Imagem: Gerhard Lipold
Por BRUNO RESCK*
A euforia em torno do agro, sobretudo da soja, o ouro verde do século XXI, pode se tornar mais uma cicatriz de um ciclo exportação de matéria prima
A história do Brasil pode ser contada através de diversos ciclos econômicos desde a chegada dos portugueses em 1500 até a sua industrialização tardia em meados do século XX. Ciclos de opulência e decadência que deixaram suas cicatrizes ao longo do tempo e do espaço. Quem visita Ouro Preto em Minas Gerais fica encantado com as centenas de construções do século XVIII, como a Basílica de Nossa Senhora do Pilar construída em estilo barroco com rica ornamentação em ouro, ou o casarão que hoje abriga o Museu Casa dos Contos, um antigo palacete construído entre 1782 e 1789 para ser a residência de João Rodrigues de Macedo, cobrador de impostos da Capitania de Minas Gerais e um dos homens mais ricos daquele período. A extração de ouro entre 1700 e 1850 gerou grandes fortunas e, passado o ciclo, deixou um rastro de decadência e estagnação.
Manaus, capital do Amazonas, e Belém, capital do Pará, conheceram a opulência enquanto durou o Ciclo da Borracha entre 1860 e 1912 e disputavam o título de “Paris dos Trópicos”.[i] Manaus foi a primeira cidade a se urbanizar no Brasil com água encanada, telefone, telégrafo, ruas planejadas e a primeira capital a receber energia elétrica. O ciclo da borracha deixou um conjunto arquitetônico que simboliza a opulência da Belle Époque da região como o Teatro Amazonas, o Palácio Rio Negro, a Alfandega de Manaus, o Palácio Antônio Lemos, o Teatro da Paz entre outras construções suntuosas que simbolizam o poder econômico gerado pela exploração da borracha.
Com o avanço da produção asiática (graças ao contrabando de sementes pelo inglês Henry Wickham), a borracha produzida na região Amazônica perde competitividade e o ciclo de pujança e riqueza termina deixando falências, abandono dos seringais, desemprego e declínio. “A Amazônia havia deixado de ser o ‘Eldorado’ do arigó e voltava ao ostracismo dos espaços periféricos abandonados pelo capital internacional, depois deste ter usufruído ao máximo dos recursos naturais e dos recursos humanos que ali estavam para servi-lo.”[ii]
Podemos citar outros exemplos de apogeu e queda na economia como o Ciclo do Café (1800 a 1929) que trouxe prosperidade para os produtores refletida nas mansões nos rincões do estado de São Paulo e Rio de Janeiro, materializada, por exemplo, na construção do Teatro Municipal de São Paulo erguido em 1911. Neste período, o café era a principal pauta de exportação do Brasil e os EUA o seu principal comprador, absorvendo cerca de 80% da produção nacional. Em decorrência da quebra da bolsa de Nova York em 1929, os EUA deixaram de comprar nosso café levando o setor e o país à uma profunda crise econômica. A crise de 1929 vai também levar ao debacle outro centro de prosperidade no Brasil: o sul da Bahia, Ilhéus, produtor de cacau.
O fio que une os diferentes ciclos de riqueza e decadência regional na história econômica do Brasil é a produção de commodities para o mercado externo. Historicamente, a atividade econômica do país foi pautada pelo setor primário exportador. O país passou por um processo de industrialização tardia, iniciada com a implantação da Industria de Base no primeiro governo de Vargas e se desenvolveu seguindo como princípio a política de substituição de importação financiada, em grande medida, pelo capital externo. Na década de 1980, a produção industrial chegou a representar 21,8% do PIB nacional.[iii]
No entanto, a partir de 1978, depois de “cinquenta anos de extraordinário desenvolvimento, uma grande crise financeira se abateu”[iv] abrindo caminho para a adesão do país à pauta neoliberal do Consenso de Washington a partir dos anos de 1980. Desde então, o Brasil abraçou com força de dogma o ideário neoliberal que consiste basicamente em: (i) reformar e reduzir o Estado por meio da redução do gasto público e privatização de estatais; (ii) abertura comercial e, (iii) abertura financeira.[v] Ao longo desses quarenta anos de experiência neoliberal o país passou por um severo processo de desindustrialização e uma contínua primarização de sua pauta exportadora, com destaque para o setor do agronegócio e mineração.
