RICHARD DAWKINS
Deus, um delírio
COMPANHIA DAS LETRAS
Tradução Fernanda Ravagnani
10. Uma lacuna muito necessária?
O que pode ser mais comovente que olhar para uma galáxia distante através de um telescópio de 2,5 metros, ter nas mãos um fóssil de 100 milhões de anos ou uma ferramenta de pedra de 500 mil anos, ver-se diante do imenso abismo temporal e espacial que é o Grand Canyon ou ouvir um cientista que ficou, sem pestanejar, cara a cara com a criação do universo? Isso é a profunda e sagrada ciência. Michael Shermer
"Este livro preenche uma lacuna muito necessária." A piada funciona porque entendemos ao mesmo tempo os dois significados opostos. Aliás, eu achava que era uma piada inventada, mas, para minha surpresa, descobri que ela realmente foi usada, com toda a inocência, por editoras. Veja em http://www.amazon.co.uk/Tel-Quel-Reader-Patrick-Ffrench/dp/product-descrip-tion/0415157145 um livro que "preenche uma lacuna muito necessária na literatura disponível sobre o movimento pós-estruturalista". É deliciosamente apropriado o fato de que esse livro tão confessadamente supérfluo seja sobre Michel Foucault, Roland Barthes, Julia Kristeva e outros ícones do haut francofonismo.
A religião preenche uma lacuna muito necessária? Com freqüência se diz que há uma lacuna no cérebro com o formato de Deus, que precisa ser preenchida: temos uma necessidade psicológica de Deus — amigo imaginário, pai, irmão mais velho, confessor, confidente — e essa necessidade tem de ser satisfeita, existindo Deus de verdade ou não. Mas não é possível que Deus esteja entulhando uma lacuna que poderia ser mais bem preenchida com outra coisa? Com a ciência, talvez? A arte? A amizade humana? O humanismo? O amor a esta vida no mundo real, sem dar crédito a outras vidas do além-túmulo? O amor à natureza, ou o que o grande entomologista E. O. Wilson chamou de biofilia?.
A religião, em várias épocas, já foi considerada o elemento que supre
quatro papéis principais na vida humana: explicação, exortação, consolo e
inspiração. Historicamente, a religião aspirava a explicar nossa própria existência e a
natureza do universo em que vivemos. Nesse papel ela foi completamente
suplantada pela ciência, e já tratei disso no capítulo 4. Com exortação refiro-me à
instrução moral sobre como devemos agir, e abordei essa questão nos capítulos 6 e
7. Por enquanto ainda não fiz justiça ao consolo e à inspiração, e este capítulo final
tratará brevemente deles. Antes do consolo, quero começar com o fenômeno infantil do "amigo imaginário", que, acredito, tem afinidades com a crença religiosa.
BINKER
Christopher Robin, imagino, não acreditava que o Leitão e o ursinho Pooh
realmente falassem com ele. Mas com Binker era diferente?
Binker — como eu o chamo — é um segredo meu,
E Binker é o motivo de eu nunca me sentir só.
Brincando no quarto, sentado na escada,
Qualquer coisa que eu esteja fazendo, Binker estará lá.
Oh, papai é inteligente, o tipo inteligente de homem,
E mamãe é a melhor desde o princípio do mundo,
E a babá é a babá, e eu a chamo de Bá —
Mas eles não conseguem Ver Binker.
Binker está sempre falando, estou ensinando-o a falar
Ele às vezes gosta de falar numa vozinha engraçada,
E às vezes gosta de falar num rugido estranho...
E eu tenho que falar por ele, a garganta dele está doendo.
Oh, papai é inteligente, o tipo inteligente de homem,
E mamãe sabe tudo o que alguém pode saber,
E a babá é a babá, e a chamo de Bá —
Mas eles não Conhecem Binker.
Binker é corajoso como os leões que correm no parque;
Binker é corajoso como os tigres deitados no escuro;
Binker é corajoso como os elefantes.
Ele nunca, nunca chora...
Só (como outras pessoas) quando entra sabão no seu olho.
Oh, papai é papai, o tipo papai de homem,
E mamãe é a mamãe que alguém pode ser,
E a babá é a babá, e a chamo de Bá...
Mas eles não Gostam de Binker.
Binker não é guloso, mas gosta de comer as coisas,
Então tenho de dizer às pessoas que me dão um doce:
"Oh, Binker quer um chocolate, você poderia me dar dois?".
E então como por ele, seus dentes são bem novos.
Bem, gosto muito do papai, mas ele não tem tempo para brincar,
E gosto muito da mamãe, mas ela às vezes vai embora,
E muitas vezes fico bravo com a babá quando ela quer escovar meu cabelo...
Mas Binker é sempre Binker, e sempre estará lá.
A. A. Milne, Now we are six*
Seria o fenômeno do amigo imaginário uma ilusão mais elevada,
pertencente a uma categoria diferente do faz-de-conta infantil comum? Minha
experiência não será de muita ajuda aqui. Como muitos pais, minha mãe fez um
caderno com as coisas que eu falava quando criança. Além de fingimentos
simples (agora estou na lua... sou um acelerador... um babilônio), eu evidentemente gostava de fingimentos de segundo grau (agora sou uma coruja fingindo
ser uma roda-d'água), que podiam ser reflexivos (agora sou um menininho
fingindo ser Richard). Nunca acreditei que realmente fosse uma dessas coisas, e
acho que isso é o que normalmente acontece nas brincadeiras de faz-de-conta das
crianças. Mas eu não tive um Binker. Se dermos credibilidade ao depoimento de
suas versões adultas, pelo menos algumas das crianças normais que têm amigos
imaginários realmente acreditam que eles existem, e, em alguns casos, vêem nos como se fossem alucinações, claras e palpáveis. Desconfio que o fenômeno Binker da infância possa servir como um bom modelo para entender a crença
teísta dos adultos. Não sei se psicólogos já a estudaram por esse ponto de
vista, mas seria uma pesquisa interessante. Companheiro e confidente, um
Binker para a vida inteira: esse é certamente um dos papéis de Deus — uma
lacuna que pode ficar, se Deus for embora.
Outra criança, uma menina, tinha um "homenzinho roxo", que para ela
era uma presença visível e real, e que se manifestava, aparecendo em pleno ar,
com um som de sininho. Ele a visitava regularmente, especialmente quando ela
se sentia sozinha, mas com uma freqüência cada vez menor conforme ela foi
crescendo. Um dia, pouco antes de ela ir para a escolinha, o homenzinho roxo
apareceu para ela, antecedido pelos sininhos usuais, e anunciou que não a
visitaria mais. Ela ficou triste, mas o homenzinho roxo disse que ela estava
* Reproduzido com permissão do Espólio de A. A. Milne.
crescendo e que não ia precisar mais dele no futuro. Ele tinha que deixá-la, para
poder ir tomar conta de outras crianças. Prometeu a ela que voltaria se um dia ela
precisasse de verdade dele. Ele voltou mesmo, muitos anos depois, num sonho,
quando ela estava no meio de uma crise pessoal e tentava decidir o que fazer
com sua vida. A porta do quarto dela abriu-se e um carregamento de livros
apareceu, empurrado pelo... homenzinho roxo. Ela interpretou isso como o
conselho para que fosse para a universidade — conselho que seguiu e mais tarde
julgou correto. A história quase me deixa com lágrimas nos olhos, e leva-me o mais
próximo que jamais estarei de entender o papel de consolo e de orientação que
os deuses imaginários exercem na vida das pessoas. Um ser pode existir só na
imaginação, e ainda assim ser completamente real para a criança, e ainda assim
lhe dar conforto e bons conselhos. Talvez até mais: amigos imaginários — e deuses
imaginários — têm tempo e paciência para dedicar toda a sua atenção a quem
sofre. E são muito mais baratos que psiquiatras ou conselheiros profissionais.
Teriam os deuses, em seu papel de confortadores e conselheiros, evoluído
a partir de binkers, por uma espécie de "pedomorfose"? A pedomorfose é a
manutenção de características da infância na vida adulta. Os cães pequineses têm
focinhos pedomôrficos: os adultos parecem filhotes. É um padrão de evolução
conhecido, amplamente aceito como importante para o desenvolvimento de
características humanas como nossa testa arredondada e nossas mandíbulas curtas.
Evolucionistas já nos descreveram como macacos adolescentes, e chimpanzés e
gorilas jovens realmente se parecem mais com seres humanos que suas versões adultas. A religião não poderia ter evoluído originalmente pelo adiamento gradativo,
ao longo de gerações, do momento da vida em que as crianças abrem mão de seus
binkers — assim como adiamos, ao longo da evolução, o achatamento de nossa
testa e a pro-trusão de nossas mandíbulas?
