quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

Javier Milei e Jair Bolsonaro são produtos do neoliberalismo em sua era de declínio

Pôster de Javier Milei em 30 de novembro de 2023, em Buenos Aires, Argentina. (Tomas Cuesta/Getty Images)

OLAVO PASSOS DE SOUZA
jacobinlat.com/
TRADUÇÃO: JORGELINA LÓPEZ

Javier Milei, que tomou posse ontem, priorizou questões econômicas em detrimento de questões culturais em sua campanha, ao contrário de seu similar brasileiro, Jair Bolsonaro. Mas ambos os líderes de extrema-direita reflectem o espírito destrutivo do neoliberalismo na sua fase niilista.

A recente vitória de Javier Milei nas eleições presidenciais argentinas deixou muitos a perguntar-se que lugar ainda ocupa a política reacionária de direita na América Latina.

Menos de um ano após a derrota de Jair Bolsonaro no Brasil e o regresso do líder progressista Luis Inácio Lula da Silva à presidência do país, a vitória esmagadora de Milei na segunda maior economia da América Latina parece indicar uma dissonância no panorama político da região.

Nem o neoliberalismo da década de 1990 nem a “maré rosa” das social-democracias da década de 2000 os unificam; os líderes latino-americanos parecem carecer de um objetivo ou visão comum.

Se acompanhássemos as eleições argentinas de 2023, não seria difícil detectar muitas semelhanças com as do Brasil em 2018. E, no entanto, as principais questões destacadas por Milei e Bolsonaro eram, na sua maioria, radicalmente diferentes. Embora ambos tenham alcançado resultados semelhantes, os problemas – ou problemas aparentes – nos quais decidiram focar variaram drasticamente.

À primeira vista, os dois candidatos parecem representar correntes muito diferentes da extrema direita: um é um libertário radical, o outro um nacionalista linha-dura. Contudo, após uma análise mais detalhada, parece claro que ambas as formas de política de direita derivam do mesmo paradigma neoliberal que definiu a política reacionária não só na América Latina, mas em todo o mundo desde o fim da Guerra Fria.

Campanhas contrastantes

Ao analisar as semelhanças dos ciclos eleitorais do Brasil e da Argentina, o paralelo mais claro, é claro, reside na presença de um candidato de extrema direita que se apresenta como um líder quase messiânico da tendência anti-establishment, destituindo rapidamente o candidato de a direita dominante e subindo ao topo das pesquisas. Com narrativas reacionárias e cheias de ódio, Bolsonaro e Milei venceram facilmente as eleições, alimentando imediatamente preocupações nacionais e internacionais sobre o que significaria para eles implementarem as políticas prometidas no ensaio de campanha.

Neste sentido, os dois políticos são um espelho um do outro, mesmo nos discursos de vitória em que ambos professaram defensivamente não ter problemas com as instituições democráticas, antes de quase imediatamente tornarem públicas as suas intenções, que puseram em causa a sinceridade de suas palavras.

Havia também outros paralelos, como a falta de um candidato sólido do progressismo tradicional. O polémico ministro da Economia argentino, Sergio Massa, revelou-se demasiado impopular para impedir uma vitória reaccionária, como aconteceu com o substituto de Lula no Brasil, Fernando Haddad.

Porém, Milei e Bolsonaro focaram suas campanhas em campos diferentes. Como economista, Milei fez da turbulência económica que a Argentina enfrentava o centro da sua campanha. Seu governo, prometeu, se dedicaria a corrigir a inflação e a reduzir os alegados excessos da administração anterior. “Liberdade” foi o grito de guerra de sua campanha, invocando a natureza libertária e autoproclamada “anarcocapitalista” da visão de Milei para a Argentina.

O novo presidente falou de um país livre da suposta tirania da burocracia governamental, à qual culpou por todos os males que afligiram a Argentina até agora. Embora seja um conservador social que se opõe ao aborto e à educação sexual na escola, ao mesmo tempo que promove teorias de conspiração de extrema direita sobre o "marxismo cultural", Milei tentou minimizar estas questões durante a campanha e concentrar-se nas suas políticas económicas.