O economista norueguês Erik Reinert em sua obra Como os países ricos ficaram ricos, e por que os países pobres continuam pobres,[vi] ao analisar o caminho percorrido pelos países desenvolvidos salienta que os princípios de uma “economia diversificada, menos dependente da agricultura e das matérias primas” é uma lição que ficou esquecida nas últimas décadas. Nesta obra, o autor sublinha uma espécie de “padrão” utilizado pelos países ricos ao longo do processo de desenvolvimento desde o século XVI por Holanda, Veneza e Inglaterra.
Este “padrão” que seria “emulado” por diferentes países pode resumido em: (a) uma indústria forte; (b) monopólio sobre determinada matéria prima e; (c) comércio ultramarino (exportações). Ele traz uma citação do economista Friedrich List que expõe a política secular adotada pela Inglaterra de importar matéria prima e exportar produtos industrializados. Erik Reinert faz menção ao pensamento de Alexander Hamilton (Primeiro Secretário do Tesouro dos Estados Unidos) que no século XVIII recomendou fortemente a defesa do setor industrial como condição necessária para o desenvolvimento dos EUA. Noruega, Japão, Alemanha e Coréia são outros exemplos de países que lançaram mão de tais políticas industriais para o desenvolvimento econômico.
Erik Reinert nos explica os conceitos de “concorrência perfeita e rendimentos decrescentes” e “concorrência imperfeita e rendimentos crescentes”. Pois bem, “concorrência perfeita” é característico de bens primários (commodities) e significa que o produtor não controla o preço dos artigos que produz, ou seja, quem determina o preço na hora da venda de seu produto é o “mercado”. De acordo com Erik Reinert, esta condição é denominada de rendimentos decrescentes: “na medida em que a produção se expande, após certo ponto, mais unidades de um mesmo fator – capital e/ou trabalho – produzirão quantidades adicionais cada vez menores de produto”.
Por outro lado, numa indústria manufatureira, “a evolução dos custos caminha na direção oposta. Uma vez que a produção foi mecanizada, quanto maior o volume produtivo, menor será o custo por unidade produzida”. Em outras palavras, o desenvolvimento de um novo produto, por exemplo, um novo modelo de televisão, demanda altos investimentos em pesquisa e tecnologia, no entanto, a sua fabricação em larga escala diminui significativamente o custo de produção. Dessa forma, as empresas industriais e prestadoras de serviços avançados necessitam conquistar grandes fatias do mercado, pois quanto maior o volume de produção, menores serão os custos. Essas empresas conseguem influenciar, em grande medida, os preços daquilo que vendem. Os economistas chamam de “concorrência imperfeita” e “rendimentos crescentes”.
Analisar a predominância na produção de produtos com rendimentos crescentes ou rendimentos decrescentes pode ser uma boa alternativa para verificar a sofisticação tecnológica do tecido produtivo de um determinado país. Uma poderosa ferramenta de análise empírica é o Atlas de complexidade econômica. Desenvolvido pela Kennedy School, de Havard, o atlas permite analisar a pauta exportadora de um determinado país e medir o grau de sofisticação tecnológica. O Atlas desenvolveu o índice de complexidade econômica que leva em consideração a complexidade da pauta de exportação de cada país. Através deste índice é possível estabelecer importantes correlações entre níveis de renda per capta e complexidade econômica.
O economista Paula Gala[vii] destaca que a partir da utilização do índice de complexidade econômica fica patente de forma empírica o que foi sugerido pelos autores clássicos do desenvolvimento: “países ricos (centro) se especializaram em mercados de competição imperfeita e países pobres (periferia) se especializaram em mercados de competição perfeita.
Ressalvando as limitações na comparação entre países com histórias e economias tão distintas, um exercício interessante é analisar o volume e a complexidade da pauta de exportação do Brasil e da Alemanha. Tomemos como referência o ano de 2021. De acordo com o Atlas, o Brasil em 2021, possuía um PIB per capta de U$ 7.696, exportou um total de U$ 335 bilhões e alcançou o 70° lugar no ranking de complexidade econômica. Por outro lado, a Alemanha apresentou um PIB per capta de U$ 51.203, exportou um volume de U$ 2,02 trilhões e ficou em 4° lugar no índice de complexidade econômica.
