Rainha Elizabeth II (Foto: REUTERS/Eddie Mulholland/POOL)
"Nenhuma instituição ajuda a sustentar o domínio de classe e a supremacia branca tão eficazmente quanto a monarquia britânica", diz Chris Hedges
Por Chris Hedges
(Pubicado no site The Chris Hedges Report, traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz para o Brasil 247)
A adulação bajuladora da Rainha Elizabeth nos EUA - que lutaram numa revolução para se livrar da monarquia – e na Grã-Bretanha, está em proporção direta com o medo de se agarrar a uma elite dominante global desacreditada, incompetente e corrupta.
Os oligarcas globais não têm certeza que a próxima geração de marionetes-de-meia reais – mediocridades que incluem um príncipe pedófilo e o seu irmão, um rei irritadiço e excêntrico que aceitou malas e sacolas recheadas com US$ 3,2 milhões em espécie de um primeiro-ministro do Qatar, o Sheikh Hamad bin Jassim bin Jaber Al Thani, e que tem milhões escondidos em contas offshore – se estão à altura do posto. Esperemos que eles tenham acertado.
“Ter uma monarquia na porta ao lado é como ter um vizinho que realmente curte palhaços e pichou a sua casa com murais de palhaços, que exibe bonecos de palhaços em cada janela e tem um apetite insaciável para ouvir e conversar sobre estórias de notícias relativas aos palhaços”, escreveu Patrick Freyne no ano passado no jornal 'The Irish Times'; “Mais especificamente, para os irlandeses, é como ter um vizinho que realmente curte palhaços e, também, o seu avô que foi assassinado por um palhaço.”
A monarquia obscurece os crimes do império e os embrulha em nostalgia. Ela exalta a supremacia branca e a hierarquia racial. Ela justifica o domínio de classe. Ela sustenta um sistema econômico e social que descarta insensivelmente e frequentemente consigna à morte aquelas que são consideradas como raças inferiores – a maior parte das quais são pessoas de cor. O marido da rainha, Príncipe Phillip, que morreu em 2021, era notório por fazer declarações racistas e machistas – polidamente explicadas na imprensa britânica como “gafes”. Por exemplo, ele descreveu Beijing como “medonha” durante uma visita em 1986 e contou aos estudantes britânicos: "se vocês ficarem aqui muito mais tempo, todos vocês terão olhos puxados".
Os gritos das milhões de vítimas do império; os milhares de assassinados, torturados, estuprados e aprisionados durante a rebelião dos Mau Mau no Kenya; os 13 civis irlandeses fuzilados no “Bloody Sunday” [Domingo Sangrento]; as mais de 4.100 crianças dos Povos Originários que morreram ou foram desaparecidos nas escolas residenciais canadenses – instituições patrocinadas pelo governo, estabelecidas para “assimilar” crianças indígenas à cultura Euro-Canadense; e as centenas de milhares de pessoas mortas durante a invasão e a ocupação do Iraque e do Afeganistão, são silenciados pelas saudações às procissões reais e a aura sacra que uma imprensa obsequiosa tece ao redor da aristocracia. A cobertura da morte da rainha é tão entorpecentemente insípida – a BBC emitiu um alerta de notícias no sábado, quando o Príncipe Harry e o Príncipe William, acompanhados pelas suas esposas, supervisionaram as homenagens florais à sua avó que foram dispostas do lado de fora do Palácio de Windsor – que a imprensa poderia muito bem passar a cobertura para os fazedores de mitos e publicitários empregados pela família real.
Os membros da realeza são oligarcas. Eles são guardiões da sua classe. Os maiores proprietários de terras do mundo incluem o Rei Mohammed VI do Marrocos, com mais de 71 milhões de hectares; a Igreja Católica, com mais de 69 milhões de hectares; os herdeiros do Rei Abdullah da Arábia Saudita, com quase 215 milhões de hectares e, agora, o Rei Carlos III, com mais de 2,4 bilhões de hectares de terra. Os monarcas britânicos têm uma fortuna de quase US$ 28 bilhões. O povo britânico proverá US$ 33 milhões em subsídios à Família Real nos próximos dois anos, apesar de que uma família média no Reino Unido teve a sua renda diminuída continuamente pelo período mais longo desde que os registros começaram a ser feitos em 1955 e 227 mil famílias vivenciam a condição de sem-teto na Grã-Bretanha.
