sexta-feira, 30 de dezembro de 2022

Joe Biden e Vladimir Putin

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Por M. K. BHADRAKUMAR*

Se a intenção dos Estados Unidos era enfraquecer a Rússia, antes de enfrentar a China, as coisas não parecem estar funcionando assim

O momento decisivo na coletiva de imprensa do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na Casa Branca, no dia 21 de dezembro, durante a visita do presidente Volodymyr Zelensky, foi sua virtual admissão do constrangimento em que se vê metido na guerra por procuração que seu país realiza na Ucrânia, uma vez que os aliados europeus não querem uma guerra com a Rússia.

Cite-se Joe Biden: “Agora, vocês poderiam dizer: ‘por que simplesmente não damos à Ucrânia tudo o que é possível dar?’ Bem, por duas razões. Uma, que há toda uma Aliança que é fundamental, para assegurar a Ucrânia [do nosso lado]. E a ideia de que daríamos à Ucrânia um material fundamentalmente diferente do que já está indo para lá vislumbraria a perspectiva de desmembrar a OTAN e desmembrar a União Europeia e o resto do mundo… Passei várias centenas de horas cara a cara, enfrentando nossos aliados europeus e os chefes de Estado desses países, argumentando porque era do interesse deles continuar a apoiar a Ucrânia… Eles entendem isso cabalmente, mas não pretendem entrar em guerra com a Rússia. Eles não buscam uma terceira guerra mundial”.

Joe Biden se deu conta, naquele momento, de algo do tipo “provavelmente já falei demais”, e encerrou de forma abrupta a coletiva de imprensa. Ele provavelmente não se deu conta de que estava refletindo em voz alta sobre a fragilidade da unidade ocidental.

A questão toda é que os comentaristas ocidentais, em larga medida, esquecem que a agenda central da Rússia não é a conquista territorial – tanto quanto [o lugar geopolítico d]a Ucrânia é vital para os interesses russos – mas, sim, a expansão da OTAN. E isso não mudou.

De vez em quando, o presidente Vladimir Putin revisita o tema fundamental de que os Estados Unidos sempre visaram enfraquecer e desmembrar a Rússia. Na última quarta-feira, Putin invocou a guerra da Chechênia na década de 1990: “o uso de terroristas internacionais no Cáucaso, para acabar com a Rússia e dividir a Federação Russa… Eles [os Estados Unidos] afirmaram que condenavam a Al-Qaeda e outros criminosos. No entanto, consideraram aceitável fazer uso deles no território russo, e lhes forneceram todo tipo de assistência, incluindo material, informacional, político e qualquer outro, notadamente militar, para incentivá-los a seguir lutando contra a Rússia”.

Vladimir Putin tem uma memória fenomenal, e estaria se referindo à escolha cuidadosa, por Biden, de William Burns como seu chefe da CIA. Burns foi nada menos que o representante da embaixada norte-americana em Moscou para a Chechênia, na década de 1990. Vladimir Putin agora ordenou uma campanha em todo o país para erradicar os vastos tentáculos que a inteligência dos Estados Unidos plantou em solo russo para a subversão interna. A [Fundação] Carnegie, que já foi chefiada por Burns, fechou seu escritório em Moscou, e sua equipe russa fugiu para o Ocidente.

O leitmotiv da reunião ampliada do Conselho do Ministério da Defesa em Moscou na semana passada, ao qual Vladimir Putin se dirigiu, foi a realidade candente de que o confronto da Rússia com os Estados Unidos não terminará com a guerra na Ucrânia. Vladimir Putin exortou o alto escalão russo a “analisar cuidadosamente” as lições da Ucrânia e dos conflitos sírios.

É importante sublinhar o que Vladimir Putin disse: “Continuaremos mantendo e melhorando a prontidão de combate da tríade nuclear. É a principal garantia de que nossa soberania e integridade territorial, paridade estratégica e equilíbrio geral de forças no mundo sejam preservados. Este ano, o nível de armamento moderno nas forças nucleares estratégicas já ultrapassou 91%. Continuaremos rearmando os regimentos de nossas forças de mísseis estratégicos com modernos sistemas de mísseis hipersônicos Avangard com ogivas nucleares”.

Da mesma forma, o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, propôs na reunião de quarta-feira um incremento militar “para reforçar a segurança da Rússia”, incluindo:

- a criação de um correspondente agrupamento militar no noroeste da Rússia, para fazer frente ao ingresso da Finlândia e da Suécia como membros da OTAN;

- a criação de duas novas divisões de infantaria motorizada nas regiões de Kherson e Zaporozhya, bem como um corpo de exército na Carélia, frente à fronteira finlandesa;

- um incremento de sete brigadas de infantaria motorizada em divisões de infantaria motorizada nos comandos militares Ocidental, Central e Oriental, além da Esquadra Naval do Norte;

- a adição de mais duas divisões de assalto aéreo nas Forças Aerotransportadas;

- a implantação de uma divisão de aviação composta e uma brigada de aviação do exército com 80-100 helicópteros de combate, dentro de cada exército de armas combinadas (blindadas);

- a criação de três comandos adicionais de divisão aérea, oito regimentos de aviação de bombardeiros, um regimento de aviação de caça e seis brigadas de aviação do exército;

- a criação de cinco divisões distritais de artilharia, bem como brigadas de artilharia superpesadas para constituição de reservas de artilharia ao longo do chamado eixo estratégico;
 
a criação de cinco brigadas de infantaria naval [fuzileiros navais] para as tropas costeiras da Marinha, com base nas brigadas de infantaria naval atualmente existentes;

- o aumento do efetivo das Forças Armadas para 1,5 milhão de militares, com 695.000 combatentes profissionais contratados.