Acho que, em nome da completude, devemos levar em conta a possibilidade
inversa. Em vez de os deuses terem evoluído a partir de binkers ancestrais, os
binkers não poderiam ter evoluído a partir de deuses ancestrais? A mim me parece
menos provável. Fui levado a pensar sobre isso quando li The origin ofconsciousness in the breakdown of the bicameral mina [A origem da consciência na
superação da mente bicameral], de Julian Jaynes, um livro tão estranho quanto sugere o título. É um daqueles livros que ou são uma besteira completa ou são
obra de um gênio acabado, sem meio-termo! Provavelmente a primeira
hipótese, mas não ponho minha mão no fogo Jaynes afirma que muita gente vive seus processos de pensamento como
uma espécie de diálogo entre o "eu" e outro protagonista interno dentro da cabeça.
Hoje em dia sabemos que ambas as "vozes" são nossas — ou, se não sabemos,
somos tratados como doentes mentais. Isso aconteceu, por algum tempo, com
Evelyn Waugh. Waugh, que nunca foi de medir as palavras, disse a uma amiga:
"Não a vejo há tanto tempo, mas tenho visto bem pouca gente porque — sabia?
— fiquei maluco". Quando se recuperou, Waugh escreveu um romance, A provação
de Gilbert Pinfold, que descreveu seu período alucinatório e as vozes que ele ouvia.
A sugestão de Jaynes é que em algum momento antes de 1000 a. C. as
pessoas em geral não sabiam que a segunda voz — a voz de Gilbert Pinfold — vinha
de dentro delas mesmas. Achavam que a voz de Pinfold era um deus: Apoio, por
exemplo, ou Astarte, ou Javé, ou, mais provavelmente, um deusinho mais caseiro,
que lhes dava ordens e conselhos. Jaynes até localizou as vozes dos deuses no
hemisfério do cérebro oposto ao que controla a fala audível. A "divisão da mente
bicameral" foi, para Jaynes, uma transição histórica. Foi o momento histórico em que
as pessoas se deram conta de que as vozes exteriores que pareciam estar ouvindo
na verdade eram interiores. Jaynes chega ao extremo de definir essa transição
histórica como a aurora da consciência humana.
Existe uma inscrição antiga egípcia sobre o deus da criação Ptah, que
descreve os vários outros deuses como variações da "voz" ou da "língua" de Ptah. As
traduções modernas rejeitam a "voz" literal e interpretam os outros deuses como
"concepções coisificadas do pensamento [de Ptah]". Jaynes desqualifica esse tipo de
leitura e prefere levar o sentido literal a sério. Os deuses eram vozes de alucinações
que falavam dentro da cabeça das pessoas. Jaynes sugere ainda que esses deuses
evoluíram a partir de lembranças de reis mortos que ainda, de certa forma,
mantinham o controle sobre seus comandados através de vozes imaginárias. Você
pode achar ou não a tese plausível, mas o livro de Jaynes é suficientemente intrigante
para merecer uma menção num livro sobre religião.
Vamos agora à possibilidade que levantei de tomar emprestada a tese de Jaynes para construir a teoria de que deuses e bin-kers são parentes em seu
desenvolvimento, mas no sentido contrário da teoria da pedomorfose. Ela
equivale à sugestão de que a divisão da mente bicameral não tenha acontecido de
forma repentina na história, mas que tenha sido um recuo progressivo na infância
do momento em que as vozes e as aparições das alucinações eram reveladas
como irreais. Numa espécie de inversão da hipótese da pedomorfose, os deuses
das alucinações desapareceram primeiro da mente adulta e depois recuaram
cada vez mais na infância, até hoje, quando só sobrevivem no fenômeno Binker e
homenzinho roxo. O problema dessa versão da teoria é que ela não explica a
persistência de deuses na vida adulta atual.
Talvez seja melhor não tratar os deuses como ancestrais dos binkers, ou
vice-versa, mas encarar os dois como subprodutos da mesma predisposição
psicológica. Deuses e binkers têm em comum o poder de consolar, e
funcionam como uma caixa de ressonância para testar idéias novas. Não nos
afastamos muito da teoria do subproduto psicológico para a evolução da
religião, apresentada no capítulo 5.
CONSOLO
Chegou o momento de encarar o importante papel que Deus cumpre de
nos reconfortar; e o desafio humanitário, se Deus não existir, de colocar alguma
coisa em seu lugar. Muita gente que admite que Deus provavelmente não
existe, e que ele não é necessário para a moralidade, ainda recorre ao que
freqüentemente considera um trunfo: a suposta necessidade psicológica ou
emocional de um deus. Se você tirar a religião, as pessoas perguntam, com
truculência, o que vai colocar no lugar? O que você tem a oferecer aos
pacientes que estão morrendo, aos parentes enlutados, às Eleanor Rigby
solitárias que têm em Deus seu único amigo?
A primeira coisa a dizer em resposta a isso é algo que nem deveria
precisar ser dito. O poder de consolo da religião não a torna verdadeira.
Mesmo que fizéssemos uma enorme concessão; mesmo que fosse
demonstrado de forma conclusiva que a crença na existência de Deus é
absolutamente essencial para o bem-estar psicológico e emocional humano; mesmo que todos os ateus fossem neuróticos desesperados levados ao suicídio
por uma angústia cósmica infinita — nada disso contribuiria nem com um
pingo de prova de que a crença religiosa é verdadeira. Poderia ser evidência a
favor da vantagem de se convencer de que Deus existe, mesmo que ele não
exista. Como já mencionei, Dennet, em Quebrando o encanto, faz a distinção
entre acreditar em Deus e acreditar na crença: a crença de que é desejável acreditar, mesmo que a crença em si seja falsa: "Eu creio, Senhor! Ajuda a minha
incredulidade" (Marcos 9,24). Os fiéis são encorajados a professar a crença, estejam
ou não convencidos dela. Talvez se você repetir alguma coisa o bastante consiga se
convencer de sua veracidade. Acho que todos nós conhecemos pessoas que gostam
da ideia da fé religiosa, e ficam ressentidas com ataques a ela, mas que admitem
com relutância que elas próprias não a possuem. Fiquei ligeiramente chocado ao
descobrir um exemplo da primeira categoria no livro de meu herói Peter
Medawar The Hmits of Science (Oxford University Press, 1984, p. 96): "Eu lamento
minha descrença em Deus e nas respostas religiosas em geral, porque acho que a
crença daria satisfação e conforto para muitos que dela necessitam se fosse
possível descobrir boas razões científicas e filosóficas para se acreditar em Deus".
Desde que li a distinção de Dennet, encontrei várias ocasiões para utilizá-la.
Não chega a ser exagero dizer que a maioria dos ateus que conheço disfarça seu
ateísmo atrás de uma fachada religiosa. Eles não acreditam em nada sobrenatural,
mas possuem um ponto fraco indistinto para a crença irracional. Acreditam na
crença. É incrível quanta gente parece não saber a diferença entre "X é verdade" e
"É desejável que as pessoas acreditem que X é verdade". Ou talvez elas não caiam
nesse erro lógico, mas simplesmente considerem a verdade pouco importante se
comparada com os sentimentos humanos. Não quero desprezar os sentimentos
humanos. Mas deixemos claro, em qualquer conversa, sobre o que estamos
falando: sentimentos ou verdade. Os dois podem ser importantes, mas não são a
mesma coisa.
De qualquer maneira, minha concessão hipotética foi extravagante e
equivocada. Não sei de nenhuma evidência de que os ateus tenham qualquer tipo
de tendência para a depressão movida pela infelicidade e pela angústia. Alguns
ateus são felizes. Outros são uns desgraçados. Do mesmo jeito, alguns cristãos, judeus, muçulmanos, hindus e budistas são uns desgraçados, enquanto outros
são felizes. Pode ser que haja evidências estatísticas quanto à relação entre
felicidade e crença (ou descrença), mas duvido que seja um efeito
considerável, num ou noutro sentido. Acho que é mais interessante
perguntar se existe algum bom motivo para sentir-se deprimido quando se
vive sem Deus. Encerrarei este livro argumentando, pelo contrário, que dizer
que é possível ter uma vida feliz e realizada sem religião sobrenatural ainda é
pouco. Primeiro, porém, devo examinar as alegações da religião para oferecer
consolo.
Consolar, segundo o dicionário, é aliviar ou tentar aliviar a dor, o
sofrimento, a aflição. Dividirei o consolo em dois tipos.
1 Consolo físico direto. Um homem obrigado a passar a noite numa
montanha deserta pode encontrar conforto num grande e quentinho são bernardo, sem esquecer, é claro, do barril de aguardente na coleira dele.
Uma criança que chora pode ser consolada por braços fortes que a
envolvam, e por palavras reconfortantes sussurradas em seu ouvido.
2 Consolo pela descoberta de um fato previamente ignorado, ou por um
modo previamente desconhecido de encarar fatos existentes. Uma mulher
cujo marido tenha sido morto na guerra pode ser consolada pela
descoberta de que está grávida dele, ou de que ele morreu como herói.
