria. Resta saber se algum senador ou deputado federal tomará alguma iniciativa nessa direção.

Em São Paulo a chantagem foi eficaz: os governos estadual e da capital anunciaram ter assumido o compromisso de “compensar financeiramente” o hospital que se orgulha de não ter ligação com “nenhuma instituição de saúde oficial brasileira”.

*Paulo Capel Narvai é professor titular sênior de Saúde Pública na USP. Autor, entre outros livros, de SUS: uma reforma revolucionária (Autêntica).

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