Putin sintetizou: “Não repetiremos os erros do passado… Não vamos militarizar nosso país ou militarizar a economia… e não faremos coisas que realmente não precisamos, em detrimento de nosso povo, da economia e da esfera social. Vamos melhorar as Forças Armadas russas e todo o componente militar. Faremos isso com calma, sistematicidade e consistência, sem pressa”.

Se os neoconservadores no comando, na Beltway,[i] queriam uma corrida armamentista, eles a têm agora. O paradoxo, no entanto, é que isso será diferente da corrida armamentista bipolar da época da Guerra Fria.

Se a intenção dos Estados Unidos era enfraquecer a Rússia, antes de enfrentar a China, as coisas não parecem estar funcionando assim. Em vez disso, os Estados Unidos estão agora travando um confronto pesado com a Rússia, e os vínculos entre as duas grandes potências estão praticamente ao ponto da ruptura. A Rússia muito provavelmente já não espera mais que os Estados Unidos revertam a expansão da OTAN, como prometido à liderança soviética em 1989.

Os neoconservadores contavam com um resultado “ganha-ganha” na Ucrânia: uma derrota russa e um fim vergonhoso da presidência de Vladimir Putin; uma Rússia enfraquecida, como na década de 1990, tateando em busca de um novo começo; a consolidação da unidade ocidental sob uma América triunfante; um grande impulso na próxima luta contra a China pela supremacia na ordem mundial; e um Novo Século Americano sob a “ordem mundial baseada em regras” [liberais].

No entanto, ao invés disso, a operação está se tornando um Zugzwang clássico no final do jogo – para tomar emprestado o termo da literatura enxadrística alemã –, onde os Estados Unidos têm agora a obrigação de fazer um movimento na Ucrânia, mas qualquer movimento que fizer só piorará sua posição geopolítica.

Joe Biden já entendeu que a Rússia não pode ser derrotada na Ucrânia; e que tampouco os cidadãos russos estariam predispostos a alguma insurreição. A popularidade de Vladimir Putin está altíssima, uma vez que os objetivos russos na Ucrânia vêm sendo continuamente alcançados. Assim, Joe Biden está provavelmente provando da vaga sensação de que a Rússia não está exatamente vendo as coisas na Ucrânia como um jogo binário de vitória ou derrota, mas que está se preparando para o longo prazo, quando pretende despachar a OTAN de uma vez por todas.

A transformação da Bielo-Rússia em um Estado “com capacidade nuclear” traz uma mensagem profunda de Moscou para Bruxelas e Washington. Joe Biden não tem como deixar isso escapar de vista. (Veja-se minha matéria “A bússola nuclear da OTAN tornou-se indisponível”).

Logicamente, a opção aberta para os Estados Unidos neste momento seria a de se desvencilhar da Ucrânia. Mas isso se mostraria como uma abjeta admissão de derrota, significará a sentença de morte para a OTAN, e a liderança transatlântica de Washington estará destroçada. Pior ainda: as potências da Europa Ocidental – Alemanha, França e Itália – podem partir para a busca de um modus vivendi com a Rússia. E então (e, sobretudo), como poderá a OTAN sobreviver sem um “inimigo”?

Muito evidentemente, nem os Estados Unidos nem seus aliados estão em posição de travar uma guerra continental. Mesmo que estivessem, o que dizer então do cenário emergente na Ásia-Pacífico, onde a parceria “sem limites” entre a China e a Rússia acrescentou uma inusitada camada na “normalidade” geopolítica?

Os neocons da Beltway quiseram morder mais do que podiam mastigar. Sua última cartada provavelmente será a de pressionar por uma intervenção militar direta dos Estados Unidos na guerra da Ucrânia, sob a bandeira de uma “coalizão das vontades”.

*M. K. Bhadrakumar é diplomata aposentado indiano, foi embaixador do seu país no Uzbequistão e na Turquia. Escreve como analista de geopolítica para o Asia Times.

Tradução: Ricardo Cavalcanti-Schiel.

Publicado originalmente no Indian Punchline.

Nota


[i] Nota do Tradutor: Beltway: cinturão rodoviário que demarca a região central de Washington D.C. onde se concentram os organismos de governo dos Estados Unidos, os escritórios dos lobbies parlamentares e da mídia mainstream norte-americana que cobre o governo, além dos think tanks influentes sobre a política interna e externa dos Estados Unidos. Em outras palavras: o ninho do poder imperial, em todas as suas facetas.

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