Também podemos obter consolo ao descobrir uma nova forma de pensar
numa situação. Um filósofo ressalta que não há nada de especial no
momento em que um velho morre. A criança que ele um dia foi "morreu"
há muito tempo, não por deixar repentinamente de viver, mas por
crescer. Cada uma das sete idades shakesperianas do homem "morre" ao
transformar-se lentamente na próxima. Por esse ponto de vista, o
momento em que um velho finalmente expira não é diferente das
"mortes" lentas de toda a sua vida.154 Um homem que não goste da
perspectiva de sua própria morte pode achar essa mudança de ponto de
vista um consolo. Ou talvez não, mas é um exemplo potencial de consolo
através da reflexão. Outro é a negação do medo da morte por Mark Twain: "Não temo a morte. Fiquei morto bilhões e bilhões de anos antes
de nascer, e não tive a menor inconveniência por causa disso". O aperçu
não muda nada no fato de nossa morte inevitável. Mas ele nos
proporciona uma nova maneira de encarar essa inevitabilidade, e
podemos achá-la um consolo. Thomas Jefferson também não tinha medo
da morte, e aparentemente não acreditava em nenhum tipo de vida no
além-túmulo. Diz o relato de Christopher Hitchens: "Conforme seus dias
começaram a escassear, Jefferson escreveu mais de uma vez a amigos que
não encarava a aproximação do fim nem com esperança nem com medo.
Isso equivalia a dizer, nos termos mais inconfundíveis, que ele não era
cristão.
Intelectos robustos podem estar preparados para o sólido mantimento
que é a declaração de Bertrand Russell, em seu ensaio "Em que acredito", de
1925:
Acredito que quando morrer apodrecerei, e nada de meu ego sobreviverá. Não sou
jovem e amo a vida. Mas desprezo o pavor diante do pensamento da aniquilação. A
felicidade não deixa de ser felicidade verdadeira por ter de acabar, nem o
pensamento e o amor perdem seu valor por não serem eternos. Muitos homens
enfrentaram a plataforma de execução com orgulho; por certo o mesmo orgulho deve
nos ensinar a pensar de verdade no lugar do homem no mundo. Mesmo que as
janelas abertas da ciência a princípio nos façam tremer depois da quentura
confortável dos mitos humanizadores tradicionais, no final o ar fresco traz vigor, e os
grandes espaços abertos têm seu próprio esplendor.
Fui inspirado por esse ensaio de Russell quando o li na biblioteca da
minha escola, por volta dos dezesseis anos de idade, mas o tinha esquecido.
É possível que eu estivesse homenageando Russell de forma inconsciente
(assim como conscientemente homenageei Darwin) quando escrevi, em O
capelão do Diabo, em 2003:
Há mais que apenas grandiosidade nessa visão da vida, por mais nua e fria que ela
possa parecer de sob o cobertor reconfortante da ignorância. Há uma revigoração
profunda a ser sentida ao receber de frente o vento forte e agudo da compreensão:
os "ventos que sopram pelas vias estreladas", de Yeats.
Como a religião se compara à ciência, por exemplo, na oferta desses dois tipos de consolo? Analisando primeiro o tipo 1 de consolo, é totalmente plausível que os braços fortes de Deus, mesmo que sejam puramente imaginários, possam consolar exata-mente da mesma forma que os braços reais de um amigo, ou um cachorro são-bernardo com um barril de aguardente na coleira. Mas é claro que a medicina científica também pode oferecer conforto — normalmente mais eficaz que aguardente.
Passando para o tipo 2 de consolo, é fácil acreditar que a religião seja
extremamente eficiente. Vítimas de desastres terríveis, como um terremoto,
freqüentemente contam tirar consolo do pensamento de que tudo faz parte do
plano inescrutável de Deus: sem dúvida, alguma coisa de bom deve resultar de
tudo aquilo num tempo mais amplo. Se alguém teme a morte, a crença sincera
de que a pessoa possui uma alma imortal pode ser um consolo - a menos, é
claro, que ela ache que vai para o inferno ou para o purgatório. Falsas crenças
podem ser tão reconfortantes quanto as verdadeiras, até o momento da
desilusão. Isso também se aplica a crenças não religiosas. Um homem com
câncer em estado terminal pode ser consolado por um médico que minta e
diga que ele está curado, de modo tão eficaz quanto outro homem a quem
tenham dito a verdade, que ele está curado. A crença sincera e devotada na vida
após a morte é ainda mais imune à desilusão que a crença num médico
mentiroso. A mentira do médico só funciona até os sintomas ficarem
inconfundíveis. Quem acredita na vida após a morte pode acabar jamais
sofrendo a desilusão.
Pesquisas indicam que aproximadamente 95% da população dos Estados
Unidos acredita que vá sobreviver à própria morte. À parte a aspiração dos
mártires, não consigo deixar de me perguntar quantas pessoas
moderadamente religiosas que alegam acreditar nisso realmente acreditam, do
fundo do coração. Se elas estivessem mesmo sendo sinceras, não deveriam
todas comportar-se como o abade de Ampleforth? Quando o cardeal Basil Hume
disse a ele que estava morrendo, o abade ficou encantado: "Parabéns! Que
ótima notícia. Queria estar indo com o senhor".155 O abade, ao que parece, era
mesmo um crente sincero. Mas é exatamente por ser tão rara e inesperada que a história chama a nossa atenção, quase nos diverte — de um jeito que faz
lembrar a charge que mostra uma jovem carregando um cartaz de "Faça
amor, não faça guerra", nua em pêlo, e um observador exclamando: "Isso é o
que eu chamo de sinceridade!". Por que todos os cristãos e muçulmanos não
dizem coisas parecidas com o que o abade disse quando ficam sabendo que
um amigo está morrendo? Quando uma mulher devota ouve de um médico
que só tem alguns meses de vida, por que não sorri de entusiasmo, como se
tivesse acabado de ganhar uma viagem para as ilhas Seychelles? "Não vejo a
hora!" Por que os fiéis que vão visitá-la em seu leito não a enchem de recados
para os que já partiram antes? "Por favor mande minhas lembranças para o tio
Robert quando o vir..."
Por que as pessoas religiosas não falam desse jeito quando estão na
presença dos moribundos? Não pode ser porque na verdade elas não acreditam
em tudo aquilo em que fingem acreditar? Ou talvez acreditem, mas temam o
processo de morrer. Com bons motivos, já que nossa espécie é a única que não
pode ir ao veterinário para acabar sem dor com o sofrimento. Mas, nesse
caso, por que a oposição mais eloquente à eutanásia e ao suicídio assistido
vem das religiões? No modelo "Abade de Ample-forth" ou "Férias nas ilhas
Seychelles" de morte, não seria de esperar que as pessoas religiosas fossem as
últimas a se agarrar, desesperançosamente, à vida terrena? E no entanto é
impressionante como, quando se encontra alguém que é ardentemente contra a
eutanásia ou contra o suicídio assistido, dá para apostar um bom dinheiro que
essa pessoa seja religiosa. A razão oficial pode ser que matar é sempre pecado.
Mas por que considerar isso pecado se você acreditar sinceramente que está
acelerando sua viagem para o céu?
Minha atitude em relação ao suicídio assistido, bem ao contrário, parte
da observação de Mark Twain, que já citei. Estar morto não será diferente de
não ter nascido — só serei como era no tempo de William, o Conquistador, ou
dos dinossauros, ou dos trilobitos. Não há nada a temer nisso. Mas o
processo de morrer pode muito bem ser, dependendo de nossa sorte, doloroso
e desagradável — o tipo de experiência da qual nos acostumamos a(ser
protegidos pela anestesia geral, como na remoção do apêndice. Se seu animal de estimação estiver morrendo, cheio de dor, você será chamado de cruel se
não o levar ao veterinário para que ele dê ao bicho uma anestesia geral da qual
ele não acordará. Mas, se seu médico realizar exatamente o mesmo serviço
misericordioso com você, se você estiver morrendo cheio de dor, corre o risco
de ser indiciado por assassinato. Quando eu estiver morrendo, gostaria que
minha vida fosse tirada sob anestesia geral, exatamente como no caso de um
apêndice doente. Mas esse privilégio não me será permitido, porque tenho o
azar de ter nascido membro da espécie Homo sapiens, em vez, por exemplo, da
Canis familiaris ou da Felis catus. Pelo menos é o que acontecerá se eu não me
mudar para um lugar mais esclarecido, como a Suíça, a Holanda ou o Oregon. Por
que lugares esclarecidos assim são tão raros? Principalmente por causa da
influência da religião.
