Imagem: Mike Chai
Por JOSÉ MACHADO MOITA NETO*
O poderoso discurso sobre o “mercado” funciona como uma soft power para determinar os destinos políticos e econômicos da sociedade
Tomar a parte pelo todo ou o todo pela parte pode ser responsável por alterações semânticas das palavras. Isso pode ser um movimento linguístico comum, uma estratégia discursiva planejada ou ambas as possibilidades. O mercado, um conceito nas ciências econômicas e um fato da realidade cotidiana, compreende o conjunto de trocas de bens e serviços e os ambientes físicos e virtuais que as asseguram. O mercado financeiro é uma pequenina parte desse todo que é o mercado e, por precisão técnica, não se deve simplificar a expressão “mercado financeiro” para “mercado”. Não há ingenuidade nessa simplificação.
A expressão “mercado financeiro” não goza da mesma neutralidade do termo “mercado”, portanto, toda vez que for conveniente para um agente, a simplificação é acionada para promover o mercado financeiro. As necessidades dos agentes do mercado financeiro são transmitidas como voz e sentimento do “mercado”, desse modo opera-se mais uma modificação pela personificação do mercado financeiro. Desse modo, agentes de mercado ou seus prepostos montam uma cena que torna difícil distinguir entre o ventríloquo e seu boneco e anunciam tudo o que o “mercado” deseja. Desse modo, esta nova entidade “mercado”, fruto da simplificação e da personificação, não tem mais qualquer relação com as ciências econômicas e sim com interesses restritos do capital financeiro.
O poderoso discurso sobre o “mercado” funciona como uma soft power para determinar os destinos políticos e econômicos da sociedade. Contudo, essa não é a única estratégia para emplacar o discurso sobre o mercado. Para ser hegemônico, esse discurso precisa ser reproduzido em todas as camadas sociais. Dois acontecimentos diferentes colaboraram para a hegemonia dessa prática discursiva: (a) a explosão de produtos financeiros que chegam ao alcance de quase todo consumidor; (b) a expansão do conceito de empresário, que passa incluir também qualquer empreendedor individual.
A granularidade dos produtos financeiros cola o destino do “investidor” ao destino do mercado financeiro. A premissa oculta é “Qualquer coisa que ameaça o mercado, ameaça quem dele se beneficia”. Isso une o proprietário de uma ação na bolsa e o proprietário de bilhões de ações, por exemplo. A reflexão que o ganho financeiro de (nano)investidores é insignificante em relação a deterioração do espaço público, quando se prioriza o mercado financeiro, nunca é provocada. O colapso do coletivo é um risco aceitável em nome do “mercado”.
A ampliação da categoria de empresário reduz a contraposição antiga de capital versus trabalho. Entre quem detinha dinheiro e os meios de produção e aqueles que nada a tinha, apenas a sua força de trabalho. O antigo discurso da luta de classe foi derrotado dentro do próprio campo das práticas discursivas tornando-se anacrônico. A reflexão sobre quem explora e se apropria em relação ao trabalho dos (nano)empresários ainda não encontrou um arcabouço claro em que se possa se transformar em um slogan militante como o foi o que conclamava a união entre explorados.
A simplificação da expressão para mercado, a personificação do mercado com voz e sentimentos de seus agentes, a colaboração voluntária de quem muito perde em nome de um pequeno ganho e a ilusão de pertença ao grupo privilegiado da sociedade formam um sólido conjunto ideológico de respeito ao mercado como um ente sobrenatural que não pode ser contrariado. Esse bloco de pensamento hegemônico é o que favorece interpretar um movimento de queda de ações ou de subida do dólar como provocada por uma atitude específica de um agente político e não como uma reação especulativa de agentes financeiros.
Os discursos hegemônicos são aqueles que dispensam qualquer pensamento crítico pois se reforçam, se clonam e cooptam todos os escalões da sociedade e de todos os poderes. Há uma doutrinação que se reproduz em toda parte. É ubíquo. Usando a linguagem do filme Matrix, abraçar o discurso hegemônico sobre o “mercado” é escolher a ignorância abençoada (pílula azul) que não traz aparente dor ou sacrifício. O mundo matrix, construído pelo discurso do mercado, vem mostrando déjà vu e “erros” constantemente (por exemplo, a crise da financeira 2007-2008) mas nem por isso perde seguidores. É um discurso robusto. Esse texto é uma fracassada resistência!
*José Machado Moita Neto é professor aposentado da Universidade Federal do Piauí (UFPI) e pesquisador da UFDPar.
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