Conversações secretas entre a Rússia e a Alemanha para resolver suas questões do Nord Stream 1 e 2 tinham de ser impedidas a qualquer custo
Pepe Escobar [*]
A Guerra dos Corredores Econômicos entrou em território incandescente e inexplorado: o Terrorismo de Gasoduto.
Uma operação militar sofisticada – que exigiu planejamento exaustivo, possivelmente envolvendo vários atores – explodiu quatro seções separadas dos gasodutos Nord Stream (NS) e Nord Stream 2 (NS2) esta semana nas águas rasas do estreito dinamarquês, no Mar Báltico, perto da ilha de Bornholm.
Os sismólogos suecos estimaram que o poder das explosões pode ter atingido o equivalente a até 700 kg de TNT. Ambos NS e NS2, perto das fortes correntes ao redor de Borholm, estão assentados no fundo do mar a uma profundidade de 60 metros.
Os tubos são construídos de concreto armado com aço, capazes de resistir ao impacto de âncoras de porta-aviões, e são basicamente indestrutíveis sem cargas explosivas potentes. A operação – que causou dois vazamentos perto da Suécia e dois perto da Dinamarca – teria que ser realizada por drones submarinos modificados.
Todo crime implica motivo. O governo russo queria – pelo menos até à sabotagem – vender petróleo e gás natural para a UE. A noção de que a inteligência russa destruiria os gasodutos da Gazprom é mais do que ridícula. Tudo o que eles tinham a fazer era desligar as válvulas. O NS2 nem estava operacional, com base em uma decisão política de Berlim. O fluxo de gás em NS foi prejudicado por sanções ocidentais. Além disso, tal ato implicaria para Moscou a perda uma importante influência estratégica sobre a UE.
Fontes diplomáticas confirmam que Berlim e Moscou estiveram envolvidos em uma negociação secreta para resolver os problemas do NS e do NS2. Então eles tinham que ser parados – sem restrições. Do ponto de vista geopolítico, a entidade que teve o motivo de travar um acordo tem ojeriza a uma possível aliança no horizonte entre Alemanha, Rússia e China.
Quem foi?
A possibilidade de uma investigação “imparcial” de um ato de sabotagem tão monumental – coordenado pela OTAN, nada menos – é insignificante. Fragmentos dos explosivos/drones submarinos usados na operação certamente serão encontrados, mas as evidências podem ser adulteradas. Dedos atlantistas já estão culpando a Rússia. Isso nos deixa com hipóteses de trabalho plausíveis.
Esta hipótese é eminentemente sólida e parece ser baseada em informações de fontes de inteligência russa. Claro, Moscou já tem uma boa ideia do que aconteceu (satélites e monitoramento eletrônico funcionando 24 horas por dia, 7 dias por semana), mas eles não vão tornar isso público.
A hipótese centra-se na marinha e nas Forças Especiais da Polônia como os perpetradores físicos (bastante plausível; o relatório oferece detalhes internos muito bons), com planejamento e suporte técnico americano (extra plausível) e ajuda dos militares dinamarqueses e suecos (inevitável, considerando que foi muito próximo de suas águas territoriais, mesmo que tenha ocorrido em águas internacionais).
A hipótese se encaixa perfeitamente com uma conversa com uma importante fonte de inteligência alemã, que disse ao The Cradle que o Bundesnachrichtendienst (BND ou serviço inteligência alemã) estava “furioso” porque “eles não foram informados”.
Claro que não. Se a hipótese estiver correta, esta foi uma operação flagrantemente anti-alemã, carregando o potencial de metástase em uma guerra intra-OTAN.
O muito citado Artigo 5 da OTAN – ‘um ataque contra um de nós é um ataque contra todos nós’ – obviamente não diz nada sobre um ataque OTAN contra OTAN. Após os furos do gasoduto, a OTAN emitiu uma declaração mansa “acreditando” que o quê aconteceu foi sabotagem e “responderá” a qualquer ataque deliberado à sua infraestrutura crítica. NS e NS2, aliás, não fazem parte da infraestrutura da OTAN.
Toda a operação teve que ser aprovada pelos americanos e executada sob sua marca registrada, Divide and Rule. “Americanos” neste caso significa os neoconservadores e neoliberais que dirigem a máquina governamental em Washington, por trás do leitor senil de teleprompter.