Mas, podem dizer, não há uma diferença importante entre ter o
apêndice removido e ter a vida removida? Não, na verdade; não se você estiver
prestes a morrer de qualquer jeito. E não se você tiver uma crença religiosa
sincera na vida após a morte. Se se tem tal crença, morrer é só uma transição
de uma vida para outra. Se a transição é dolorosa, não há motivo para querer
que ela aconteça sem anestesia, assim como não se desejaria retirar o apêndice
sem anestesia. Quem, como nós, vê a morte como uma coisa terminal, em vez
de uma transição, é que deveria resistir ingenuamente à eutanásia ou ao
suicídio assistido. Só que somos nós que os defendemos.*
Na mesma linha, o que devemos pensar da observação de uma
enfermeira que conheço, que tem uma experiência de vida inteira
administrando um asilo, onde a morte é uma ocorrência regular? Ela
percebeu, ao longo dos anos, que os que mais têm medo da morte são os
religiosos. A observação precisaria de sustentação estatística, mas,
pressupondo que ela esteja certa, o que é isso? O que quer que seja, não é um
depoimento muito bom do poder da religião para reconfortar os
* Um estudo sobre as atitudes em relação à morte entre ateus americanos mostrou o seguinte: 50% queriam
uma celebração fúnebre de sua vida; 99% apoia-laen o suicídio assistido por um médico para aqueles que
assim o desejassem e 75% queriam ter esse direito; 100% não queriam contato com equipes hospitalares que
promovam a religião. Veja http://nursestoner.com/myresearch.html.
moribundos.* No caso dos católicos, será que eles estão com medo do
purgatório? O santo cardeal Hume disse adeus a um amigo com as seguintes
palavras: "Bom, tchau, então. Vejo você no purgatório, acho". O que eu acho é
que havia um brilho de ceticismo naqueles velhos olhos bondosos.
A doutrina do purgatório revela a falta de lógica com que a cabeça
teológica funciona. O purgatório é uma espécie de Ellis Island divina, uma sala
de espera hadeana para onde as almas dos mortos vão se seus pecados não
forem ruins o bastante para mandá-los para o inferno, mas precisarem ainda de
umas verificações e de purificação para ser admitidas no paraíso sem pecados.** Nos tempos medievais, a Igreja vendia "indulgências" em troca de
dinheiro. Equivalia a pagar por um determinado número de dias descontados
do purgatório, e a Igreja literalmente (com uma presunção de tirar o fôlego)
emitia certificados assinados especificando o número de dias que haviam sido
adquiridos. A Igreja Católica Apostólica Romana é uma instituição para a qual o
termo "ganhos escusos" poderia ter sido especialmente inventado. E, de todos os
esquemas para fazer dinheiro, a venda de indulgências deve certamente se
classificar como um dos maiores golpes da história, o equivalente medieval ao
golpe do nigeriano na internet, mas muito mais bem-sucedido.
Ainda em 1903, o papa Pio x tabulava o número de dias descontados do
purgatório que cada escalão da hierarquia tinha direito a ganhar: duzentos dias
para cardeais; cem dias para arcebispos; para bispos, meros cinqüenta dias. Naquela
época, porém, as indulgências já não eram mais vendidas diretamente por dinheiro. Mesmo na Idade Média, o dinheiro não era a única moeda para comprar a
dispensa do purgatório. Dava para pagar em orações também, fossem as suas
próprias, antes de morrer, ou as de outras pessoas por você, depois de sua morte.
* Um amigo australiano cunhou uma frase maravilhosa para descrever a tendência da religiosidade de
aumentar com a idade. Leia com sotaque australiano, subindo o tom no fim, com uma pergunta: "Ralando para
a prova final?" ["Cramming for the final?"].
** O purgatório não deve ser confundido com o limbo, para onde os bebés que morrem sem ser balizados
supostamente iam. E os fetos abortados? E os blas-tocistos? Agora, com pose caracteristicamente arrogante, o
papa Bento xvi acaba de abolir o limbo. Isso significa que todos os bebés que lá estiveram, lânguidos, por todos
esses séculos vão de repente flutuar para o céu? Ou permanecem lá e apenas os nascidos a partir de agora
estão livres do limbo? Ou os papas anteriores estavam todos errados desde o começo, apesar de sua infalibilidade? Esse é o tipo de coisa que todos nós devemos "respeitar".
E o dinheiro comprava orações. Se você fosse rico, podia garantir indefinidamente
as provisões para sua alma. A faculdade que cursei em Oxford, New College (era
novo naquela época), foi fundada em 1379 por um dos maiores filantropos
daquele século, William de Wyke-ham, bispo de Winchester. Um bispo medieval
podia virar o Bill Gates daquele tempo, controlando o equivalente em termos de
vias de informação (para Deus) e reunindo enormes riquezas. Sua diocese era
excepcionalmente grande, e Wykeham usou sua fortuna e influência para fundar
dois grandes estabelecimentos educacionais, um em Winchester e um em
Oxford. A educação era importante para Wykeham, mas, nas palavras da história
oficial do New Coljege, publicada em 1979 para marcar o sexto centenário, o
objetivo fundamental da escola era ser "uma grande oferenda para a intercessão
pelo repouso de sua alma. Ele providenciou para os serviços da capela dez
capelões, três secretários e dezesseis coristas, e ordenou que só eles fossem
mantidos se a renda da escola faltasse". Wykeham deixou o New College nas
mãos da Sociedade, um organismo que se auto-elege e que existe há mais de
seiscentos anos. Imagina-se que ele confiava que continuaríamos rezando por
sua alma ao longo dos séculos.
Hoje a faculdade tem apenas um capelão* e nenhum secretário de capela, e
o fluxo torrencial e constante de orações para Wykeham, século após século,
reduziu-se à míngua de uma ou duas orações por ano. Só os coristas seguem
firmes e fortes, e sua música é mesmo mágica. Até eu sinto um pouco de culpa lá
no fundo, como membro da Sociedade, pela traição de uma confiança. No
entendimento de sua época, Wykeham estava fazendo o equivalente a um homem
rico hoje que faça um grande pagamento adiantado a uma companhia de
criogenia que garanta congelar o corpo e mante-lo protegido de terremotos,
desordens civis, guerras nucleares e outros perigos, até algum ponto no futuro em
que a ciência e a medicina tenham descoberto como descongelá-lo e curar a
doença, qualquer que seja ela, da qual ele estava morrendo. Não estamos nós,
membros posteriores da Sociedade, descumprindo um contrato com nosso
fundador? Se estamos, estamos em boa companhia. Centenas de benfeitores medievais morreram acreditando que seus herdeiros, bem pagos para fazê-lo, rezariam
* Uma capela — o que o bispo William teria achado?
por eles no purgatório. Não consigo deixar de especular qual é a proporção dos
tesouros da arte e arquitetura medieval da Europa que começou como
pagamentos adiantados pela eternidade, em contratos hoje traídos.
Mas o que realmente me fascina na doutrina do purgatório é a evidência
que os teólogos apresentaram de sua existência: evidência de uma debilidade tão
espetacular que torna ainda mais cômica a convicção com que é defendida. A
entrada sobre o purgatório na Catholic encyclopedia possui um trecho chamado
"provas". A evidência essencial para a existência do purgatório é a seguinte: se os
mortos simplesmente fossem para o céu ou o inferno com base em seus pecados
cometidos na Terra, não haveria motivo para rezar por eles. "Pois por que rezar
pelos mortos, se não houver a crença de que o poder da oração oferece consolo
para aqueles que ainda estão excluídos da visão de Deus?" E nós rezamos
pelos mortos, não rezamos? Portanto o purgatório tem de existir, senão nossas
orações não teriam sentido! c. q. d. Isso é um bom exemplo do que passa por
raciocínio numa cabeça religiosa.
Esse non sequitur admirável é repetido, numa escala maior, no uso
comum do Argumento do Consolo. Deus tem de existir, afirma o argumento,
porque, se não existir, a vida seria vazia, sem sentido, inútil, um deserto de
insignificância. Como é possível que se tenha de mostrar que a lógica não
resiste nem ao primeiro obstáculo? Talvez a vida seja vazia. Talvez nossas orações
pelos mortos não façam mesmo sentido. Presumir o contrário é presumir a
veracidade de qualquer conclusão que queiramos provar. O suposto silogismo é
transparentemente circular. A vida sem sua mulher pode muito bem ser
intolerável, estéril e vazia, mas isso infelizmente não impede que ela esteja
morta. Há algo de infantil na ideia de que outra pessoa (pais no caso de
crianças, Deus no caso de adultos) tem a responsabilidade de dar sentido e
objetivo a sua vida. Tudo isso faz parte da mesma infantilidade daqueles que,
no momento em que torcem o tornozelo, olham em torno para achar quem
processar. Alguém tem de ser o responsável por meu bem-estar, e alguém tem
de ser o culpado se eu me machuco. Seria uma infantilidade semelhante o que
está na verdade por trás da "necessidade" de um Deus? Voltamos ao Binker?
A visão verdadeiramente adulta, pelo contrário, é a de que nós é que decidimos se nossa vida será significativa, plena e maravilhosa. E podemos fazer
com que ela seja mesmo maravilhosa. Se a ciência oferece um consolo não
material, isso se funde com meu tópico final, a inspiração.
