Eastern Economic Forum (Fórum Econômico Oriental) (Foto: Agência Sputnik)
'Dados do governo russo listam 2.8 mil projetos de investimento em curso', diz o jornalista Pepe Escobar, que destaca uma 'nova era geoeconômica policêntrica
Tradução de Patricia Zimbres
O Presidente russo Vladimir Putin abriu e fechou sua fala bastante detalhada ao Fórum Econômico Oriental, em Vladivostok, com uma retumbante mensagem: "O Extremo Oriente é a prioridade estratégica da Rússia para a totalidade do século XXI".
E essa foi a impressão que teríamos mesmo antes da fala de Putin, ao interagir com executivos que conversavam espalhados pelo deslumbrante campus da Universidade Extremo-Oriental (inaugurada há apenas onze anos) onde se realizou o fórum, contra o pano de fundo da ponte suspensa de quatro quilômetros que chega à Ilha Russky cruzando o Estreito de Bósforo Oriental.
As possibilidades de desenvolvimento do que de fato é a Ásia Russa, e um dos principais nós do Ásia-Pacífico, são literalmente estarrecedoras. Dados do Ministério do Desenvolvimento do Extremo Oriente e do Ártico Russos - confirmados por diversos interessantes painéis realizados no decorrer do Fórum – listam o colossal número de 2.800 projetos de investimento já em curso, sendo que 646 deles já se encontram em funcionamento, acompanhados da criação de diversas Zonas Econômicas Avançadas Especiais (ZEAE) internacionais e da expansão do Porto Livre de Vladivostok, que abriga várias centenas de pequenas e médias empresas (PMEs).
Tudo isso vai muito além da política russa de "pivotar para o Leste" anunciada por Putin em 2012, dois anos antes dos eventos Maidan, em Kiev. Para o restante do planeta, para não mencionar o Coletivo Ocidental, é impossível entender a mágica do Extremo Oriente Russo sem estar presente no local – a começar por Vladivostok, a charmosa capital não-oficial do Extremo Oriente, com suas belíssimas montanhas, sua notável arquitetura, suas ilhas verdejantes e baías arenosas e, é claro, o terminal da lendária Ferrovia Transiberiana.
O que os visitantes do Sul Global viram – o Coletivo Ocidental esteve praticamente ausente do Fórum – foi uma obra em andamento em desenvolvimento sustentável: um estado soberano dando o tom em termos de integrar vastas faixas de seu território à nova era geoeconômica policêntrica que vem surgindo. Delegações da ASEAN (Laos, Mianmar, Filipinas) e do mundo árabe, para não falar da Índia e da China, entenderam por completo o quadro.
Bem-vindos ao 'movimento de desocidentalização'
Em sua fala, Putin ressaltou que a taxa de investimentos no Extremo Oriente é três vezes maior que a da média para as demais regiões russas; que apenas 35 por cento do Extremo Oriente foi explorado até agora, a região tendo um potencial ilimitado para indústrias de recursos naturais; que os gasodutos Poder da Sibéria e Sakhalin-Khabarovsk-Vladivostok serão interconectados e que, até 2030, a produção de gás natural liquefeito (GNL) no Ártico Russo irá triplicar. Em um contexto mais amplo, Putin deixou claro que "a economia global mudou e continua mudando, e que o Ocidente, com suas próprias mãos, vem destruindo o sistema de comércio e finanças criado por ele próprio". Não é de admirar, portanto, que o faturamento do comércio russo com a região do Ásia-Pacífico tenha aumentado em mais 18,3 por cento apenas na primeira metade de 2023.
Entra em cena o Comissário Presidencial de Direitos Comerciais Boris Titov, mostrando que essa reorientação para longe do Ocidente "estático" é inevitável. Embora as economias ocidentais sejam desenvolvidas, elas já são "hiperinvestidas e morosas", segundo Titov:
"No Leste, por outro lado, tudo cresce explosivamente, avança com rapidez e tem desenvolvimento acelerado. E isso se aplica não apenas a China, Índia e Indonésia, mas também a muitos outros países. Eles hoje são o centro do desenvolvimento, não mais a Europa, e lá, por fim, se encontram nossos maiores consumidores de energia".