Para a classe dominante, a realeza vale o seu preço. Eles são ferramentas eficazes de subjugação. Os trabalhadores postais e ferroviários cancelaram as suas greves previamente planejadas sobre salários e condições de trabalho após a morte da rainha. O Congresso dos Sindicatos (TUC – Trade Union Congress) postergou o seu congresso. Os membros do Partido Trabalhista [Labour Party] derramaram os seus tributos de coração. Até mesmo a organização 'Extinction Rebellion' [Rebelião da Extinção], que deveria saber melhor do que fazê-lo, cancelou indefinitivamente o seu planejado “Festival da Resistência” [Festival of Resistance]. O jornalista da BBC Clive Myrie descartou a crise energética da Grã-Bretanha – causada pela guerra na Ucrânia – que jogou milhões de pessoas em severa pressão financeira, como sendo “insignificante”, comparada com as preocupações pela saúde da rainha. A emergência climática, a pandemia, a loucura mortífera da guerra por procuração dos EUA e da OTAN na Ucrânia, a inflação galopante, o surgimento de movimentos neofascistas e a crescente desigualdade social serão ignoradas, enquanto a imprensa vomita elogios floridos à dominação de classe. Haverá 10 dias de luto oficial.
Em 1953, o Governo de Sua Majestade enviou três navios de guerra, junto com 700 soldados, para a sua colônia na Guiana Britânica, suspendeu a constituição e derrubou o governo democraticamente eleito de Cheddi Jagan. O Governo de Sua Majestade ajudou a construir e apoiou por um logo tempo o regime de apartheid na África do Sul. O Governo de Sua Majestade esmagou selvagemente o movimento Mau Mau pela independência no Kenya de 1952 a 1960, confinando 1,5 milhão de quenianos em campos de concentração, nos quais muitos foram torturados. Soldados britânicos castraram rebeldes e suspeitos simpatizantes, muitas vezes com alicates, e estupraram meninas e mulheres. Quando a Índia conquistou a independência em 1947, após dois séculos de colonialismo britânico, o Governo de Sua Majestade já havia saqueado US$ 45 trilhões do país e esmagou violentamente uma série de levantes – incluindo a Primeira Guerra de Independência de 1857. O Governo de Sua Majestade executou uma guerra suja (https://www.theguardian.com/uk/2012/jul/27/brutality-british-forces-1950s-cyprus) para quebrar a Guerra Greco-Cipriota de Independência entre 1955 e 1959 e, mais tarde, no Iêmen entre 1962 e 1969. Torturas, assassinatos extrajudiciais, enforcamentos públicos e execuções em massa eram rotinas para os britânicos. Após um longo processo jurídico, o governo britânico concordou em pagar cerca de 20 milhões de libras esterlinas em compensações para 5.000 vítimas de abusos britânico durante a guerra no Kenya e, em 2019, outro pagamento foi feito para os sobreviventes das torturas no conflito no Chipre. O estado britânico tenta obstruir processos judiciais derivados da sua história colonial. Os seus acordos de compensações são uma pequena fração da compensação paga aos britânicos donos de escravos em 1853 – uma vez que foi abolida, pelo menos formalmente, a escravidão.
Durante o seu reinado de 70 anos, a rainha jamais ofereceu uma apologia, nem defendeu o pagamento de reparações.
O ponto da hierarquia social e da aristocracia é sustentar o sistema de classe que faz o resto de nós nos sentirmos inferiores. Os que estão no topo da hierarquia social dão pagamentos simbólicos por serviços leais, incluindo a Ordem do Império Britânico (OBE – Order of the British Empire). A monarquia é a pedra fundamental do domínio hereditário e da riqueza herdada. Este sistema de castas se filtra para baixo da Casa de Windsor amante do nazismo para os órgãos da segurança do estado e das forças militares. Ela arregimenta a sociedade e mantém o povo, especialmente os pobres e a classe trabalhadora, no seu lugar “apropriado”.
A classe dominante britânica se agarra à mística da realeza e a ícones culturais decadentes – como James Bond, os Beatles e a BBC – juntamente com os shows de televisão como “Downtown Abbey” - o qual, em um episódio, os aristocratas e os serviçais se convulsionam em fervente antecipação quando o Rei George V e a Rainha Mary programam uma visita – para projetar a sua presença global. O busto de Winston Churchill permanece como um empréstimo para a Casa Branca. Estas máquinas de mitos sustentam a relação “especial” da Grã-Bretanha com os Estados Unidos. Assista ao filme satírico 'In the Loop' para ter uma noção do que esta relação “especial” se parece por dentro.
