sexta-feira, 8 de dezembro de 2023

VENEZUELA/GUIANA - A disputa por Esequibo

Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, anuncia a criação de uma província do país na região de Esequibo, na Guiana (Reprodução/X/@NicolasMaduro)

Se a disputa entre os dois países existe há mais de um século por que agora o assunto passou a interessar à imprensa brasileira?


Nas últimas semanas, uma série de reportagens e artigos de opinião foram publicados no Brasil acerca das tensões entre Venezuela e Guiana em relação ao território de Esequibo, reivindicado pelos venezuelanos. O que é majoritariamente publicizado em grandes veículos de mídia é que o governo autoritário de Nicolás Maduro está disposto a jogar a América do Sul em uma guerra para angariar apoio popular nas vésperas das eleições que ocorrem no país em 2024. Seria mais um ato impensado do ditador venezuelano. Uma outra perspectiva combina o autoritarismo venezuelano com um pretenso imperialismo bolivariano na região, chegando ao ponto de compará-lo com as incursões e ingerências dos Estados Unidos no continente.

Pois bem, essa argumentação apresenta uma série de problemas. Em primeiro lugar, leva a crer que a disputa entre Guiana e Venezuela acerca do território em questão começou agora, ou seja, é uma bandeira política de Maduro e Chávez, ignorando a historicidade da questão, que remonta ao século XIX e faz parte da cultura política venezuelana, sendo compartilhada por praticamente todo espectro político do país. Opositores políticos do chavismo como Leopoldo Lopez e Henrique Capriles criticavam Chávez pela tentativa de se aproximar do governo de Georgetown e pela falta de um discurso mais duro em favor dos interesses venezuelanos em Esequibo.

Essa tentativa de “editar” o passado faz parte de uma operação ideológica que se articula aos interesses particulares constituídos na região atualmente, ou seja, se a disputa entre os dois países existe há mais de um século por que agora o assunto passou a interessar à imprensa brasileira? Uma das respostas que pode ser dada é o fato de que existe um elemento novo, ou seja, uma possível ameaça de invasão militar venezuelana, o que coloca em risco a fronteira brasileira com os dois países. Ou mesmo as questões econômicas que dizem respeito ao comércio brasileiro com a Venezuela. Em outras palavras, a possibilidade de uma guerra não é de interesse brasileiro ou latino-americano, por isso a atenção dada à questão.

Ora, então como explicar a conivência de muitos desses meios de comunicação com a presença militar intensa dos Estados Unidos em diversos territórios latino-americanos? Ou como explicar a cumplicidade de parcelas importantes das elites latino-americanas com a militarização de forças policiais, que atuam violentamente contra a população trabalhadora pobre? A questão, por óbvio, não é apenas uma reação preventiva das elites nacionais brasileiras e latino-americanas contra uma possível guerra entre Venezuela e Guiana, mas sim um sintoma de uma disputa intercapitalista em que a América Latina é um palco privilegiado.

A reivindicação venezuelana acerca de Esequibo remonta ao século XIX e início do XX, quando em 1899 foi estabelecido, por uma decisão de um tribunal internacional, que a região pertencia à Guiana, então uma colônia britânica. Tal decisão contrariava o reconhecimento de que Esequibo fazia parte do território venezuelano desde o século XVIII em função das características do período colonial. No entanto, após a descoberta de ouro, as autoridades britânicas ocuparam a região e a anexaram, o que foi chancelado pela decisão de 1899. Posteriormente, em 1949, veio a público o conhecido memoradum Mallet-Prevost, escrito em 1944 pelo jurista estadunidense Mallet-Prevost para ser publicado após sua morte. No documento, Prevost indica que havia um acordo entre os britânicos e estadunidenses em 1899 para retirar o território do controle venezuelano durante as audiências do Tribuna Internacional, que por sinal, não contou com representantes do país sul-americano.

