Confissões de um Assassino Econômico
John Perkins
Tradução HENRIQUE AMAT REGO MONTEIRO
EDITORA CULTRIX, São Paulo.
P R E F Á C I O
"Assassinos econômicos" (AEs) são profissionais altamente remunerados cujo trabalho é lesar países ao redor do mundo em golpes que se contam aos trilhões de dólares. Manipulando recursos financeiros do Banco Mundial, da Agência Americana para o Desenvolvimento Internacional (USA1D), além de outras organizações americanas de "ajuda" ao exterior, eles os canalizam para os cofres de enormes corporações e para os bolsos de algumas famílias abastadas que controlam os recursos naturais do planeta. Entre os seus instrumentos de trabalho incluem-se relatórios financeiros adulterados, pleitos eleitorais fraudulentos, extorsão, sexo e assassinato. Eles praticam o velho jogo do imperialismo, mas um tipo de jogo que assumiu novas e aterradoras dimensões durante este tempo de globalização. Eu sei do que estou f alando; eu fui um AE.
Escrevi este texto em 1982 como as palavras iniciais para um livro ao qual atribuí o título provisório de Conscience of an Economic Hit Man.1 * O livro era dedicado aos presidentes de dois países, homens que haviam sido meus clientes, a quem eu respeitava e considerava como consciências semelhantes à minha — Jaime Roídos, presidente do Equador, e Ornar Torrijos, presidente do Panamá. Ambos acabavam de morrer em desastres aéreos. A morte deles não foi acidental. Eles foram assassinados porque se opunham àquela fraternidade de chefes de corporações, de governos e de bancos cuja meta é o império mundial. Nós, os AEs, fracassamos no nosso trabalho de cooptar Roídos e Torrijos, e os outros tipos de matadores, os chacais a serviço da CIA que vinham imediatamente depois de nós, entraram em ação.
Fui persuadido a parar de escrever este livro. Retomei a redação dele ainda umas quatro vezes nos vinte anos seguintes. A cada ocasião, a minha decisão de recomeçar era influenciada pêlos acontecimentos mundiais no momento: a invasão americana do Panamá em 1989, a primeira Guerra do Golfo, a Somália, o surgimento de Osama bin Laden. No entanto, as ameaças ou os subornos convenciam-me a parar. Em 2003, o presidente de uma importante editora americana subsidiária de
uma poderosa corporação internacional leu o rascunho do que agora se tornou Confissões de um Assassino Econômico. Ele o classificou como "uma história emocionante, que precisa ser contada". Então ele deu um sorriso triste, abanou a cabeça e me disse que, se os executivos da sede mundial da empresa fizessem alguma objeção, não poderia assumir os riscos de publicar a obra. Aconselhou-me a transformá-la em obra de ficção. "Poderíamos promover a sua imagem nos moldes de um romancista como John Lê Carré ou Graham Greene."
Mas esta história não é ficção. É a história verdadeira da minha vida. Outro editor, mais corajoso, não subordinado a uma corporação internacional, concordou em me ajudar a contá-la.
Esta história precisa ser contada. Vivemos em uma época de crises terríveis — e de enormes oportunidades. A história deste assassino económico em particular é a história de como chegamos ao ponto onde estamos e por que atualmente deparamos com crises que parecem insuperáveis. Esta história precisa ser contada porque só depois de compreender os nossos erros no passado seremos capazes de aproveitar as oportunidades que surgirem no futuro; porque o 11 de Setembro aconteceu e também a segunda guerra no Iraque; porque além das 3 mil pessoas que morreram no 11 de Setembro de 2001, pelas mãos de terroristas, outras 24 mil morreram de fome e causas semelhantes. Na verdade, 24 mil pessoas morrem a cada dia porque são incapazes de obter o alimento necessário para o seu sustento diário.2 Mais importante ainda, esta história precisa ser contada porque hoje em dia, pela primeira vez na história, uma nação tem a capacidade, o dinheiro e o poder de mudar tudo isso. É a nação em que eu nasci e aquela à qual servi como um AE: os Estados Unidos da América.
O que, afinal, acabou me convencendo a ignorar as ameaças e os subornos?
A resposta breve é que a minha filha única, Jessica, terminou a faculdade e foi viver por conta própria. Quando, há algum tempo, eu disse a ela que estava
pensando em publicar este livro e contei-lhe sobre os meus temores, ela comentou: "Não se preocupe, pai. Se eles pegarem você, eu continuo de onde você parou. Precisamos fazer isso em nome dos netos que espero lhe dar algum dia!" Esta é a resposta breve.
