quinta-feira, 19 de outubro de 2023

'A integração das integrações': China e Rússia se preparam para mudar os rumos da Eurásia

Presidentes Xi Jinping e Vladimir Putin (Foto: Xie Huanchi)

A Nova Rota da Seda foi resultado do desejo chinês de aumentar sua influência política e econômica na Eurásia, contando, ao mesmo tempo, com o apoio fundamental da Rússia


Valdir da Silva Bezerra, Sputnik Brasil - Enquanto as atenções do mundo estão voltadas para o conflito no Oriente Médio entre Israel e o Hamas, na Eurásia um dos principais eventos do ano acaba de ter lugar. Trata-se do terceiro Fórum do Cinturão e Rota promovido pela China e que ocorreu nos dias 17 e 18 reunindo diversos líderes mundiais, incluindo o presidente russo Vladimir Putin.

Assinalando o aniversário de 10 anos do lançamento da Iniciativa Cinturão e Rota (ou Nova Rota da Seda, como também é conhecido), o fórum reuniu representantes dos países participantes do projeto, no intuito de discutir as perspectivas para o futuro.

Por certo, o processo incutido na Nova Rota da Seda de integração regional em infraestruturas de transporte terrestre e marítimo lançado por Xi Jinping em 2013 foi resultado do desejo chinês de aumentar sua influência política e econômica na Eurásia, contando, ao mesmo tempo, com o apoio fundamental da Rússia.

Moscou, aliás, antes mesmo do lançamento da Nova Rota da Seda, já buscava projetar-se como uma importante líder de um bloco econômico multinacional – eurasiático – e independente, a começar pela formação de uma União Aduaneira com Belarus e o Cazaquistão em 2010, cujo intuito era suprimir entraves ao comércio e estabelecer uma política tarifária comum para a importação de produtos de terceiros países.

Quatro anos depois, em 2014, sob a liderança de Moscou ocorre a formação da União Econômica Eurasiática (UEE) que, além da própria Rússia, Belarus e Cazaquistão, conta ainda com as participações adicionais de Quirguistão e Armênia. A exemplo da União Europeia, a UEE visava estabelecer a livre circulação de mercadorias, serviços, capitais e trabalho entre os seus países-membros.

Para além disso, Putin chegou a comentar em 2011, quando a ideia de formação da União Econômica Eurasiática ainda estava sendo finalizada, que a organização representaria "uma poderosa associação supranacional capaz de se tornar um dos polos do mundo moderno e servir como uma ponte entre a Europa e a dinâmica região da Ásia-Pacífico".

Com isto, a estratégia da Rússia consistia na criação de um "polo de poder" eurasiático no sistema internacional, fazendo uso dos recursos naturais e industriais existentes no continente. Tal ideia, por sua vez, também é condizente com o pensamento chinês para a região.

No plano energético, a UEE detém cerca de 14% da produção de petróleo e cerca de 19% da produção total de gás natural do mundo, fator este que, os aglutinados, reserva à iniciativa russa recursos de poder suficientes para consolidar a importância da Eurásia no plano geoeconômico global.

E mais uma vez, a exemplo do período soviético no âmbito do COMECON (Conselho para Assistência Econômica Mútua), a Rússia demonstra uma evidente superioridade dentro do bloco, uma vez que é responsável por cerca de 84% de seu território, 54% de sua produção de petróleo, 93% de sua produção de gás natural e 78% de sua população total.

Ainda assim, dentro da Eurásia a Rússia enxergou com bons olhos a iniciativa de integração continental promovida pela China através de sua Nova Rota da Seda, envolvendo investimentos Estatais chineses em infraestrutura nos países da Ásia e da Europa, direcionados para a construção de rodovias, portos, gasodutos e ferrovias que objetivam transportar de forma mais eficiente a produção chinesa até esses mercados e vice-versa.

No todo, vale lembrar, a Nova Rota da Seda engloba cerca de 55% do PIB, 70% da população e 75% das reservas energéticas do mundo, constituindo-se um dos mais ambiciosos projetos empreendidos por uma grande potência em toda a história.

Diante desse contexto foi que em 2015 Vladimir Putin e Xi Jinping assinaram uma declaração conjunta que versava a necessidade de harmonização entre a União Econômica Eurasiática (sob a liderança da Rússia) e a Nova Rota da Seda (sob a liderança chinesa), acenando para a "cooperação sino-russa na Eurásia".

Para o Ocidente, tal aceno representou um verdadeiro pesadelo do ponto de vista geopolítico, dado que a junção do poderio econômico chinês com os recursos energéticos da Rússia faz da Eurásia um "ator geopolítico global" da mais alta importância.

Afinal, o que russos e chineses propõem, cada um a seu modo, não é somente uma iniciativa clássica de integração regional – é, na verdade, um megaprojeto, compreendendo as mais diversas áreas de cooperação (da economia à cultura) que, uma vez implementadas, conduzirão à criação de uma "Eurásia autônoma e independente" no plano internacional.

Ao mesmo tempo, conforme afirmou Vladimir Putin em entrevista a um canal estatal chinês, essa união sino-russa no continente eurasiático testemunhada hoje não se deu a partir da conjuntura política recente, pelo contrário, ela foi sendo construída gradualmente ao longo das últimas décadas.

A começar pela resolução de questões espinhosas, como a demarcação fronteiriça entre ambos os países em 2004, evoluindo a partir de então no sentido de eliminar quaisquer questões que pudessem impedi-los de avançar em suas relações bilaterais.

Como resultado, a China tomou o lugar da Alemanha como principal parceira comercial da Rússia a partir de 2009, ao passo que hoje a Rússia ocupa o primeiro lugar entre os fornecedores de recursos energéticos ao mercado chinês.

Enquanto isso, o fornecimento de gás russo à China em 2023 deverá atingir o patamar de 22 bilhões de metros cúbicos, ante os 15 bilhões de metros cúbicos exportados em 2022.

Tais relações econômicas se refletem justamente na confiança mútua existente entre russos e chineses que, por sua vez, é manifestada em seu desejo de avançar em conjunto tanto a União Econômica Eurasiática como a Nova Rota da Seda.

Em se tratando de futuro, podemos esperar que a coordenação sino-russa envolvendo ambas as iniciativas fará jus à alcunha de "integração das integrações".

Quanto a isso, há muito pouco que o Ocidente possa fazer para impedir a realização deste plano encabeçado por Putin e Xi, plano esse que fará da Eurásia um centro de poder global e que tende a mudar a própria história do mundo no século XXI.

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