Diante de tal documento e no contexto de descolonização que marcou o pós-Segunda Guerra, a Venezuela entra com um recurso junto à ONU, o que resulta em 1966 na assinatura do Acordo de Genebra, que substitui o acordo assinado em 1899 e indicou a necessidade de uma solução negociada entre Guiana e Venezuela para o território em disputa. Dessa forma, desde os anos 1960, a relação entre os dois países é medida por tal tratado. Durante o período conhecido como Pacto de Punto Fijo na Venezuela, marcado pelo revezamento entre dois partidos tradicionais no poder (AD e Copei), a política externa de Caracas foi marcada pela aproximação e tensionamento, a depender das pressões de setores sociais específicos, como os militares, por exemplo.

Com a eleição de Hugo Chávez em 1998 e o início da Revolução Bolivariana, a relação entre os dois países passou a ser de aproximação diplomática e econômica. Chávez visitou a Guiana em duas oportunidades no contexto de incentivo às iniciativas de integração regional, como a Unasul e a Alba. Ao mesmo tempo, a Venezuela buscava diversificar seus parceiros econômicos, aumentando os acordos comerciais, militares e diplomáticos com países como China e Rússia. Tal fato deixa claro que a competição intercapitalista na América Latina durante as primeiras décadas do século XXI é o pano de fundo da atual crise em relação a Esequibo.

Com a morte de Chávez em 2013 e a eleição de Nicolás Maduro, as relações entre Venezuela e Guiana permaneceram amigáveis, o que levou, como já foi colocado, a críticas oposicionistas contra tal postura do governo bolivariano. Tanto Venezuela como Guiana reconheciam o Acordo de Genebra e permanecia a perspectiva de que existia uma negociação, ainda que amena, em torno do território de Esequibo. No entanto, a partir da descoberta de grandes jazidas de petróleo e gás natural na região em 2015, o governo da Guiana entrou com uma ação junto a órgãos internacionais associados à ONU para garantir a validade dos tratados firmados em Paris em 1899, cancelando, na prática, o Acordo de Genebra.

Foi essa iniciativa de Georgetown que resultou na radicalização da postura venezuelana, uma vez que uma série de empresas estadunidenses e europeias passaram a explorar as riquezas naturais descobertas em Esequibo. Dessa forma, tal conjuntura tornou possível um acelerado crescimento econômico na Guiana nos últimos anos, ao mesmo tempo que aumentou o interesse dos países capitalistas centrais na região.

A disputa por Esequibo entre Venezuela e Guiana não envolve apenas os dois países, sendo mais uma manifestação da correlação de forças internacionais na atual fase do desenvolvimento capitalista. Não que Maduro não tenha interesses eleitorais e políticos com a questão, afinal de contas a Venezuela passa por uma séria crise institucional, política e econômica. No entanto, ficar preso a tais questões significa analisar apenas as aparências do fenômeno, o que mais confunde do que explica. O desafio é conseguir ultrapassar tal perspectiva e combiná-la com a essência das contradições sociais e políticas em questão.

Atualmente, os projetos de modernização em voga no Oriente, em especial na China, demonstram vantagens em relação ao Ocidente. É possível que dentro de algumas décadas a principal potência mundial deixe de ser os Estados Unidos, o que significa uma possível transformação radical nas formas de interação entre os países e nas formas de relação de produção. As radicalizações nas incursões militares nos últimos anos (Ucrânia, Palestina, Síria…) devem ser entendidas nesse contexto, em que a potência até então hegemônica busca construir condições para a sustentação de sua posição relativa perante o avanço de outras formas de modernização.

No fundo, é curioso pensar que enquanto enfrentamos a maior crise climática da história, as tensões internacionais aumentem em virtude de combustíveis fosseis como o petróleo. Tal fato demonstra o caráter autofágico do capitalismo e a necessidade de sua superação urgentemente. Essa não é uma questão ideológica, mas sim de sobrevivência.



Tiago Santos Salgado é doutor em História pela PUC-SP e pós-doutorando no Departamento de História da Unioeste.

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