É praticamente impossível fazer justiça à imensa abrangência e às discussões absorventes que tiveram lugar nos principais painéis, em Vladivostok. Aqui vão apenas amostras dos temas principais.
Uma sessão do Clube Valdai focou o acúmulo de efeitos positivos do "pivotar para o Leste" russo, com o Extremo Oriente posicionado como o centro natural para o redirecionamento de toda a economia russa para a geoeconomia asiática.
Mas há problemas, é claro, como apontado por Wang Wen, do Instituto Chongyang para Estudos Financeiros da Universidade Renmin. Vladivostok tem uma população de apenas 600.000. Os chineses diriam que, para uma cidade desse porte, a infraestrutura é deficiente, "e que ela precisa, portanto, de mais infraestrutura o mais rápido possível". Vladivostok poderia se tornar a próxima Hong Kong. A solução é construir Zonas Econômicas Especiais como em Hong Kong, Shenzhen e Pudong". O que não é difícil, uma vez que "mundo não-ocidental dá muito boas-vindas à Rússia".
Wang Wen não poderia deixar de ressaltar o divisor de águas representado pelo Mate 60 Pro da Huawei: "As sanções não são assim tão más. Elas só fazem fortalecer o 'movimento de desocidentalização', como ele é informalmente chamado na China.
A China, em meados de 2022, entrou naquilo a que Wang chama de "modo silencioso" em termos de investimentos, por medo das sanções secundárias dos Estados Unidos. Mas isso agora está mudando, e as regiões de fronteira, mais uma vez, passam a ser vistas como de importância crucial para os laços comerciais. No Porto Livre de Vladivostok, a China é o maior investidor, com compromissos da ordem de onze bilhões de dólares.
A Fesco é a maior empresa de transporte marítimo da Rússia – chegando até China, Japão, Coreia e Vietnã. A empresa dedica-se ativamente à conexão do Sudeste Asiático com a Rota Marítima do Norte, em cooperação com as Ferrovias Russas. O principal é estabelecer uma rede de nós logísticos. Os executivos da Fesco a descrevem como uma "mudança titânica em termos de logística".A Ferrovias Russas, em si, são um caso fascinante. Ela opera, entre outros, o Trans-Baikal, que é a linha ferroviária mais movimentada de todo o mundo, interconectando a Rússia desde os Urais até o Extremo Oriente. Chita, bem às margens da Transiberiana – um centro manufatureiro de máxima importância a 900 km a leste de Irkutsk – é considerada a capital das Ferrovias Russas. E então há o Ártico. O Ártico é a origem de 80 por cento do gás russo, de 20 por cento de seu petróleo, de 30 por cento de seu território e de 15 por cento do seu PIB, mas tem uma população de apenas 2,5 milhões. O desenvolvimento da Rota Marítima do Norte exige alta-tecnologia de primeira linha, como, por exemplo, uma frota de navios quebra-gelo em constante evolução.
Líquido e estável como o vodca
Tudo o que transpirou em Vladivostok se conecta diretamente à badaladíssima visita de Kim Jong-um, da Coreia do Norte. O timing foi perfeito. Afinal, a região Primorsky Krai, no Extremo Oriente, faz fronteira imediata com a República Popular Democrática da Coreia (RPDC).
Putin ressaltou que a Rússia e a RPDC vêm desenvolvendo diversos projetos conjuntos nas áreas de transportes, comunicações, logística e naval.
Muito mais do que as questões militares e espaciais amigavelmente discutidas por Putin e Kim, o cerne das discussões foi a geoeconomia: uma cooperação trilateral Rússia-China-RPDC, com o objetivo específico de aumentar o tráfego de contêineres transitando pela RPDC, além da sedutora possibilidade de uma ferrovia norte-coreana chegar a Vladivostok para então criar conexões com o interior da Eurásia por intermédio da Transiberiana.
Como se isso não fosse suficientemente revolucionário, diversas mesas-redondas discutiram o Corredor Internacional de Transportes Norte-Sul (CITNS). O Corredor Rússia-Cazaquistão-Turcomenistão-Irã será finalizado em 2027 – e será um dos principais ramais do CITNS.