Bolsonaro, por sua vez, tinha muito pouco a dizer sobre a economia em 2018. Autoproclamado leigo económico, o brasileiro prometeu deixar a maioria das principais decisões de política económica para o seu conselheiro Paulo Guedes. Bolsonaro voltou sua atenção, em vez disso, para as mesmas ideias sobre “marxismo cultural” que Milei deixou para trás.

Proclamando-se defensor dos valores morais, Bolsonaro obteve a vitória como candidato da família nuclear e cristã e inimigo ardente da chamada doutrinação da juventude. “Brasil acima de tudo, Deus acima de tudo” foi o lema de Bolsonaro, trocando a vaga abordagem libertária de Milei por uma retórica cristão-nacionalista muito mais focada.

Os maiores inimigos que a sua campanha identificou não foram os burocratas governamentais ou os responsáveis ​​por más políticas econômicas, mas sim professores e ativistas sociais que supostamente tentavam converter a juventude brasileira à sua própria agenda amoral. A maior parte do eleitorado de Bolsonaro sabia pouco ou nada sobre o seu plano econômico antes da sua vitória, a não ser vagas promessas de acabar com a corrupção que ele atribuiu à esquerda.

Olhando para trás

Em suma, o eleitor médio de Milei concentrou-se nas questões económicas, enquanto o seu homólogo que apoiava Bolsonaro deu maior ênfase às questões sociais. Em ambos os casos, contudo, podemos encontrar a mesma promessa reaccionária de um homem forte autorizado pelas massas para fazer o relógio voltar atrás.

No seu discurso de vitória, Milei elogiou a Argentina do século XIX, aludindo a um período em que os elevados níveis de PIB do país e um exército razoavelmente poderoso fizeram dele um modelo a aspirar. É uma visão romântica clássica partilhada por muitos nos círculos conservadores da Argentina, que atribuem os problemas actuais da Argentina a vários acontecimentos e desenvolvimentos do século passado, particularmente ao conceito indescritível de peronismo.

Os principais ídolos de Bolsonaro sempre foram os ditadores militares que governaram o Brasil entre 1964 e 1985. Foi uma época da história brasileira que o ex-presidente apresenta como economicamente próspero, seguro e livre do comunismo. Chegou até a comemorar o aniversário de um famoso torturador do regime militar, elogiando-o por limpar o Brasil da ameaça do comunismo e evitar que o país "se tornasse a Venezuela", medo compartilhado por muitos conservadores brasileiros que suspeitam do governo de esquerda. dos anos 2000. e 2010.

Estas interpretações idealizadas do passado, que encobrem uma realidade muito mais sombria em favor da nostalgia, são algumas das ferramentas favoritas da extrema direita. Milei e Bolsonaro rejeitam o establishment moderno como ilegítimo, em favor de uma imaginária “forma correta de governo”.

Pouco depois da sua eleição, Javier Milei publicou um vídeo no qual arrancava autocolantes de um quadro negro com os ministérios do governo escritos neles, uma forma inteligente de comunicar os seus planos para reduzir o Estado ao mínimo. Entre as vítimas destes cortes estariam os Ministérios da Educação e da Saúde.

Mais ou menos a mesma coisa aconteceu no Brasil quando Bolsonaro assumiu o cargo em janeiro de 2019, reduzindo o número de ministérios de vinte e nove para vinte e dois e criando os chamados superministérios. O mais notável deles foi o Ministério da Economia, uma fusão de organizações anteriores agora chefiadas pelo conselheiro de Bolsonaro, Paulo Guedes. Assim como Javier Milei, Guedes é um defensor da escola austríaca de economia.

Para Guedes, não se tratava simplesmente de reduzir o governo, eliminando funções supostamente redundantes e despesas supérfluas. Ele procurou trabalhar ativamente contra o próprio aparelho de Estado. O que se seguiu no Brasil de 2019 a 2022 foi o desmantelamento da estrutura pública, levando a convulsões econômicas e sociais à medida que a desigualdade de rendimentos crescia exponencialmente e os investidores internacionais perdiam gradualmente a confiança nos mercados brasileiros.