Esta é uma declaração de guerra contra a Alemanha e contra as empresas e os cidadãos da UE – não contra a máquina eurocrata kafkiana em Bruxelas. Não se engane: é a OTAN que administra Bruxelas, não a chefe da Comissão Europeia (CE) e russófoba raivosa Ursula von der Leyen, que é apenas uma humilde serva do capitalismo financeiro.
Não é de se admirar que os alemães estejam absolutamente calados; ninguém do governo alemão, até agora, disse nada substancial.
O corredor polonês
A essa altura, vários grupos de bate-papo estão cientes do tweet do ex-ministro da Defesa polonês e atual eurodeputado Radek Sirkorski: “Obrigado, EUA” [Aparentemente, este tweet foi já deletado. Nenhuma surpresa – nota do tradutor]. Mas por que a insignificante Polônia estaria na vanguarda? Têm-se a russofobia atávica, uma série de razões políticas internas muito complicadas, mas acima de tudo, um plano combinado para atacar a Alemanha baseado em ressentimento reprimido – incluindo novas demandas por reparações da Segunda Guerra Mundial.
Além disso, os poloneses temem que com a mobilização parcial da Rússia e a nova fase da Operação Militar Especial (SMO) – que em breve será transformada em uma Operação Contra-Terrorista (CTO) – o campo de batalha ucraniano mova-se para o oeste. A luz elétrica e o aquecimento ucranianos certamente serão destruídos. Milhões de novos refugiados no oeste da Ucrânia tentarão atravessar para a Polônia.
Ao mesmo tempo, há uma sensação de “vitória” representada pela abertura parcial do Canal do Báltico no noroeste da Polônia – quase simultaneamente à sabotagem.
Observe o cronograma. O Baltic Pipe transportará gás da Noruega para a Polônia via Dinamarca. A capacidade máxima é de apenas 10 mil milhões de metros cúbicos/ano, o que é dez vezes menor que o volume fornecido por NS e NS2. Portanto, o Baltic Pipe pode ser suficiente para a Polônia, mas não tem valor para outros clientes da UE.
Enquanto isso, a névoa da guerra fica mais espessa a cada minuto. Já foi documentado que helicópteros dos EUA sobrevoaram os nós de sabotagem há apenas alguns dias; que um navio de “pesquisa” do Reino Unido estava vagando em águas dinamarquesas desde meados de setembro; que a OTAN twittou sobre o teste de “novos sistemas não tripulados no mar” no mesmo dia da sabotagem. Sem mencionar que a Der Spiegel publicou um relatório surpreendente intitulado “A CIA alertou o governo alemão contra ataques a gasodutos do Mar Báltico”, possivelmente uma jogada inteligente para uma negação plausível.
O Ministério das Relações Exteriores da Rússia foi afiado como uma navalha: “O incidente ocorreu em uma área controlada pela inteligência americana”. A Casa Branca foi forçada a “esclarecer” que o presidente Joe Biden – em um vídeo de fevereiro que se tornou viral – não prometeu destruir o NS2; ele prometeu “não permitir” que o mesmo funcionasse. O Departamento de Estado dos EUA declarou que a ideia de que os EUA estavam envolvidos é “absurda”.
Coube ao porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, oferecer uma boa dose de realidade: os danos aos gasodutos representavam um “grande problema” para a Rússia, que essencialmente perdeu suas rotas de fornecimento de gás para a Europa. Ambas as linhas do NS2 foram abastecidas com gás e – crucialmente – estavam preparadas para entregá-lo à Europa; note-se Peskov admitindo enigmaticamente que as negociações com a Alemanha estavam em andamento.
Peskov acrescentou: “esse gás é muito caro e agora está subindo no ar”. Ele enfatizou novamente que nem a Rússia nem a Europa tinham nada a ganhar com a sabotagem, especialmente a Alemanha. Nesta sexta-feira, haverá uma sessão especial do Conselho de Segurança da ONU sobre a sabotagem, convocada pela Rússia.
O ataque dos straussianos
Agora para o grande quadro. O Terrorismo de Gasoduto é parte de uma ofensiva straussiana, levando a separação da Rússia e da Alemanha ao nível máximo (na perspectiva deles). Leo Strauss and the Conservative Movement in America: A Critical Appraisal, de Paul E. Gottfried (Cambridge University Press, 2011) é leitura obrigatória para entender esse fenômeno.
