terça-feira, 9 de janeiro de 2024

Liberalismo versus democracia

Fontes: Ação Cooperativa - Imagem: Colagem da revista En Orsai.


Os propagandistas do atual Governo argentino repetem ad nauseam uma das falácias ideológicas mais ressonantes da filosofia política, nomeadamente: que o liberalismo e a democracia são duas faces da mesma moeda. As pessoas falam com total impunidade sobre o legado democrático de Juan Bautista Alberdi, sem dúvida uma figura destacada do liberalismo latino-americano do século XIX, mas que, tal como os seus mentores europeus e americanos, considerava a democracia como uma variante da “tirania da maioria”. É por essa premissa que a Constituição de 1853, inspirada no autor das Bases , não faz menção à democracia.

Lembremos seu primeiro artigo: “A Nação Argentina adota para seu Governo a forma representativa republicana federal, conforme estabelece esta Constituição”. Somente com a reforma de 1994 a democracia apareceria no texto constitucional que nos rege.

Essa ausência não é coincidência e anda de mãos dadas com a consternação que tomou conta de Alberdi após a onda revolucionária de 1848 na Europa. Numa das passagens dedicadas ao tema escreve que «(Para evitar os inconvenientes de uma supressão repentina dos direitos que a multidão tem possuído, pode-se utilizar o sistema de dupla e tripla eleição, que é o melhor meio de “purificar o sufrágio universal sem reduzi-lo ou suprimi-lo, e preparar as massas para o futuro exercício do sufrágio direto”. (página 79, edição eletrônica).

Escusado será dizer que os sistemas de sufrágio duplo ou triplo são essencialmente antidemocráticos, uma vez que estabelecem o voto qualificado, onde as elites gozam de direitos de cidadão enquanto as portas da participação política estão fechadas aos cidadãos. São livres para perseguir os seus próprios fins na vida económica, mas não estão preparados para governar. Isso fica para o futuro, como lembra o grande Tucumán e como também observou John Stuart Mill, e esse espírito antidemocrático ficou claramente refletido no texto constitucional de 1853.

Contradição

Em todo o lado, o liberalismo afirma ser nada menos do que a fonte da qual brota a democracia, mas a evidência histórica refuta esta afirmação: o liberalismo, como ideologia que nasceu com – e legitima – a sociedade burguesa e o capitalismo, está numa contradição radical e insolúvel com a democracia. Simplificando: mais capitalismo significa menos democracia e vice-versa. E isto é verdade tanto ao nível da teoria como ao nível da práxis histórica.

Teoricamente, porque nenhum dos autores do liberalismo clássico (John Locke, James Mill, Benjamin Constant ou Alexis de Tocqueville entre os mais notáveis) como os posteriores, John Stuart Mill, o mais destacado da segunda metade do século XIX, defendia por uma democracia ou foi um apoiante deste regime político, mesmo na sua forma mais rudimentar: o sufrágio universal masculino.

Até à data, ninguém poderia citar um intelectual ou político liberal que se manifestasse a favor da democracia, entendida segundo a famosa fórmula de Abraham Lincoln quando disse que “a democracia é o governo do povo, pelo povo e para o povo”. Quem foi mais longe foi o já citado JS Mill, propondo o voto qualificado para homens adultos e alfabetizados, numa época em que o analfabetismo era generalizado. É difícil conciliar esta proposta com a definição sucinta mas radical de Lincoln.

E no campo da prática deve ser dito que tal como a palavra democracia se destaca pela sua ausência na Constituição de 1853, o mesmo se aplica à sua congénere americana. Como explicar a contradição de um país cujos governantes, líderes políticos, grandes empresários e notáveis ​​intelectuais se autoproclamam porta-vozes da principal democracia do planeta sem que esta seja sequer citada na sua Carta Magna?

Referindo-se a este paradoxo desconfortável (para os acólitos do liberalismo), Noam Chomsky recorda as intervenções de Alexander Hamilton, primeiro secretário do Tesouro dos Estados Unidos, na Convenção de Filadélfia de 1787, dizendo que o povo era "a grande besta" que deveria ser domesticado e subjugado. É por isso que ele aconselhou ensinar aos agricultores independentes e rebeldes das colónias rebeldes – recorrendo mesmo à força se necessário – que os ideais radicais contidos nos panfletos revolucionários de pessoas como Tom Paine não deveriam e não poderiam ser tomados literalmente.

Em suma: a massa plebeia não deve ser representada por outros da mesma classe, mas deve deixar que a aristocracia, os comerciantes, os advogados e outros de comprovada responsabilidade e patriotismo na gestão dos assuntos do Estado o façam por eles.

Diante do exposto, fica evidente quais são os fundamentos ideológicos para a involução progressiva das democracias nas sociedades capitalistas, tornando-se plutocracias insaciáveis: governo do mercado, pelo mercado e para o mercado. E, também, é compreensível a relutância do Presidente Javier Milei em responder de forma inequívoca a um jornalista que, insistentemente, lhe perguntou se acreditava na democracia. A sua resposta evasiva só pode ser interpretada como uma recusa embaraçosa.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

12