A versão mais extensa tem a ver com a minha dedicação ao país em que fui criado, tem a ver com o meu amor pêlos ideais expressos pêlos Fundadores e Patriarcas desta nação, tem a ver com o meu profundo compromisso com a república americana que hoje promete "vida, liberdade e a busca da felicidade" a todas as pessoas, em qualquer lugar, e também tem a ver com a minha determinação, depois do 11 de Setembro, de não permanecer mais omisso enquanto os AEs transformam essa república num império mundial. Esse é o conceito por trás da versão mais extensa da resposta; o conteúdo que o fundamenta é desenvolvido nos capítulos a seguir.
Esta é uma história verídica. Eu a vivi cada minuto. As visões, as pessoas, os diálogos e os sentimentos que traduzo aqui são todos parte da minha vida. Esta é a minha história pessoal, e ainda assim aconteceu dentro do contexto maior dos acontecimentos mundiais que moldaram a nossa história, trouxeram-nos até o ponto em que nos encontramos hoje e formam o alicerce do futuro dos nossos filhos. Fiz tudo o que estava ao meu alcance para representar essas experiências, essas pessoas e esses diálogos com a maior exatidão possível. Toda vez que discuto acontecimentos históricos ou recrio diálogos com outras pessoas, faço-o com a ajuda de diversas fontes: documentos publicados; registros e anotações pessoais; materiais diversos colecionados — meus e de outras pessoas que participaram dos acontecimentos; os cinco rascunhos que esbocei anteriormente; e relatos históricos de outros autores, em especial os publicados recentemente e que revelam informações que antes eram classificadas ou não estavam disponíveis por outras razões. As citações são listadas como Notas, no fim do livro, permitindo aos leitores interessados aprofundar-se nesses assuntos.
O meu editor perguntou-me se nos chamávamos mesmo de assassinos económicos 3 *. Eu lhe garanti que sim, muito embora normalmente apenas pelas iniciais. Na verdade, no dia em que comecei a trabalhar com a minha professora Claudine, em 1971, ela me informou: "A minha missão é transformar você num assassino económico. Ninguém pode saber sobre o seu envolvimento: nem mesmo
a sua mulher". Então ela acrescentou num tom mais grave ainda: "Depois que entrar, será para o resto da sua vida". Depois disso, ela raramente usou o nome por extenso; éramos simplesmente AEs.
O papel de Claudine é um exemplo muito interessante da manipulação que está por trás do negócio em que entrei. Bonita e inteligente, ela era altamente eficaz; percebia os meus pontos fracos e os usava da melhor maneira possível em benefício próprio. O trabalho dela e a maneira como o executava exemplifica o grau de sutileza das pessoas por trás daquele sistema.
Claudine movia os pauzinhos quando explicava o que eu seria convocado a fazer. O meu trabalho, dizia ela, era "encorajar os líderes mundiais a tornar-se parte de uma vasta rede de relações de trabalho que promove os interesses comerciais americanos. No final, esses líderes estarão completamente enredados numa teia de débitos que garante a sua lealdade. Podemos manobrá-los como quisermos — para satisfazer as nossas necessidades políticas, económicas ou militares. Eles, por sua vez, sustentam as suas posições políticas oferecendo ao povo parques industriais, usinas energéticas e aeroportos. Os proprietários de empresas de engenharia e construção americanas tornam-se fabulosamente ricos".
Hoje vemos os resultados desse sistema revoltar-se contra a sociedade. Os executivos das nossas mais respeitadas empresas contratam pessoas com base em remunerações que beiram o trabalho escravo para jornadas escorchantes em condições de trabalho desumano em fábricas com as piores condições de trabalho nos países asiáticos. As companhias petrolíferas não fazem outra coisa a não ser bombear toxinas nos rios das florestas tropicais, matando conscientemente pessoas, animais e plantas e cometendo genocídio entre as culturas seculares. A indústria farmacêutica nega medicamentos para salvar as vidas de milhões de africanos infectados com o vírus do HIV Doze milhões de famílias dentro dos próprios Estados Unidos preocupam-se sobre como obter a próxima refeição.4 O setor energético cria uma Enron. O setor administrativo cria uma Andersen. A relação entre a renda de um quinto da população mundial nos países mais ricos e um quinto dos mais pobres passou de 30 para l em 1960 para 74 para l em 1995.5 Os Estados Unidos gastam mais de 87 bilhões de dólares na condução da guerra no Iraque enquanto as Nações Unidas calculam que com menos da metade dessa quantia seria
possível água potável, alimentação adequada, saneamento básico e educação elementar para todas as pessoas do planeta.6
E nós, os americanos, ainda nos perguntamos por que os terroristas nos atacam.