INSPIRAÇÃO
Inspiração é uma questão de gosto, ou de opinião, e a conseqüência
levemente negativa disso é que o método de argumentação que tenho de
empregar é mais retórico que lógico. Já fiz isso antes, e muitos outros também
fizeram, como, para citar apenas exemplos recentes, Cari Sagan em Pálido ponto
azul, E. O. Wilson em Biophilia, Michael Shermer em The soul ofscience [A alma da
ciência] e Paul Kurtz em Affirmations. Em Desvendando o arco-íris tentei mostrar
como temos sorte de estar vivos, considerando o fato de que a grande maioria
das pessoas que poderiam ser criadas pela loteria combinatória do DNA na
realidade jamais nascerá. Para nós, sortudos, que estamos aqui, descrevi a
brevidade relativa da vida imaginando uma luzinha de laser avançando ao longo
de uma enorme linha do tempo. Tudo o que há antes ou depois da luzinha está
mergulhado na escuridão do passado morto ou na escuridão do futuro
desconhecido. Somos incrivelmente sortudos de estar sob a luz. Por mais curto
que seja nosso tempo sob o sol, se desperdiçarmos um segundo dele, ou
reclamarmos que é tedioso ou estéril ou chato (como uma criança), isso não
poderá ser visto como um insulto insensível para os trilhões de não-nascidos
que jamais terão a chance de receber a vida? Como muitos ateus já disseram
melhor que eu, a consciência de que temos apenas uma vida deveria torná-la
ainda mais preciosa. A visão ateísta reafirma e melhora a vida, e ao mesmo tempo
nunca é afetada pela auto-ilusão, pelo excesso de otimismo ou pela autopiedade
chorosa daqueles que acham que a vida lhes deve alguma coisa. Emily Dickinson
disse:
Que ela nunca acontecerá de novo
É o que torna a vida tão bela.
*
* "That it will never come again/ Is what makes life so sweet." (N. T.)
Se a eliminação de Deus vai deixar uma lacuna, cada um vai preenchê-la à
sua maneira. Minha maneira inclui uma boa dose de ciência, a empreitada
honesta e sistemática para descobrir a verdade sobre o mundo real. Vejo o
esforço humano para entender o universo como um empreendimento de
modelismo. Cada um de nós constrói, dentro de nossa cabeça, um modelo do
mundo em que vivemos. O modelo mínimo do mundo é o modelo de que
nossos ancestrais precisavam para sobreviver nele. O software da simulação foi
construído e aperfeiçoado pela seleção natural, e funciona melhor no mundo
que nossos ancestrais da savana africana conheciam: um mundo
tridimensional de objetos materiais de dimensões médias, movendo-se em
velocidades médias proporcionalmente entre si. Num bônus inesperado, nosso
cérebro revelou-se poderoso o suficiente para acomodar um modelo de mundo
muito mais rico que o mundo medíocre e utilitarista de que nossos ancestrais
precisavam para sobreviver. A arte e a ciência são manifestações desse bônus.
Quero apresentar um panorama final, para mostrar o poder que a ciência tem
de abrir a cabeça e satisfazer a psique.
A MÃE DE TODAS AS BURCAS
Um dos espetáculos mais tristes de nossas ruas hoje em dia é a imagem
de uma mulher encoberta por uma forma negra dos pés à cabeça, espiando o
mundo através de uma nesga minúscula. A burca não é só um instrumento da
opressão de mulheres e de repressão de sua liberdade e de sua beleza; não é
só um símbolo da crueldade flagrante masculina da trágica submissão feminina. Quero usar a estreita fenda do véu como representação de outra
coisa.
Nossos olhos enxergam o mundo através de uma fenda estreita no
espectro eletromagnético. A luz visível é uma fresta de brilho no vasto
espectro escuro, de ondas de rádio, no extremo curto, aos raios gama, no
extremo longo. É difícil imaginar quão estreita ela é, e um desafio explicar.
Imagine uma burca negra gigantesca, com uma fenda para a visão
aproximadamente da largura-padrão, por exemplo de 2,5 centímetros. Se o comprimento do tecido negro acima da fenda representar o extremo das ondas
curtas do espectro invisível, e se o comprimento do tecido negro abaixo da
fenda representar a porção de ondas longas do espectro invisível, que
comprimento a burca teria de ter para acomodar uma fenda de 2,5
centímetros à mesma escala? É difícil representá-la de forma sensata sem
invocar escalas logarítmicas, tão imensos são os comprimentos de que estamos
falando. O último capítulo de um livro como este não é lugar para começar a
sair despejando logaritmos, mas pode acreditar em mim que seria a mãe de
todas as burcas. A janelinha de 2,5 centímetros de luz visível é ridiculamente
minúscula comparada aos quilômetros e quilômetros de tecido negro que
representam a parte invisível do espectro, das ondas de rádio na barra da saia
aos raios gama do alto da cabeça. O que a ciência faz para nós é alargar a janela.
Ela se abre tanto que a vestimenta aprisionante quase que se rasga totalmente,
expondo nossos sentidos a uma liberdade revigorante.
Os telescópios ópticos usam lentes de vidro e espelhos para vasculhar os céus, e o que eles vêem são estrelas que por acaso estejam irradiando na estreita faixa de comprimento de onda que chamamos de luz visível. Mas outros telescópios "vêem" em raio X ou comprimentos de onda de rádio, e apresentam a nós uma cornucópia de céus noturnos alternativos. Numa escala menor, câmeras com filtros adequados conseguem "ver" em ultravioleta e tirar fotos de flores com uma série de faixas e pontos que são visíveis — e aparentemente "projetados" — para os olhos de insetos, mas que nossos olhos nus nem detectam. Os olhos dos insetos têm uma janela espectral de espessura semelhante à da nossa, mas ligeiramente mais para cima na burca: eles são cegos para o vermelho e vêm mais ultravioleta que nós — mais do "jardim ultravioleta".*
* "O jardim ultravioleta" foi o título de uma de minhas cinco Palestras de Natal da Royal Institution, originalmente transmitidas pela BBC sob o título "Growing up in the universe" ["Crescendo no universo"]. A série completa das cinco palestras está disponível em dvd em www.richarddawkins.net, site da Fundação Richard Dawkins.
A metáfora da janela estreita de luz, que se abre num espectro
espetacularmente amplo, também funciona para outras áreas da ciência.
Vivemos perto do centro de um museu de magnitudes cavernosas,
enxergando o mundo com órgãos dos sentidos e sistemas nervosos equipados
para perceber e entender apenas uma pequena variação mediana de
tamanhos, que se movam numa variação mediana de velocidades. Ficamos
bem com objetos que variem de alguns quilômetros (a visão de um pico de
montanha) até um décimo de milímetro (a ponta de um alfinete). Fora dessa
gama, até nossa imaginação é deficiente, e precisamos da ajuda de
instrumentos e da matemática — que, felizmente, podemos aprender a usar.
A gama de tamanhos, distâncias ou velocidades com que nossa imaginação se
sente confortável é uma faixa minúscula, no meio de um espectro gigantesco
do que é possível, da escala de estranheza do quantum, no extremo menor, à
escala da cosmologia einsteiniana, no extremo maior.
Nossa imaginação é tristemente subequipada para lidar com distâncias
que saiam do estreito âmbito mediano do que é familiar desde sempre.
Tentamos visualizar um elétron como uma bola pequenininha, em órbita em
torno de um agrupamento maior de bolas que representam os prótons e os
nêutrons. Não é nada disso. Os elétrons não são como bolinhas. Eles não se
parecem com nada que possamos reconhecer. Nem claro o que "parecer"
possa significar quando tentamos voar perto demais dos horizontes mais
distantes da realidade. Nossa imaginação ainda não está instrumentalizada para
penetrar na área do quantum. Nada que tenha aquela escala age como a
matéria — da maneira como evoluímos para pensar — devia agir. Nem
conseguimos lidar com o comportamento de objetos que se movam a alguma
fração apreciável da velocidade da luz. O bom senso deixa-nos na mão, porque o
bom senso evoluiu num mundo onde nada se move rápido demais, e nada é
muito pequeno nem muito grande.
No final de um famoso ensaio sobre "Mundos possíveis", o grande
biólogo J. B. S. Haldane escreveu: "Agora, minha desconfiança é que o universo
não só é mais estranho do que imaginamos, mas mais estranho do que
podemos imaginar [...] Suspeito que haja mais coisas no céu e na terra que se sonha, ou que se possa sonhar, em qualquer filosofia". Aliás, fiquei intrigado
com a sugestão de que o famoso discurso de Hamlet invocado por Haldane
costuma ser dito de modo errado. A ênfase normal é no "tua":
Há mais coisas no céu e na terra, Horácio,
Do que sonha a tua filosofia. *
Na verdade, a citação é freqüentemente repetida com a implicação de que
Horácio representa todos os racionalistas e céticos rasos. Mas alguns acadêmicos colocam a ênfase em "filosofia", com o "tua" quase
desaparecendo:"[...] do que sonha t'a filosofia". A diferença não interessa muito
para nossos propósitos atuais, com a exceção de que a segunda interpretação já
cuida do "qualquer" filosofia de Haldane.**
A pessoa a quem este livro é dedicado ganhou a vida com a estranheza
da ciência, levando-a ao ponto da comédia. O trecho seguinte foi tirado do
mesmo discurso improvisado em Cambridge em 1998 que citei no capítulo 1:
"O fato de que vivemos no fundo de um poço profundo de gravidade, na
superfície de um planeta coberto de gás que gira em volta de uma bola de fogo
nuclear a 150 bilhões de quilômetros e achamos isso normal é obviamente
uma indicação do quão torta tende a ser nossa perspectiva". Enquanto outros
escritores de ficção científica brincavam com a estranheza da ciência para
despertar nosso senso de mistério, Douglas Adams usava-a para nos fazer dar
risada (quem já leu O guia do mochileiro das galáxias pode lembrar do "gerador
de improbabilidade infinita", por exemplo). A risada pode mesmo ser a melhor
resposta para alguns dos paradoxos mais esquisitos da física moderna. A
alternativa, às vezes acho, é chorar.
