segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Ascensão do Laissez-Faire


Banksy

Teoria defende o Estado garantir apenas as condições adequadas para O Mercado, como o direito à propriedade.

por Fernando Nogueira da Costa
jornalggn@gmail.com
jornalggn.com.br/

A expressão laissez faire significa “deixar fazer”. Representa uma das principais ideias da Economia liberal. Defende o Estado garantir apenas as condições adequadas para O Mercado, como o direito à propriedade. O restante se desenvolveria “de forma natural”.

A versão completa em francês é “laissez faire, laissez aller, laissez passer, le monde va de lui-même”, traduzida para “deixai fazer, deixai ir, deixai passar, o mundo vai por si mesmo”. Usa-se a expressão também na forma grafada com hífen: laissez-faire.

A origem da expressão laissez faire é incertamente atribuída ao comerciante Legendre. Ele a teria pronunciado em reunião com Colbert, no fim do século XVII: – Que faut-il faire pour vous aider? perguntou Colbert. – Nous laisser faire, teria respondido Legendre.

O primeiro autor a usar a frase laissez-faire, em associação clara com sua doutrina liberal, foi o Marquês de Argenson em 1751. Porém, é atribuída ao economista Turgot.

O ensaio “O Fim do Laissez-Faire”, publicado em versão truncada no livro Essays in Persuasion, foi baseado na palestra proferida por John Maynard Keynes em Oxford em novembro de 1924 e revisada para outra palestra na Universidade de Berlim em junho de 1926. Seu biógrafo, Robert Skidelsky, afirma: “é o ensaio mais erudito de Keynes sobre Economia Política”.

Disse ele: “a disposição para os assuntos públicos, convenientemente, resumimos como o individualismo e o laissez faire”. No fim do século XVII, o direito divino dos monarcas começa a dar lugar à liberdade individual e mantém o pacto social com o direito divino da igreja por ser “uma sociedade voluntária de homens de forma livre e espontânea”…

Cinquenta anos depois, a origem divina e a voz absolutista do dever deram lugar aos cálculos da utilidade. As doutrinas de Locke e Hume fundaram o individualismo. O pacto presumia direitos do indivíduo, já a nova ética, não sendo nada mais além de um estudo científico das consequências do amor-próprio racional, colocou o indivíduo no centro.

As noções práticas dos conservadores (e seus advogados) forneceram uma base intelectual satisfatória para os direitos de propriedade e a liberdade do indivíduo proprietário de fazer o desejado consigo mesmo… e com os seus escravos ou servos.

O propósito inicial de promover o indivíduo era depor o monarca e a igreja. O efeito do novo significado ético atribuído ao contrato social do antropocentrismo foi reforçar a propriedade. Mas não demorou muito para as reivindicações da sociedade se levantarem novamente contra o indivíduo em si e para si.

Enquanto Locke aplica o seu Contrato Social para modificar a igualdade natural da humanidade, implicando igualdade de propriedade ou mesmo de privilégio, em oposição à desigualdade natural de nascença, defendida pelos conservadores, para Rousseau a igualdade não é apenas o ponto de partida, mas também o objetivo.

William Paley (1743-1805) argumentou a complexidade e as adaptações dos seres vivos eram prova da intervenção divina na criação, em analogia a um “relojoeiro”, hoje, design inteligente. Evitou a conclusão egoísta do hedonismo, onde o prazer desempenha papel central. “Virtude’” diz ele, “é fazer o bem à humanidade em prol da felicidade eterna”. Desta forma, trouxe de volta “eu e os outros” para uma paridade igualitária.

Jeremy Bentham (1748-1832) chegou ao mesmo resultado pela razão pura. Não existe base racional para preferir a felicidade de um indivíduo, mesmo a de si mesmo, à de qualquer outro. Buscar a maior felicidade do maior número é a única conduta racional.

A igualdade e o altruísmo entraram assim na Filosofia Política. Em conjunto, surgiram tanto a democracia como o socialismo utilitário.

Esta era a segunda corrente ainda a permear a atmosfera de pensamento na época de Keynes. Ela não eliminou a antiga corrente do individualismo e laissez-faire. Misturou.

No início do século XIX, realizou-se a união milagrosa. Harmonizou o individualismo conservador com o socialismo e o igualitarismo democrático. Teria sido difícil para aquela época alcançar essa harmonia de opostos (entre a vantagem privada e o bem público) se não fosse pelos economistas darem uma base científica a ela.

Surgiu, entre eles, a ideia de os indivíduos perseguirem seus próprios interesses e com esclarecimento, em condições de liberdade, tenderem sempre a promover ao mesmo tempo o interesse geral. Viva Adam Smith!