Alguns poriam a culpa pelos problemas atuais numa conspiração organizada. Eu gostaria que fosse assim tão simples. Os integrantes de uma conspiração poderiam ser localizados e levados a julgamento. Esse sistema, no entanto, é alimentado por algo muito mais perigoso que uma conspiração. E movido não por um pequeno grupo de homens mas por um conceito que se tornou aceito como uma doutrina sagrada: a ideia de que todo o crescimento econômico beneficia a humanidade e que quanto maior o crescimento, mais amplos são os benefícios. Essa crença tem também um corolário: de que as pessoas que são mais bem-sucedidas em estocar os combustíveis do crescimento econômico devem ser exaltadas e recompensadas, ao passo que as que nascem nas margens estão disponíveis à exploração.
Está claro que esse conceito é errado. Sabemos que em muitos países em crescimento económico beneficia apenas uma pequena parcela da populacão e pode na verdade resultar em circunstâncias cada vez mais desesperadas para a maioria. Esse efeito é reforçado pela crença do corolário de que os líderes dos setores que impulsionam esses sistemas devam desfrutar de uma posição privilegiada, uma crença que está na base de muitos dos nossos problemas atuais e é talvez também a razão pela qual abundam teorias conspiratórias. Quando homens e mulheres são recompensados pela cobiça, a cobiça torna-se um elemento motivador de corrupção. Quando equiparamos o consumo ávido dos recursos da terra com uma valorização que se aproxima à da santidade, quando ensinamos aos nossos filhos a admirar pessoas que levam uma vida de abundância e quando definimos grandes sectores da população como subservientes a uma elite minoritária, estamos procurando problemas. E conseguimos.
No seu esforço para expandir o império mundial, as corporações, os bancos e
os governos (coletivamente a corporatocracia) usam as suas forças financeiras e políticas para assegurar que as nossas escolas, empresas e meios de comunicação apoiem tanto o seu conceito falacioso quanto o seu corolário. Eles nos levaram a um ponto em que a nossa cultura mundial é uma máquina monstruosa que requer quantias exponencialmente cada vez maiores de combustível e manutenção, de modo que no fim ela terá consumido tudo o que se vê e ficará sem nenhuma escolha a não ser devorar a si mesma.
A corporatocracia não é uma conspiração, mas os seus integrantes adotam valores e metas comuns. Uma das funções mais importantes da corporatocracia é expandir e fortalecer continuamente o sistema e para todo o sempre. A vida daqueles que "fazem acontecer" e os Seus "bens materiais" — as suas mansões, iates e jatos particulares — são apresentados como modelos para nos inspirar a todos a consumir, consumir, consumir. Todas as oportunidades são aproveitadas para nos convencer de que comprar coisas é o nosso dever cívico, que a pilhagem da terra é boa para a economia e, portanto, atende aos nossos mais elevados interesses. As pessoas como eu recebem salários escandalosamente elevados para promover a licitação do sistema. Se falhamos em nosso trabalho, uma forma de matador ainda mais maligna, o chacal, entra em cena. E se o chacal falha, então a tarefa recai sobre os militares.
Este livro é a confissão de um homem que, desde o momento em que se tornou um AE, participou de um grupo relativamente pequeno de pessoas. Hoje as pessoas que desempenham tarefas semelhantes são mais numerosas. Elas têm títulos mais eufemísticos e transitam pêlos corredores de empresas como a Monsanto, a General Electric, a Nike, a General Motors, a Wal-Mart, e praticamente a grande maioria das outras principais corporações mundiais. Num sentido muito real, Confissões de um Assassino Económico é a história tanto minha quanto daquelas pessoas.
É também a sua história, a história do seu mundo e do meu, do primeiro império verdadeiramente mundial. A história nos ensina que a menos que modifiquemos essa história, é certo que o fim será trágico. Os impérios nunca duram para sempre. Todos eles acabam em desastre. Eles destroem muitas culturas à medida que correm para uma dominação cada vez maior, e então acabam por cair. Nenhum país nem uma reunião de países pode subsistir a longo prazo pela exploração dos outros.
