sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

ENTREMENTES - Brasilidade em ponto crítico: Antonio Candido e o patriotismo

Antonio Candido doou seu acervo para a biblioteca da Unicamp (Unicamp | Reprodução)

Autor elaborou complexos esquemas para a literatura, mas as reedições de seus livros resgatam a dimensão de disputa inerente à identidade nacional. Leia no novo artigo da série Entrementes: futebol, política e cultura popular

Hélcio Herbert Neto
diplomatique.org.br/

O comedimento de Antonio Candido combina com seu profundo esquematismo. Em oposição a outros influentes pensadores da sua geração, o escritor não ficou conhecido por sua oratória ou pela capacidade de conquistar grandes audiências – talvez isso explique os raros programas que trazem em vídeo o pesquisador como entrevistado. Suas propostas estão contidas na extensa bibliografia com sua assinatura, que priorizam a classificação, o ordenamento e a definição de quadros estáticos que sirvam, inclusive, para futuras análises.

Os modelos fixos esboçados são recuperados pelo lançamento da coleção Antonio Candido, da Editora Todavia. A sustentação da maioria de seus livros é o esforço para esquadrinhar o que foi escrito pelos autores brasileiros. Isso se desenvolve principalmente a partir do dilema entre a literatura, com sua capacidade criativa, e a sociedade, com os inescapáveis atravessamentos sociais. Mas essa estrutura, abrangente e funcional, que dá conta de boa parte de seu trabalho colapsa ao esbarrar no sentimento nacional no Brasil.

É verdade que em outras publicações, esparsas, o autor delineia uma visão menos estática. A sua defesa da universalização da literatura e, como consequência, da relação indissociável com os direitos humanos aponta nesse sentido. É um dos raros textos em que a forma livro e toda a pompa que a acompanha não se sobrepõem às diversas maneiras de se deparar com as fabulações: a capacidade de criar ou fruir histórias é compartilhada por todos, daí a necessidade de garantir por meio de políticas públicas o incentivo a essa dimensão da vida pública.

Ou seja: os grandes movimentos literários, os círculos influentes da cultura e a assimilação das novas tendências por gabinetes oficiais são, de forma quase inédita em toda a sua obra, equiparados às vivências populares do enredo de escola de samba ou da experiência de ouvir rádio. Parece uma concessão para um bem maior: o reconhecimento de que o estímulo à capacidade criativa deve ser comparado às garantias básicas, para que seja construída uma sociedade mais justa. Em uma leitura menos condescendente, seria um rápido desvio.

Contudo, foi a brasilidade que obrigou Candido a deixar de lado, mesmo que por um momento, os esquemas que subdividiam em recortes temporais precisos até o pensamento social no país para dar vazão à instabilidade do patriotismo. É curioso que, décadas após a edição do artigo em livro, o autor tenha retomado o tema, com o mesmo título, nas suas colaborações para veículos de imprensa. É um indício de que o assunto continuava quente – ou de que, nesse intervalo, outra vez o sentimento nacional teria sofrido alterações.

A mobilidade que é identificada no centro da brasilidade não é a mesma enxergada nos escritos de Oswald de Andrade. A primeira impressão é de que, ao avaliar a obra do poeta modernista, as oscilações são elogiadas. As mudanças são registros da personalidade do autor, testemunhos de verve e intensidade. A instabilidade do patriotismo não parece elogiável: é um abismo, quase incógnita, que acompanha a violência política. É sinônimo, principalmente no século XX, da incompatibilidade com qualquer padrão preestabelecido.

Nem mesmo o movimento que Candido destaca em Carlos Drummond de Andrade – a variar entre o engajamento e a contemplação – apresenta a intensidade da dinâmica do pertencimento ao Brasil, que ora agrada os setores mais conservadores e agressivos, ora estimula a ação social e o combate às desigualdades. O interesse pela oscilação do poeta mineiro sugere uma tímida aproximação com a questão nacional: nos dois casos, a dimensão política é inescapável e com isso as transformações são menos enigmáticas.

Há uma constante nesses textos. A defesa da condição de direito humano da literatura, a avaliação do legado de Oswald, o acompanhamento do percurso de Drummond e a denúncia a respeito da instabilidade do patriotismo no Brasil foram reunidos em Vários escritos, lançado em 1965. Até pelo seu desenho, o livro se distingue de Literatura e sociedade e Formação da literatura brasileira – todos com reedições já nas livrarias. A vocação fragmentária é condizente, inclusive, com os dilemas do sentimento nacional. Porém, ainda assim, é episódica.

Na hierarquia do horizonte artístico, Candido deixa o rádio em posição inferior. Na tentativa de delinear a formação do público no país, o autor não ressalta a abrangência radiofônica do fim do milênio – e, é permitido supor pelo modo como se atém à divisão entre povos primitivos e civilizados, não valoriza tanto a cultura oral brasileira. São elementos que não diminuem o texto sobre o nacionalismo: pelo contrário, fazem com que o deslocamento para levar a cabo a análise sobre o Brasil deva ser mais exaltado.

Quem não vacilou em declarar o orgulho de ter nascido no país, nos últimos anos, estava em descompasso com os acontecimentos de Brasília. Mesmo assim, os grupos sensíveis às desigualdades se emocionaram com os tímidos gestos que a mudança na presidência da República promoveu em 2023. Embora, obviamente, não se debruce sobre o século XXI, é a guinadas como essas que Candido se referia ao afirmar que, no Brasil, o patriotismo é uma palavra instável. Seu panorama parte da República Velha e chega à redemocratização.

O assombro com a inconstância é menor para quem está atento à cultura popular: a ampla circulação faz com que novos significados sejam criados, muitas vezes à revelia dos eixos do poder oficial. Nesse sentido, é necessário ir ao limite da proposta de Candido para enxergar que a brasilidade, simultaneamente, inspira reações distintas em diferentes grupos do país. É só olhar a extensão territorial e notar que essas possibilidades são enormes. Por isso, a canção radiofônica brasileira desperta gestos que vão da subversão à restauração de privilégios mais bárbara.

O futebol, outro elemento de identidade nacional ao lado da música popular, também pode ser associado ao ímpeto democrático ou às retrações autoritárias. A instabilidade do patriotismo é nítida em partidos e movimentos bem delimitados: se o militarismo pós-golpe de 1964 se vangloriava das dimensões do país e exaltava a proximidade com os Estados Unidos ao mesmo tempo, os atos pela redemocratização conciliavam a brasilidade e luta anti-imperialista. É somente um dos tantos exemplos dessas oscilações.

Candido acena para uma identidade nacional particular. Definida pela política e pela esfera de confrontos que atravessa toda a sociedade brasileira, essa noção não recorre a essencialismos, nem instaura mito fundador. Esquemático e prudente, sociólogo e crítico literário oferece munição para a construção de um nacionalismo propositivo, atrelado a conflitos sociais, com o intuito de corrigir os rumos do próprio país. No entanto, identifica que o conceito de patriotismo está em xeque. É necessário disputá-lo.


Helcio Herbert Neto é doutor em História Comparada (UFRJ), mestre em Comunicação (UFF), formado em Jornalismo (UFRJ) e em Filosofia (UERJ).

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