Não foi até os anos de 1960 que foi permitido que “imigrantes de cor ou estrangeiros” pudessem trabalhar em funções clericais na casa real britânica, apesar destes terem sido contratados com serviçais domésticos. A casa real e os seus chefes estão legalmente isentos das leis que proíbem a discriminação de raça e sexo – aquilo que Jonathan Cook chama de “um sistema de apartheid que beneficia unicamente a Família Real”. Meghan Markle, que é de raça mista (sic) e que considerou cometer suicídio durante o tempo em que era uma funcionária da realeza, disse que um membro anônimo da realeza expressou uma preocupação sobre a cor de pele do seu filho ainda não nascido.
Eu senti o gosto deste esnobismo sufocante em 2014, quando eu participei de um debate na Oxford Union que perguntava se Edward Snowden era um herói ou um traidor. Eu cheguei um dia antes para ser preparado para o debate por Julian Assange – que estava então buscando refúgio na Embaixada Equatoriana e que atualmente está na Prisão de Sua Majestade em Belmarsh. Num lúgubre jantar de roupa formal antes do evento, eu me sentei ao lado de um antigo membro do parlamento, o qual me fez duas perguntas que jamais me haviam feito antes, uma atrás da outra. “Quando foi que a sua família veio para os EUA?”, perguntou ele, seguido de “Quais universidades você cursou?”. Os meus ancestrais, de ambos os lados da minha família, vieram da Inglaterra em 1630. Meu título de graduação é de Harvard. Caso eu tivesse falhado no teste decisivo dele, ele teria agido como se eu não existisse.
Aqueles que participaram do debate – o meu lado argumentando que Snowden era um herói venceu por pouco – assinaram um livro de visitas encadernado em couro. Tomando a caneta, eu escrevi em letras grandes que preencheram toda uma página: “Jamais esqueçam que o seu maior filósofo político, Thomas Paine nunca frequentou Oxford nem Cambridge.”
Paine, o autor dos mais amplamente lidos ensaios políticos do século XVIII – 'Rights of Man' [Os Direitos do homem], 'The Age of Reason' [A Era da Razão] e 'Common Sense' ]O Senso Comum] – amaldiçoou a monarquia como uma farsa. “Um bastardo francês desembarcado com um bandido armado e se estabelecendo como Rei da Inglaterra contra o consentimento dos nativos, é, em termos simples, um original malandramente insignificante... A pura verdade é que a antiguidade da monarquia inglesa não merece ser olhada por dentro”, escreveu ele sobre William, o Conquistador. Ele ridicularizou o poder hereditário. “Mais vale um homem honesto para a sociedade, e aos olhos de Deus, do que todos os rufiões coroados que jamais viveram”. Ele seguiu adiante: “Uma das provas naturais mais estranhas da loucura do direito hereditário dos reis é que a natureza o refuta; se assim não fosse, ela não se tornaria ridícula tão frequentemente, ao dar à espécie humana um asno como se fosse um leão (giving mankind an ass for a lion)”. Ele chamou o monarca de “o bruto real da Inglaterra”.
Quando a classe dominante britânica tentou prender Paine, ele fugiu para a França – onde ele foi um dos dois estrangeiros eleitos para servir como delegado na Convenção Nacional estabelecida após a Revolução Francesa. Ele denunciou os pedidos de execução de Luiz XVI. “Aquele que tornaria segura a sua liberdade deve proteger até o seu inimigo da opressão”, disse Paine. “Porque se viola este dever, ele estabelece um precedente que irá alcançar a ele próprio”. Ele advertiu que as legislaturas não verificadas poderiam ser tão despóticas como os monarcas não verificados. Quando ele retornou da França para a América, ele condenou a escravidão, a riqueza e o privilégio da nova classe dominante – incluindo George Washington, que havia se tornado o homem mais rico do país. Apesar de Paine ter feito mais do que qualquer figura singular para despertar o país para derrubar a monarquia britânica, ele foi tornado um pária, especialmente pela imprensa, e foi esquecido. Ela havia cumprido a sua utilidade. Seis pessoas foram ao seu funeral, dois dos quais eram negros.
Você pode assistir a minha conversa sobre Thomas Paine com Cornel West e Richard Wolff aqui:
Há um anelo patético dentre muitas pessoas nos EUA e na Grã-Bretanha para se ligarem de alguma forma tangencial à realeza. Alguns amigos britânicos brancos frequentemente contam estórias que os conectam a algum aristocrata obscuro. Donald Trump, que inventou o seu próprio brasão heráldico, era obcecado por conseguir uma visita de estado com a rainha. Este desejo de fazer parte do clube, ou de ser validado pelo clube, é uma força potente que a classe dominante não tem a intenção de abandonar, mesmo se o infeliz do Rei Carlos II – quem, junto com a sua família, tratou a sua primeira esposa Diana com desprezo – fizer disso uma bagunça;
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