Trata-se então de concentrar os esforços dos práticos em garantir as condições necessárias de liberdade. À doutrina filosófica de o governo não ter o direito de interferir, e à doutrina divina de não ter necessidade de interferir, acrescentou-se uma prova científica de a sua interferência é inadequada. Viva essa Ciência Econômica!

O individualismo dos filósofos políticos apontava para a adoção do laissez faire. A harmonia divina ou científica (conforme o caso) entre o interesse privado e a vantagem pública apontava para o laissez faire. Viva o liberalismo!

A inépcia dos administradores públicos prejudicaria o homem prático em favor do laissez faire. Quase tudo feito pelo Estado mercantilista, no século XVIII, além das suas funções mínimas teria sido, ou parecia ser, prejudicial ou malsucedido.

Lutava-se, na França, contra a Monarquia Absolutista. Pressupunha-se, na Inglaterra, o progresso material entre 1750 e 1850 ter vindo da iniciativa individual e a Revolução Industrial não dever quase nada à influência diretiva da sociedade organizada como um todo, inclusive por ter já alcançado a Monarquia Parlamentarista em 1788.

Os economistas ensinavam: a riqueza, o comércio e a maquinaria eram filhos da livre concorrência. Disseram-nos: a iniciativa privada irrestrita promoveria o bem maior do todo. Algo melhor seria possível para o homem de negócios?

A nova doutrina econômica via o mundo como obra do relojoeiro divino (“design inteligente”) e parecia tirar todas as coisas do acaso, do caos e dos velhos tempos. Neste ponto do laissez faire, as novas ideias reforçaram as antigas.

O olho humano não necessitava planejar milagrosamente todas as coisas para o melhor. Bastava a conquista suprema do acaso, operando em condições de livre concorrência e laissez faire. O princípio do “darwinismo social” da sobrevivência do mais apto poderia ser considerado uma vasta generalização do dito pela Economia.

As interferências “socialistas” (sic) tornaram-se, à luz desta síntese grandiosa, não apenas inconvenientes, mas ímpias. Esse adjetivo, usado ironicamente por Keynes, refere-se à “impiedade” de quem não tem religião, ou seja, ateu, herege, incrédulo, irreligioso – e não crente, pio, religioso. Estende de quem não respeita as coisas sagradas ou as práticas religiosas para quem ofende o considerado digno de respeito.

Uniram-se todas as coisas boas em um único fim quando todos os pensadores não hereges passaram a ser pregadores praticamente a mesma coisa: individualismo e laissez faire. A corporação dos economistas estava lá para provar: o menor desvio para a impiedade envolvia a ruína financeira.

Essas razões “científicas” (sic) e essa atmosfera intelectual-religiosa são as explicações, segundo Keynes, quer saibamos disso ou não, por qual razão sentimos uma inclinação tão forte a favor do laissez faire. Daí a ação estatal para regular o valor do dinheiro, ou planejar o investimento, ou controlar a população, provoca suspeitas…

Afirmou Keynes: “um estudo da história da opinião é uma preliminar necessária para a emancipação da mente. Não sei o que torna um homem mais conservador – não saber nada além do presente, ou nada além do passado”.

Por isso, demonstrou os economistas terem fornecido o pretexto científico pelo qual o homem prático poderia resolver a contradição entre o egoísmo e o socialismo, emergente da filosofia do século XVIII e da decadência da religião revelada. A linguagem dos economistas prestou-se à interpretação do laissez faire.

O Marquês d’Argenson, por volta de 1751, foi o primeiro a entusiasmar-se com as vantagens econômicas de os governos deixarem o comércio em paz. Para governar melhor é preciso governar menos. A verdadeira causa do declínio das nossas manufaturas, declarou ele, é a proteção lhes dada.

Segundo Keynes, a frase típica “laissez faire, laissez aller, laissez passer, le monde va de lui-même”, não se encontra nas obras de Adam Smith, de Davi Ricardo ou de Malthus. Mesmo a ideia não está presente, de forma dogmática, em nenhum desses autores.

Jeremy Bentham (1748-1832) não era economista, mas em sua obra se encontra a regra do laissez faire, tal como antigamente, adotada ao serviço da Filosofia utilitarista. Esta teoria ética normativa respondia a todas as questões acerca do fazer, admirar e viver em termos da maximização da utilidade e da felicidade. Ele escreveu: “A regra geral é: nada deve ser feito ou tentado pelo governo; o lema ou palavra de ordem do governo deveria ser: – Fique quieto!”.


Fernando Nogueira da Costa – Professor Titular do IE-UNICAMP. Obras (Quase) Completas em livros digitais para download gratuito em http://fernandonogueiracosta.wordpress.com/). E-mail: fernandonogueiracosta@gmail.com.

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