Collor e Menem

Arejeição do establishment moderno e a atribuição de todos os males sociais e económicos à acção governamental estão no centro da retórica de Milei e Bolsonaro. O problema endémico da corrupção governamental tanto na Argentina como no Brasil torna-os no alvo perfeito para ataques da extrema direita.

Com todos os políticos considerados corruptos, o próprio Estado torna-se o problema. A solução adequada, na sua opinião, só pode passar pelo fortalecimento do sector privado e do mercado livre.

Esta retórica não é nova em nenhum dos países. Os políticos neoliberais já a utilizaram na década de oitenta e, com mais sucesso, na década de noventa. Em 1990, Fernando Collor foi eleito presidente do Brasil após se apresentar como um cruzado contra a corrupção. Ele foi apelidado de “caçador de marajás” – em referência a um termo associado a funcionários públicos corruptos – e vinculou a luta contra a corrupção à redução do tamanho do governo federal.

A memória da ditadura militar brasileira ainda estava fresca na época, e a ideia de um governo menor e com mais ênfase nas liberdades públicas soava bem para muita gente. Contudo, a subsequente “terapia de choque” aplicada ao Estado brasileiro produziu uma grave crise económica que culminou com a destituição de Collor em 1992 e o realinhamento da cena política brasileira, longe das agendas económicas radicais. Posteriormente, os governos de centro-direita na década de 1990 e os governos de centro-esquerda na década de 2000 procuraram desenvolver serviços estatais mais robustos.

A presidência argentina de Carlos Menem, que durou dez anos, de 1989 a 1999, também adoptou uma abordagem fortemente neoliberal ao Estado, cortando significativamente a despesa pública, eliminando ministérios governamentais e privatizando indústrias-chave. A crise económica que se seguiu em 2001 foi popularmente atribuída às suas políticas e causou um realinhamento político.

Os governos Collor e Menem também foram marcados por escândalos de corrupção. No caso de Collor, tornaram-se sinônimos de seu governo. Isto mostra quão superficial é frequentemente a narrativa anticorrupção.

Figuras como Milei e Bolsonaro opõem-se agora aos Estados supostamente avassaladores que os governos argentino e brasileiro construíram durante a década de 2000. Com a ascensão da direita alternativa internacional e a polarização da política, esta retórica neoliberal contém uma mistura mais nacionalista e etnorreligiosa do que antes. Ao mesmo tempo, a nação é elevada ao mais alto padrão, enquanto o Estado é difamado.

Perspectivas incertas

Milei assumiu o cargo em 10 de dezembro. Apesar do radicalismo da sua retórica, ele já moderou a sua abordagem em muitas questões. Inicialmente hostil à presença do presidente brasileiro Lula na posse, mais tarde mudou a sua posição pública e incentivou a presença do chefe de estado do maior parceiro comercial da Argentina.

Milei também começou a referir-se num tom mais cordial a outros líderes mundiais que anteriormente insultava como “imbecis” (Papa Francisco) ou “comunistas” (Joe Biden). Parece evidente que vencer uma campanha e governar uma nação serão experiências muito diferentes, como aconteceu com Bolsonaro.

Milei também tem que lidar com outro grande problema: a falta de apoio político dentro do Congresso argentino. Quando o seu homólogo brasileiro conquistou a presidência em 2018, estava acompanhado por um número recorde de políticos de extrema direita que apoiaram a sua agenda.

Ainda assim, Bolsonaro não conseguiu reunir o apoio legislativo necessário e recorreu a uma forma de semiparlamentarismo improvisado, concedendo ampla discrição e autoridade ao Congresso se a maioria dos seus membros apoiasse as suas medidas. Milei começa com menos apoio dos membros das câmaras legislativas, e resta saber se este forasteiro político conseguirá colocar em prática alguma das suas promessas.


OLAVO PASSOS DE SOUZA

Doutorando em História pela Universidade de Stanford.

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