Este livro foi escrito para que possamos retomar as rédeas da nossa história e consigamos refazê-la. Estou certo de que, quando um número suficiente de nós
tomar consciência de como estamos sendo explorados pela máquina da economia que cria um apetite insaciável pêlos recursos mundiais, resultando em sistemas que fomentam a escravidão, não iremos mais tolerá-la. Vamos reassumir o nosso papel num mundo em que uns poucos nadam na riqueza e a maioria chafurda na miséria, poluição e violência. Vamos nos comprometer a tomar o curso em direção à compaixão, à democracia e justiça social para todos.
Admitir o problema é o primeiro passo no sentido de encontrar a solução. Confessar um pecado é o começo da redenção. Que este livro seja, então, o começo da nossa salvação. Que este livro nos inspire a encontrar novos níveis de dedicação e nos leve a realizar o nosso sonho de sociedades mais equilibradas e dignas de respeito.
Sem as muitas pessoas cuja vida compartilhei e que serão relatadas nas páginas a seguir, este livro não teria sido escrito. Com elas tenho uma dívida de gratidão pelas experiências e lições.
Além dessas pessoas, agradeço àquelas que me encorajaram a sair do limbo e contar a minha história: Stephan Rechtschaffen, Bill e Lynne Twist, Ann Kemp, Art Roffey, entre tantas outras que participaram das viagens e dos seminários de Mudança do Sonho, especialmente os meus co-facilitadores, Eve Bruce, Lyn RobertsHerrick e Mary Tendall, além da minha incrível esposa e parceira ao longo de 25 anos, Winifred, e a nossa filha Jessica.
Sou grato a muitos homens e mulheres que contribuíram com ideias e informações sobre os bancos multinacionais, corporações internacionais e opiniões políticas sobre vários países, com um agradecimento especial a Michael Ben-Eli, Sabrina Bologni, Juan Gabriel Carrasco, Jamie Grant, Paul Shaw e muitos outros, que preferem permanecer anónimos mas que sabem quem são vocês.
Depois de concluído o texto original, o fundador da editora Berrett-Koehler, Steven Piersanti, não só teve a coragem de me receber como também dedicou horas incontáveis do seu trabalho brilhante de editor, ajudando-me a preparar e acabar cada vez melhor o livro. Os meus mais profundos agradecimentos a Steven, a Richard Perl, que me apresentaram a ele, e também a Nova Brown, Randi Fiat, Allen Jones, Chris Lee, Jennifer Liss, Lauric Pellouchoud e Jenny Williams, que leram e criticaram o original; a David Korten, que não só leu e criticou o texto, como também me obrigou a fazer acrobacias para atender aos seus elevados e excelentes padrões; a Paul Fedorko, meu agente; a Valerie Brewster, por se encarregar da produção e paginação do livro; e a Todd Manza, meu editor de texto, um artista da palavra e um filósofo extraordinário.
Uma palavra de gratidão especial a Jeevan Sivasubramanian, o gerente editorial da Berrett-Koehler, e a Ken Lupoff, Rick Wilson, Maria Jesus Aguiló, Pat Anderson, Marina Cook, Michael Crowley, Robin Donovan, Kristen Frantz, Tiffany Lee, Catherine Lengronne, Dianne Platner — toda a equipe da BK, que reconhece a necessidade de ampliar as consciências e que trabalha incansavelmente para fazer deste mundo um lugar melhor.
Devo agradecer a todos os homens e mulheres que trabalharam comigo na MAIN e que não sabiam dos papéis que desempenhavam em ajudar os AEs a moldar o império mundial; agradeço especialmente àqueles que trabalharam para mim e com quem eu viajei a terras distantes e compartilhei tantos momentos preciosos. Também a Ehud Sperling e a sua equipe da Inner Traditions International, editor dos meus primeiros livros sobre culturas indígenas e xamanismo, e aos bons amigos que me colocaram no caminho de me tornar um escritor.
Sou eternamente grato aos homens e mulheres que me acolheram nas suas casas nas selvas, desertos e montanhas, nas cabanas de papelão às margens dos canais de Jacarta, e nas favelas de incontáveis cidades ao redor do mundo, que compartilharam comigo o seu alimento e a sua vida, e que foram a minha maior fonte de inspiração.
John Perkins Agosto de 2004
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