domingo, 14 de janeiro de 2024

O realismo dinâmico



Por LUIS FELIPE MIGUEL*
aterraeredonda.com.br/

O pragmatismo político retira de seu campo de visão toda a energia de mudança que está latente na sociedade

Sempre que publico um texto criticando o “pragmatismo” de líderes da esquerda – as concessões ao capital, as concessões aos pastores, as concessões ao Centrão, as concessões aos militares, as vices para golpistas etc. etc. – não falta quem venha dizer que não há outro jeito. Que as circunstâncias são essas. Que é o que temos para o momento. Que, citando a frase atribuída a Otto von Bismarck, “a política é a arte do possível”. Será mesmo?

Em certo sentido, sim – mas no sentido banal de que toda atividade humana, da engenharia à culinária, do futebol à medicina, é, a seu modo, uma “arte do possível”. O problema é que a frase é lida numa chave em que o realismo cede lugar ao possibilismo.

Podemos contrastar o adágio de Otto von Bismarck ao trecho eloquente dos Cadernos do cárcere em que Antonio Gramsci descreve o “político em ação” como “um criador, um suscitador; mas não cria do nada, nem se move no vazio túrbido dos seus desejos e sonhos. Baseia-se na realidade fatual”.

De maneira sintética, Antonio Gramsci está apontando a necessidade de ultrapassar tanto o possibilismo estreito, que vê os limites postos à ação política como imutáveis, quanto o voluntarismo, que julga que eles podem ser desprezados por mera decisão subjetiva.

Ele adota um realismo dinâmico, que é herdeiro de Nicolau Maquiavel e de Karl Marx, incluindo em seu relato tanto as energias transformadoras latentes no mundo social quanto a vontade atuante de mobilizá-las.

Grande parte da esquerda brasileira permanece estranha a essa dinâmica e presa ao possibilismo, que leva a uma redução brutal do horizonte de expectativas – a partir do entendimento que há uma “correlação de forças” favorável aos grupos conservadores e, portanto, nossa opção é entre o pouco e o nada.

Ou menos que isso. Desde o golpe de 2016, a direita endureceu suas posições e o que nos resta é o pouquíssimo, como alternativa ao menos que nada.

Nessa linha de pensamento, a correlação de forças é percebida, sobretudo, como aquela presente nas instituições políticas formais. O argumento é: Lula está diante de um Congresso muito conservador; logo, a margem para adotar políticas redistributivas e democratizantes é muito pequena. Corolário: é melhor esperar por muito pouco, porque mais do que isso não será possível alcançar.

Não estou entre os que negam liminarmente validade a um cálculo desse tipo. Na verdade, a diferença entre o muito pouco e o nada pode ser desprezada pelos privilegiados, mas muitas vezes é questão de vida e morte para os mais pobres.

O problema é que essa leitura trabalha com uma temporalidade limitada e retira de seu campo de visão toda a energia de mudança que está latente na sociedade – toda a inconformidade, a revolta, a indignação, que continuarão latentes, incapazes de ação organizada e efetiva, caso as forças políticas comprometidas com a transformação do mundo permaneçam indiferentes, mergulhadas numa visão da política que se resume ao cálculo eleitoral imediato.

*Luis Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência Política da UnB. Autor, entre outros livros, de Democracia na periferia capitalista: impasses do Brasil (Autêntica).

Publicado originalmente nas redes sociais do autor.

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