Paralelamente, Nova Delhi e Moscou estão ansiosas para dar início ao Corredor Marítimo do Leste (CML) o quanto antes – essa é a denominação oficial da rota Vladivostok-Chenai. Sarbananda Sonowal, o ministro dos Portos, Transporte Marítimo e Hidrovias, promoveu um workshop indo-russo sobre o CML a ter lugar em Chenai a partir de 30 de outubro, para discutir "a operacionalização suave e rápida" do corredor.
Tive a honra de participar de um dos principais painéis, A Grande Eurásia: Motores da Formação de um Sistema Internacional Alternativo Monetário e Financeiro.
Uma conclusão importante foi que o terreno está preparado para um sistema de pagamentos comum à Eurásia – parte da minuta de declaração da União Econômica Eurasiana (UEEA) para 2030-2045 – contra o pano de fundo da Guerra Híbrida e das "moedas tóxicas" (83 por cento das transações da UEEA já as abandonaram.
Mesmo assim, o debate prossegue feroz quando se trata de cesta de moedas nacionais, cesta de mercadorias, estruturas de pagamentos e amortizações, uso do blockchain, um novo sistema de precificação ou da criação de uma bolsa de valores única. Tudo isso seria tecnicamente possível? Sim, mas levaria entre 30 e 40 anos para tomar forma, como ressaltando pelo painel.
Nas atuais circunstâncias, um único exemplo dos desafios futuros é o bastante. A ideia de criar uma cesta de moedas para um sistema de pagamentos alternativo não ganhou tração na cúpula dos BRICS devido à posição da Índia.
Aleksandr Babakov, vice-presidente da Duma, evocou as discussões entre a Organização de Cooperação de Xangai (OCX) e o Irã sobre financiamento de comércio em moedas nacionais, incluindo um mapa de percurso para a busca das melhores soluções na legislação para ajudar a atrair investimentos. Isso vem sendo discutido também com empresas privadas. O modelo é o sucesso do faturamento do comércio Rússia-China.
Andrey Klepach, economista-chefe da VEB, respondeu que a melhor moeda é "líquida e estável". Como o vodca". Não estamos lá ainda, por enquanto. Dois terços do comércio ainda é efetuado em dólar e euro; o yuan chinês responde por apenas três por cento. A Índia se recusa a usar o yuan. E há um enorme desequilíbrio entre Rússia e China: cerca de 40 milhões de rúpias estão parados em contas de exportadores russos, sem ter para onde ir. Uma prioridade é elevar a confiança no rublo: a moeda tem que ser aceita tanto na Índia como na China. E um rublo digital vem se tornando necessário.
Wang Wen concordou, dizendo que não há ambição suficiente. A Índia deve exportar mais para a Rússia, e a Rússia deve investir mais na Índia.
Em paralelo, como apontado por Sohail Khan, secretário-geral adjunto da OCX, a Índia agora controla nada menos que 40 por cento do mercado global de pagamentos digitais. Há apenas sete anos, sua participação era de zero. Isso explica o sucesso de seu sistema de pagamentos unificado.
Um painel BRICS-UEEA expressou esperança de que uma cúpula conjunta das duas importantes organizações multilaterais venha a ser realizada no próximo ano. Mais uma vez, trata-se aqui dos corredores de transportes transeurasianos – uma vez que dois-terços do faturamento mundial seguirá a trilha oriental que conecta a Rússia à Ásia.
Nos BRICS-UEEA-OCX, as maiores empresas russas já estão integradas às transações dos BRICS, desde as Ferrovias Russas e a Rostec até grandes bancos. Resta o grande problema de como explicar a UEEA para a Índia – mesmo que a estrutura da UEEA seja vista como um sucesso. E vejam isso: um acordo de livre comércio com o Irã será fechado em breve.
No último painel de Vladivostok, a porta-voz do Ministério de Relações Exteriores russo, Maria Zakharova – a correspondente contemporânea de Hermes, o mensageiro dos deuses – observou que as cúpulas do G20 e dos BRICS prepararam o terreno para o discurso proferido por Putin no Fórum Econômico Oriental.
Isso exigiu uma "fantástica paciência estratégica".
A Rússia, afinal, "nunca apoiou o isolamento" e "sempre defendeu as parcerias". A atividade frenética que teve lugar em Vladivostok acaba de demonstrar que o "pivotar para a Ásia" significa maior conectividade e mais parcerias em uma nova era policêntrica.
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