A mecânica quântica, aquele pico rarefeito de realização científica do século
XX, faz previsões brilhantemente bem-sucedidas sobre o mundo real. Richard
Feynman comparou sua precisão a prever uma distância tão grande quanto a
* "There are more things in heaven and earth, Horatio,/ Than are dreamt of in your philosophy." (N. T.)
** Embora não seja totalmente fiel ao original, a tradução que acabou se consagrando para citações em
português é: "Há mais coisas entre o céu e a terra do que sonha nossa vã filosofia", que muda o tom da frase,
aproximando-a da interpretação de Haldane. (N. T.)
argura da América do Norte com a acuidade da espessura de um fio de cabelo humano. Esse sucesso preditivo parece significar que a teoria quântica tem de ser verdadeira em algum sentido; tão verdadeira quanto qualquer coisa que conhecemos, mesmo os fatos mais bobos e comuns. Mas as pressuposições que a teoria quântica precisa fazer, para produzir as previsões, são tão misteriosas que o grande Feynman, ele mesmo, foi levado a dizer (existem várias versões dessa citação, dentre as quais a seguinte parece-me a mais legal): "Se você acha que entende a teoria quântica... você não entende a teoria quântica".*
A teoria quântica é tão esquisita que os físicos recorrem a uma ou outra
"interpretação" paradoxal dela. Recorrem é a palavra certa. David Deutsch, em A
essência da realidade, adota a interpretação da teoria quântica dos "muitos
mundos", talvez porque o pior do que ela pode ser acusada é de ser
ridiculamente extravagante. Ela postula um número enorme e crescente de universos, que existem de forma paralela e são mutuamente indetec-táveis, exceto
pelo estreito portal dos experimentos de mecânica quântica. Em alguns desses
universos eu já morri. Numa pequena minoria deles, você tem um bigode verde.
E assim por diante.
A alternativa, a "interpretação de Copenhague", é igualmente ridícula —
não extravagante, apenas drasticamente paradoxal. Erwin Schrõdinger
satirizou-a com sua parábola do gato. O gato de Schrõdinger é preso numa caixa
com um mecanismo de morte acionado por um evento de mecânica quântica.
Antes de abrirmos a tampa da caixa, não sabemos se o gato está vivo ou morto.
O bom senso diz que, de qualquer jeito, o gato tem de estar ou vivo ou morto
dentro da caixa. A interpretação de Copenhague contradiz o bom senso: tudo
que existe antes de abrirmos a caixa é uma probabilidade. Assim que abrimos a
caixa, a função de onda colapsa e ficamos com um evento isolado: o gato está
morto, ou o gato está vivo. Até que abramos a caixa, ele não estava nem morto
nem vivo.
A interpretação dos "muitos mundos" para os mesmos acontecimentos é
que em alguns universos o gato está morto; em outros universos o gato está
vivo.
* Afirmação semelhante é atribuída a Niels Bohr: "Se alguém não ficar chocado com a teoria quântica é porque
não a entendeu".
Nenhuma das duas interpretações satisfaz o bom senso ou a intuição
humana. Os físicos, mais machos, não estão nem aí. O que interessa é que a
matemática funciona, e as previsões são experimentalmente cumpridas. A
maioria de nós é fraca demais para ir atrás deles. Aparentemente precisamos de
algum tipo de visualização do que está "realmente" acontecendo. Sei, aliás, que
Schrõdinger propôs originalmente o experimento de pensamento do gato para
desnudar o absurdo que via na interpretação de Copenhague.
O biólogo Lewis Wolpert acredita que a esquisitice da física moderna é só
a ponta do iceberg. A ciência em geral, ao contrário da tecnologia, é violenta com
o bom senso.156 Wolpert calcula, por exemplo, que "há muito mais moléculas em
um copo d'água do que copos d'água no oceano". Uma vez que toda a água do
planeta passa pelo oceano, pareceria que a conclusão é de que toda vez que
você toma um copo d'água há boas chances de que algo do que está bebendo
tenha passado pela bexiga de Oliver Cromwell. É claro que não há nada de
especial em Cromwell, nem em bexigas. Você não acabou de respirar um
átomo de nitrogénio que um dia foi respirado pelo terceiro iguanodonte à
esquerda da árvore cicadácea? Não fica feliz de viver num mundo em que, além
de tal conjectura ser possível, você tem o privilégio de entender o porquê dela? E
explicá-la publicamente para outra pessoa, não corno uma opinião ou crença,
mas como algo que ela, quando tiver entendido seu raciocínio, se sentirá
compelida a aceitar? Talvez esse seja um dos aspectos do que Cari Sagan quis
dizer quando explicou sua motivação para escrever O mundo assombrado pelos
demônios: A ciência vista como uma vela no escuro: "Não explicar a ciência
parece-me perverso. Quando estamos apaixonados, queremos contar ao
mundo todo. Este livro é uma declaração pessoal, que reflete meu caso de amor
de vida inteira com a ciência".
A evolução da vida complexa, e de fato sua própria existência num
universo que obedeça às leis da física, é uma surpresa maravilhosa — ou seria,
se não fosse o fato de que a surpresa é uma emoção que só pode existir num
cérebro que seja o produto desse mesmo processo tão surpreendente. Existe
um sentido antrópico, portanto, pelo qual nossa existência não deveria ser
surpreendente. Gostaria de acreditar que falo também pelos outros seres humanos quando insisto, mesmo assim, que ela é de uma surpresa
desesperadora.
Pense nisso. Em um planeta, e possivelmente um único planeta no
universo inteiro, moléculas que normalmente não formariam nada mais
complicado que um pedaço de pedra reúnem-se em grupos de matéria do
tamanho de pedras, de uma complexidade tão inacreditável que são capazes
de correr, pular, nadar, voar, enxergar, escutar, capturar e comer outros
pedaços animados de complexidade; capazes em alguns casos de pensar e. sentir,
e de apaixonar-se por outros pedaços de matéria complexa. Hoje entendemos
em termos básicos como o truque funciona, mas somente desde 1859. Antes
de 1859 isso teria parecido esquisitíssimo. Hoje, graças a Darwin, é só muito
esquisito. Darwin pegou a janela da burca e a arregaçou, deixando entrar uma
torrente de compreensão cujo caráter inovador e fascinante, e cujo poder de
elevar o espírito humano, talvez tenha sido inédito — exceto talvez a percepção
copérnica de que a Terra não era o centro do universo.
"Diga-me", perguntou uma vez o grande filósofo do século XX Ludwig
Wittgenstein a um amigo, "por que as pessoas sempre dizem que era natural
para o homem assumir que o Sol é que girava em torno da Terra, em vez de
que a Terra estava girando?" Seu amigo respondeu: "Bom, é óbvio que é porque
parece que o Sol está girando em torno da Terra". Wittgenstein respondeu:
"Bom, e como teria parecido se parecesse que era a Terra que estava girando?".
Às vezes cito essa declaração de Wittgenstein em palestras, na expectativa de
que o público dê risada. Em vez disso, as pessoas ficam assombradas, em
silêncio.
No mundo limitado em que nosso cérebro evoluiu, os objetos pequenos
são mais propensos a se mexer que os grandes, que são vistos como pano de
fundo para o movimento. Conforme o mundo roda, objetos que parecem
grandes porque estão próximos — montanhas, árvores e prédios, o próprio
chão — movem-se todos em exata sincronia entre si e entre o observador, em
relação ao Sol e às estrelas. Nosso cérebro evoluído projeta uma ilusão de
movimento neles, em vez de nas montanhas e nas árvores que estão no
primeiro plano.
Quero agora explorar a questão mencionada acima, de que o modo como
vemos o mundo, e o motivo pelo qual achamos certas coisas intuitivamente
fáceis de entender e outras difíceis, é que nosso próprio cérebro é um órgão
resultante da evolução: computadores portáteis, que evoluíram para ajudar-nos a
sobreviver num mundo — usarei o nome Mundo Médio — em que os objetos
que interessavam à nossa sobrevivência não eram nem muito grandes nem
muito pequenos; um mundo em que as coisas ou estavam paradas ou se
moviam devagar se comparadas com a velocidade da luz; e em que o muito
improvável podia sem problemas ser tratado como impossível. Nossa fenda de
burca mental é estreita porque ela não precisava ser mais larga para ajudar
nossos ancestrais a sobreviver.