O volume de exportação de produtos agrícolas da Alemanha foi de U$ 139 bilhões, representando 6,9% do total de suas exportações, enquanto o Brasil exportou U$ 123 bilhões em produtos agrícolas, significando 36,8% do total das exportações do país. Ou seja, de acordo com o Atlas, no setor agricultura a Alemanha exportou U$ 16 bilhões a mais que o Brasil em 2021. Ora, o Brasil não é “o país do agro”? Não assistimos diariamente nos grandes meios de comunicação que o “agro é pop, o agro é tudo”? A Alemanha é lembrada pelas suas grandes empresas de tecnologia, químicos e automóveis de luxo. O Brasil constrói uma imagem de que é o país do agro.
É evidente que somos um dos maiores exportadores de produtos agropecuários. Mas é preciso verificar em detalhes a composição da pauta de exportação desses países para entender como a Alemanha gera mais riqueza no setor agrícola em relação ao Brasil. Os principais produtos de exportação no setor agricultura da Alemanha são: laticínios, papel e papelão, madeiras, preparados para alimentos, carnes, café e bebidas. Por sua vez, a pauta de exportação do Brasil no setor agricultura é composta, predominantemente, por soja, carne, açúcar, café, milho e polpa de madeira. Fica patente a diferença. Mesmo no setor agrícola (setor primário), a Alemanha exporta produtos com certo grau de beneficiamento, ou seja, produtos industrializados com alto valor agregado.
Em oposição, o Brasil tem se especializado na exportação de produtos com baixo beneficiamento industrial e, portanto, baixo valor agregado. O café é um bom exemplo para entender essa diferença. Enquanto o Brasil exporta o grão de café, a Alemanha possui a maior indústria de torrefação da Europa[viii], dominando a tecnologia da torra, blend e equipamentos para o consumo dessa bebida adicionando valor à sua pauta de exportação.
Somadas as exportações do setor agrícola e do setor de mineração, representam 64% do volume comercializado pelo Brasil em 2021 evidenciando uma forte dependência do setor primário para a balança comercial do país. O Brasil tem se especializado em mercados de competição perfeita de baixa complexidade e rendimentos decrescentes. O agro do Brasil é pop, mas o que deixa nosso agro pop, em grande medida, são os químicos, as sementes e as máquinas produzidas pelos países desenvolvidos como Alemanha, EUA, Japão, China e Canadá.
De acordo com o Atlas do Agronegócio,[ix] três conglomerados (DuPont, Syngenta e Bayer) dominam 60% do mercado mundial de sementes e agrotóxicos. No setor de equipamentos e máquinas agrícolas, poucas corporações dividem o mercado entre si. O mercado global é dominado por três atores: a corporação estadunidense Deere & Company é a líder do Mercado; ela é conhecida pela sua maior marca, a John Deere. A CNH Industrial pertence ao grupo Fiat; suas doze marcas incluem Case, New Holland, Steyr, Magirus e Iveco. O terceiro maior ator é a AGCO, dos EUA, com Gleaner, Deutz-Fahr, Fendt e Massey Ferguson. Estas três empresas compartilham mais de 50% do mercado global[x].
Existe um consenso entre os economistas desenvolvimentistas: todo país desenvolvido pode ser uma potência agrícola, mas ser apenas uma potência agrícola não deixou país nenhum desenvolvido. Commodities e serviços de baixa sofisticação tendem a apresentar retornos decrescentes e não são produzidos em redes complexas (como produtos industrializados) e a “produtividade agregada de uma economia tende a diminuir quando ela se concentra excessivamente em atividades desse tipo”[xi].
É inegável o papel do agronegócio na balança comercial do país e na dinâmica da economia interna do país atualmente. Mas a história do desenvolvimento econômico dos países ricos nos mostra que o setor primário teve um papel importante para subir os degraus da escada da complexidade econômica contribuindo para o desenvolvimento das forças produtivas e gerando melhores empregos e renda para a população.
A euforia em torno do agro, sobretudo da soja, o ouro verde do século XXI, pode se tornar mais uma cicatriz de um ciclo exportação de matéria prima. A atual quadra histórica com a disputa pela hegemonia mundial entre China e EUA e a necessidade de uma transição energética pode abrir uma janela de oportunidade para o Brasil romper com o ciclo de exportador de matéria prima e importador de produtos industrializados através de uma consistente política de (re)industrialização do país.
*Bruno Resck, geógrafo, é professor no Instituto Federal de Minas Gerais (IFMG) – Campus avançado Ponte Nova.
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