Leo Strauss, o filósofo judeu-alemão que lecionou na Universidade de Chicago, está na raiz do que, mais tarde, de uma forma muito distorcida, tornou-se a Doutrina Wolfowitz, escrita em 1992 como a Orientação de Planejamento de Defesa, que definiu “a missão da América na era pós-Guerra Fria”.
A Doutrina Wolfowitz vai direto ao ponto: qualquer potencial concorrente à hegemonia dos EUA, especialmente “nações industriais avançadas” como Alemanha e Japão, deve ser esmagado. A Europa nunca deve exercer soberania: “Devemos ter cuidado para evitar o surgimento de um sistema de segurança puramente europeu que prejudicaria a OTAN e, particularmente, sua estrutura de comando militar integrada”.
Vamos à Lei de Empréstimo-Arrendamento de Defesa para Democracia da Ucrânia, adotada há apenas cinco meses. Estabelece que Kiev tem almoço grátis quando se trata de todos os mecanismos de controle de armas. Todas essas armas caras são alugadas pelos EUA à UE para serem enviadas à Ucrânia. O problema é que, aconteça o que acontecer no campo de batalha, no final, é a UE que terá que pagar as contas.
O secretário de Estado dos EUA Blinken e sua subordinada, Victoria “F**k the EU” Nuland, são straussianos, agora totalmente soltos, tendo aproveitado o vazio negro na Casa Branca. Tal como está, há pelo menos três “silos” de poder diferentes em uma Washington fraturada. Para todos os straussianos, uma operação bipartidária estreita, unindo vários suspeitos habituais de alto perfil, destruir a Alemanha é primordial.
Uma séria hipótese de trabalho os coloca por trás das ordens para conduzir o Terrorismo de Gasoduto. O Pentágono negou veementemente qualquer envolvimento na sabotagem. Existem canais secretos entre o secretário do Conselho de Segurança da Rússia, Nikolai Patrushev, e o conselheiro de segurança nacional dos EUA, Jake Sullivan.
E fontes dissidentes de Beltway juram que a CIA também não faz parte desse jogo; a agenda de Langley seria forçar os straussianos a recuar na reincorporação da Rússia à Novorossiya e permitir que a Polônia e a Hungria engolissem o que quisessem na Ucrânia Ocidental antes que todo o governo dos EUA caísse em um vazio obscuro.
Venha me ver na Cidadela
No Grande Tabuleiro de Xadrez, a cúpula da Organização para a Cooperação de Xangai (SCO) em Samarcanda, Uzbequistão, duas semanas atrás, ditou a estrutura do mundo multipolar à frente. Junte isso aos referendos de independência em DPR, LPR, Kherson e Zaporizhia, que o presidente russo, Vladimir Putin, incorporará formalmente à Rússia, possivelmente já na sexta-feira.
Com a janela de oportunidade fechando-se rapidamente para um avanço de Kiev antes dos primeiros sinais de um inverno frio, e a mobilização parcial da Rússia em breve para entrar na SMO renovada e aumentar o pânico ocidental generalizado, o Terrorismo de Gasoduto pelo menos teria o “mérito” de solidificar uma vitória tática de Strauss: Alemanha e Rússia fatalmente separadas.
No entanto, a reação será inevitável – de maneiras inesperadas – mesmo que a Europa se torne cada vez mais Ucrânia e até Polônia: um fantoche intrinsecamente neofascista e descarado dos EUA como predador, não parceiro. Muito poucos na UE não sofreram lavagem cerebral o suficiente para entender como a Europa está sendo preparada para a queda final.
A guerra, por aqueles straussianos abrigados no Deep State – neocons e neoliberais – não vai ceder. É uma guerra contra a Rússia, China, Alemanha e várias potências eurasianas. A Alemanha acaba de ser derrubada. A China está atualmente observando, cuidadosamente. E a Rússia – nuclear e hipersônica – não será intimidada.
O grande mestre da poesia CP Cavafy, em Waiting for the Barbarians, escreveu “E agora o que será de nós, sem nenhum bárbaro? Essas pessoas eram algum tipo de solução”. Os bárbaros não estão nos portões, não mais. Eles estão dentro de sua Cidadela Dourada.
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