A ciência nos ensinou que, contrariando toda a intuição que a evolução
criou, coisas aparentemente sólidas como cristais e rochas são na verdade
compostas quase totalmente de espaço vazio. A ilustração mais comum é a que
representa o núcleo de um átomo como uma mosca no centro de um estádio
de futebol. O próximo átomo está fora do estádio. A rocha mais dura, mais sólida, mais densa, portanto, "na verdade" é quase só espaço vazio, interrompido
apenas por partículas minúsculas tão longe umas das outras que nem deveriam
contar. Então por que as rochas parecem tão sólidas e duras e impenetráveis?
Não vou tentar imaginar como Wittgenstein teria respondido a essa
pergunta. Mas, como biólogo evolutivo, eu responderia da seguinte maneira:
Nosso cérebro evoluiu para ajudar nosso corpo a se virar no mundo na escala
em que esse corpo funciona. Nunca evoluímos para navegar no mundo dos
átomos. Se tivéssemos, talvez nosso cérebro percebesse as rochas como coisas
cheias de espaços vazios. As rochas parecem duras e impenetráveis para nossas
mãos porque nossas mãos não conseguem penetrá-las. O motivo pelo qual elas
não podem penetrá-las não tem nada a ver com os tamanhos e as separações
entre as partículas que constituem a matéria. Tem a ver, sim, com os campos de força associados a essas partículas tão distantes entre si na matéria "sólida". É útil
para nosso cérebro construir noções como solidez e impenetrabilidade, porque
essas noções ajudam-nos a navegar com nosso corpo por um mundo no qual os
objetos — que chamamos de sólidos — não podem ocupar o mesmo espaço ao mesmo tempo.
Um pequeno intervalo cômico neste ponto — tirado de The men who stare
at goats [Homens que encaram cabras], de Jon Ronson:
Esta é uma história real. Verão de 1983. O major-general Albert Stubblebine m está
sentado em sua mesa em Arlington, Virgínia, e olha fixamente para a parede, na qual
estão penduradas suas várias condecorações militares. Elas detalham uma longa e
respeitada carreira. Ele é o chefe de inteligência do Exército dos Estados Unidos, com
16 mil soldados sob seu comando... Ele não olha para os prémios, mas para a parede
atrás deles. Sente que tem de fazer uma coisa, embora tenha medo só de pensar.
Pensa na escolha que tem de fazer. Pode ficar em seu escritório ou pode ir ao escritório ao lado. A escolha é dele. E ele escolheu. Vai ao escritório ao lado... Ele se
levanta, sai de trás da mesa e começa a andar. Afinal, pensa ele, do que mesmo o
átomo é mais feito? Espaço! Ele acelera o passo. Do que eu sou mais feito? Pensa.
Átomos! Só tenho que fundir os espaços... Então o general Stubblebine bate com tudo
o nariz na parede de seu escritório. Droga, pensa. O contínuo fracasso do ato de
atravessar sua parede confunde o general Stubblebine.
O general Stubblebine é bem descrito como "um inovador" no site da
organização em que, aposentado, ele hoje comanda junto com a mulher.* A
organização chama-se Health Freedomus A e é dedicada a "suplementos
(vitaminas, minerais, aminoácidos etc.), ervas, remédios homeopáticos,
medicina nutricional e comida limpa (sem pesticidas, herbicidas e antibióticos),
sem corporações (através do uso da coerção do governo) ditando-lhe que
doses e tratamentos você pode usar". Nenhuma menção aos preciosos fluidos
corporais.
**
Como evoluímos no Mundo Médio, achamos intuitivamente fácil
entender idéias como: "Quando um major-general se movimenta, na velocidade
média com que os majores-generais e outros objetos do Mundo Médio
costumam se movimentar, e atinge outro objeto sólido do Mundo Médio como
uma parede, seu avanço é dolorosamente interrompido". Nosso cérebro não
está equipado para imaginar como seria ser um neutrino que atravessa uma pare-
* www.healthfreedomusa.org/aboutus/president.shtml. Para um retraio aparentemente bem característico do
general Stubblebine, veja www.mindcontrol-forums.com/images/Mind94.jpg.
** Referência ao filme Dr. Fantástico, de Stanley Kubrick, em que um general acha que os comunistas querem
poluir os "preciosos fluidos corporais" dos americanos. (N. T.)
de, nos vastos interstícios de que a parede "na verdade" consiste. Assim como
nosso entendimento não consegue captar o que acontece quando as coisas se
movem à velocidade da luz.
A intuição humana, que evoluiu e se formou no Mundo Médio sem ajuda,
acha até mesmo difícil acreditar em Galileu quando ele nos diz que uma bala de
canhão e uma pena, sem o atrito do ar, atingiriam o chão no mesmo instante se
lançadas de uma torre inclinada. Isso porque, no Mundo Médio, o atrito do ar
está sempre lá. Se tivéssemos evoluído no vácuo, nossa expectativa seria de que
a pena e a bala de canhão atingissem o chão simultaneamente. Somos cidadãos
do Mundo Médio resultantes da evolução, e isso limita o que somos capazes de
imaginar. A abertura estreita de nossa burca só permite, a menos que sejamos
superdotados ou peculiarmente instruídos, que vejamos o Mundo Médio.
Em certo sentido, nós, animais, temos de sobreviver não apenas no Mundo
Médio, mas no micromundo de átomos e elétrons também. Os próprios
impulsos nervosos com que pensamos e imaginamos dependem das atividades
do Micromundo. Mas uma compreensão do Micromundo não teria ajudado
nossos ancestrais selvagens em nenhuma ação que tiveram de realizar, nenhuma decisão que tiveram de tomar. Se fôssemos bactérias, constan-temente
esbofeteados pelos movimentos térmicos das moléculas, seria diferente. Só que
nós, mundomedianos, somos grandalhões demais para notar o movimento
browniano. Da mesma maneira, nossa vida é dominada pela gravidade, mas
praticamente ignoramos a força delicada da tensão da superfície. Um pequeno
inseto inverteria essa ordem de prioridade e não acharia a tensão da superfície
nada delicada.
Steve Grand, em Creation: Life and how to make it [Criação: vida e como
fazê-la], é quase cruel com nossa preocupação com a matéria. Temos uma
tendência a achar que só as "coisas" sólidas, materiais, são realmente "coisas".
"Ondas" de flutuação eletromagnética num vácuo parecem "irreais". Os
vitorianos achavam que ondas só eram ondas "em" algum meio material. Não se
conhecia nenhum meio assim, então eles o inventaram e o batizaram de éter
luminífero. Mas nosso entendimento só se sente confortável com a matéria
"de verdade" porque nossos ancestrais evoluíram para sobreviver no Mundo
Médio, onde a matéria é um conceito útil.
Por outro lado, até nós, mundomedianos, somos capazes de ver que um
redemoinho é uma "coisa" com uma realidade parecida com a da rocha, embora
a matéria do redemoinho esteja constantemente mudando. Numa planície do
deserto na Tanzânia, à sombra do Ol Donyo Lengai, vulcão sagrado dos masai, há
uma grande duna feita de cinzas de uma erupção em 1969. Seu formato é
moldado pelo vento. O bonito, porém, é que ela anda. É o que tecnicamente se
chama barcana. A duna inteira anda pelo deserto na direção oeste a uma
velocidade de cerca de dezessete metros por ano. Ela mantém seu formato de lua
crescente e avança na direção das pontas. O vento joga areia sobre a encosta mais
baixa. Assim, conforme cada grão de areia chega ao topo, desce pela encosta mais
inclinada, no centro do crescente.
Na verdade, até uma barcana é mais "coisa" que uma onda. Uma onda
parece movimentar-se horizontalmente pelo mar aberto, mas as moléculas de água
movem-se verticalmente. Da mesma forma, as ondas de som podem viajar do
falante para o ouvinte, mas as moléculas de ar não viajam: senão seria um vento,
não um som. Steve Grand afirma que eu e você somos mais ondas que "coisas"
permanentes. Ele convida o leitor a pensar numa experiência de sua infância. Alguma coisa de que você se lembre bem, alguma
coisa que você consiga ver, sentir, talvez até cheirar, como se estivesse mesmo lá.
Afinal de contas, você estava mesmo lá naquela época, não estava? Senão, como iria
lembrar? Mas aqui vem a bomba: você não estava lá. Nem um único átomo que está
em seu corpo hoje estava lá quando aquilo aconteceu [...] A matéria flui de lugar para
lugar e por um instante reúne-se para formar você. O quer quer que você seja,
portanto, você não é aquilo de que é feito. Se isso não faz você sentir um calafrio na
espinha, leia de novo até que faça, porque isso é importante.*
"Na verdade" não é um termo que devemos usar com confiança. Se um
neutrino tivesse um cérebro que houvesse evoluído em ancestrais do tamanho de
neutrinos, ele diria que as rochas "na verdade" consistem em grande parte de
espaços vazios. Temos um cérebro que evoluiu em ancestrais de tamanho médio,
que não eram capazes de atravessar rochas, portanto nosso "na verdade" é um
* Alguns podiam contestar a verdade literal da afirmação de Grand, por exemplo no caso de moléculas de
ossos. Mas o espírito dela com certeza é válido. Você é mais onda que "coisas" materiais estáticas.
"na verdade" no qual as rochas são sólidas. "Na verdade", para um animal, é
aquilo que seu cérebro precisa que seja, para ajudá-lo a sobreviver. E, como
espécies diferentes vivem em mundos tão diferentes, haverá uma variedade
perturbadora de "na verdade".
O que vemos do mundo real não é o mundo real intocado, mas um
modelo do mundo real, regulado e ajustado por dados sensoriais — um
modelo que é construído para que seja útil para lidar com o mundo real. A
natureza desse modelo depende do tipo de animal que somos. Um animal
que voa precisa de um modelo de mundo diferente do de um animal que
anda, que escala ou que nada. Predadores precisam de um modelo diferente
do das presas, embora seus mundos necessariamente se sobreponham. O
cérebro de um macaco precisa ter uma programação capaz de simular um
labirinto tridimensional de galhos e troncos. O cérebro de um notonectídeo
não precisa de um programa em 3D, já que mora na superfície de um lago na
Flatland de Edwin Abbott. O software para construir modelos do mundo de
uma toupeira é adaptado para o uso subterrâneo. Os ratos-tou-peiras pelados
provavelmente têm um programa de representação do mundo parecido com o
de uma toupeira. Mas um esquilo, embora seja roedor como o rato-toupeira,
provavelmente tem um software de construção do mundo muito mais
próximo do do macaco.
Já especulei, em O relojoeiro cego e em outros lugares, que os morcegos
podem "ver" a cor com os ouvidos. O modelo de mundo de que um morcego
precisa, para navegar pelas três dimensões capturando insetos, deve
certamente ser semelhante ao modelo de que uma andorinha precisa para
realizar a mesma tarefa. O fato de o morcego usar o eco para atualizar as
variáveis de seu modelo, enquanto a andorinha usa a luz, é secundário. Os
morcegos, sugiro, usam percepções de tonalidades, como "vermelho" e "azul",
como rótulos internos para algum aspecto útil dos ecos, talvez a textura
acústica das superfícies; exatamente da mesma maneira como as andorinhas
usam as percepções de tonalidades para rotular comprimentos de onda curtos
e longos da luz. O importante é que a natureza do modelo é determinada por
como ele será usado, mais que pela modalidade sensorial envolvida. A lição que os morcegos dão é essa. O formato geral do modelo mental — ao contrário das
variáveis que estão constantemente chegando através dos nervos sensoriais —
é uma adaptação ao modo de vida do animal, exatamente como suas asas,
suas patas e sua cauda.
J. B. S. Haldane, no artigo sobre os "mundos possíveis" que citei
anteriormente, tinha algo de relevante a dizer sobre os animais cujo mundo é
dominado pelos cheiros. Ele ressaltou que os cachorros conseguem distinguir
dois ácidos graxos voláteis muito semelhantes — o ácido caprílico e o ácido
capróico — diluídos na proporção de uma parte para um milhão. A única
diferença é que a principal cadeia molecular do ácido caprílico tem dois átomos
de carbono a mais que a cadeia principal do ácido capróico. Um cachorro,
imaginou Haldane, provavelmente seria capaz de colocar os ácidos "na ordem de
seus pesos moleculares por meio dos cheiros, assim como um homem consegue
colocar cordas de piano na ordem de seu comprimento por meio das notas".
Existe outro ácido graxo, o ácido cáprico, que é igual aos outros dois,
exceto pelo fato de que tem mais dois átomos de carbono ainda na cadeia
principal. Um cão que nunca tenha deparado com o ácido cáprico talvez não
tenha mais dificuldade de imaginar seu cheiro que nós teríamos para
imaginar um trom-pete tocando uma nota mais alta que a que já ouvimos o
trom-pete tocar. Parece-me muito razoável supor que um cachorro, ou um
rinoceronte, trate misturas de cheiros como acordes harmoniosos. Talvez haja
dissonâncias. É pouco provável que haja melodias, pois as melodias são
construídas com notas que começam ou param abruptamente em momentos
precisos, diferentemente dos odores. Ou talvez cachorros e rinocerontes
cheirem em cores. O argumento seria o mesmo para os morcegos.
Mais uma vez, as percepções a que chamamos cores são instrumentos
usados por nosso cérebro para rotular distinções importantes no mundo
exterior. As tonalidades que sentimos — o que os filósofos chamam de qualia
— não têm conexão intrínseca com luzes de comprimentos específicos de
onda. São rótulos internos que estão disponíveis no cérebro, quando ele constrói
seu modelo da realidade externa, para fazer distinções que são especialmente
relevantes para o animal em questão. Em nosso caso, ou no de um pássaro, isso significa a luz de diferentes comprimentos de onda. No caso de um
morcego, como especulei, podem ser superfícies de diferentes propriedades ou
texturas de eco, talvez vermelho para brilhante, azul para aveludado, verde
para abrasivo. E, no caso de um cachorro ou de um rinoceronte, por que não
seria para os cheiros? A possibilidade de imaginar como é o mundo exterior
para um morcego ou um rinoceronte, para um inseto que anda sobre a água
ou uma toupeira, para uma bactéria ou um besouro que perfura cascas de
árvores é um dos privilégios que a ciência nos proporciona quando afasta o
tecido negro de nossa burca para nos mostrar a maior variedade do que existe,
para nosso deleite.
A metáfora do Mundo Médio — da faixa intermediária de fenómenos
que a abertura estreita de nossa burca permite-nos enxergar — aplica-se a
outras escalas ainda, ou "espectros". Podemos construir uma escala de
improbabilidades, com uma abertura tão estreita quanto, através da qual nossa
intuição e nossa imaginação conseguem avançar. Em um extremo do espectro de
improbabilidades estão aqueles acontecimentos que classificaríamos como
impossíveis. Milagres são coisas extremamente improváveis. Uma estátua da
Madona poderia acenar com a mão para nós. Os átomos que formam sua
estrutura cristalina estão todos vibrando para a frente e para trás. Como são
muitos, e como não há uma preferência em sua direção de movimento, a
mão, como a vemos no Mundo Médio, fica solidamente parada. Mas os átomos
que se mexem o tempo todo na mão podiam todos simplesmente, por acaso, se
mover na mesma direção ao mesmo tempo. E de novo. E de novo... Nesse caso a
mão ia se mexer, e a veríamos fazendo tchau para nós. Poderia acontecer, mas
as chances de que não aconteça são tão grandes que, se você tivesse
começado a escrever o número na origem do universo, ainda não teria escrito
zeros suficientes até hoje. O poder para calcular essas possibilidades — o
poder de quantificar o quase impossível em vez de simplesmente desistir de
desespero — é outro exemplo dos benefícios liberadores da ciência para o
espírito humano.
A evolução no Mundo Médio deixou-nos mal equipados para lidar com
acontecimentos altamente improváveis. Mas na vastidão do espaço astronômico, ou do tempo geológico, acontecimentos que parecem impossíveis
no Mundo Médio revelar-se-iam inevitáveis. A ciência abre à força a estreita
fresta através da qual estamos acostumados a enxergar o espectro de
possibilidades. O cálculo e o raciocínio libertam-nos para visitar regiões de
possibilidade que um dia estiveram fora dos limites permitidos, ou povoadas
por dragões. Já utilizamos esse alargamento da janela no capítulo 4, em que
analisamos a improbabilidade da origem da vida e como um evento químico
quase impossível tem de acontecer, desde que nos sejam dados para brincar
anos planetários suficientes; e onde analisamos o espectro de universos possíveis, cada um com seu próprio conjunto de leis e constantes, e a necessidade
antrópica de nos encontrarmos em um lugar amistoso dentre uma minoria de
lugares amistosos.
Como devemos interpretar o "mais estranho do que podemos imaginar",
de Haldane? Mais estranho do que pode, em princípio, ser imaginado? Ou
simplesmente mais estranho do que podemos imaginar, dada a limitação do
aprendizado evolutivo de nosso cérebro no Mundo Médio? Será que podemos,
pelo treino e pela prática, nos emancipar do Mundo Médio, rasgar nossa burca
negra e alcançar algum tipo de compreensão intuitiva — além de meramente
matemática — daquilo que é pequeníssimo, grandíssimo e rapidíssimo?
Genuinamente não sei a resposta, mas fico muito feliz de estar vivo numa
época em que a humanidade tenta superar os limites do entendimento. Melhor
ainda, talvez acabemos descobrindo que os limites não existem.
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