quarta-feira, 29 de maio de 2024

LINGUÍSTICA - “Assim nasceu uma língua” atesta que o português veio do galego


Livro de Fernando Venâncio refuta a tese nacionalista portuguesa de que o idioma teria surgido com a formação do Reino de Portugal

Victor Hugo da Silva Vasconcellos

Assim nasceu uma língua: sobre as origens do português“, do linguista português Fernando Venâncio, chegou ao Brasil em maio de 2024, após sete edições portuguesas (2019) e uma galega (2021). Publicado na versão brasileira pela editora Tinta da China, a obra apresenta a história do português a partir da intensa investigação científica e do levantamento de dados sobre as origens da língua falada por mais de 280 milhões de pessoas. Seu texto refuta a tese nacionalista portuguesa de que o idioma teria surgido com a formação do Reino de Portugal, no século XII, defendendo que seu surgimento remonta a séculos antes, no Reino da Galiza. Isto é, o português é uma língua que derivou do galego, e não diretamente do latim.

A língua portuguesa nasceu como galego e foi politicamente língua comum na Galiza e em Portugal até o século XIV – sem ainda a nomeação do idioma de Portugal como “português”, que só ocorreu com o Rei Dom Dinis (1261-1325). Desse modo, a publicação desse livro traz contribuições importantes ao Brasil, à Galiza e a Portugal. Sua leitura é acessível a não especialistas, mas exige um leitor que tenha familiaridade com e/ou interesse pelas questões linguísticas.

História

Nas duas primeiras partes do livro, Venâncio leva o leitor ao distante século VII, possível época em que o latim do noroeste da península Ibérica começou a perder as consoantes intervocálicas /l/ e /n/ — uma diferença notável entre essa língua que estava surgindo em relação às demais línguas românicas ibéricas. Essa nova forma de falar foi a base da língua de comunicação na porção oeste da Península Ibérica, mais especificamente na Galiza. No século VIII (anos 700), já existia uma Galiza – o Reino Suevo da Galiza, mas nada que ainda pudesse projetar Portugal no horizonte.

Península Ibérica em 1065 d.C.

Península Ibérica em 1065 d.C. - Fonte: grupo Reino da Galiza

No século XII, ocorreu a separação do Condado de Portugal do Reino da Galiza, levando-o ao status de Reino de Portugal, com o rei Dom Afonso Henriques. A língua de Portugal era a mesma de seu vizinho do norte, a Galiza. De acordo com o autor: “[…] quando Portugal surgiu, os seus habitantes continuaram, com naturalidade a se expressarem na língua em que já o faziam. E, assim, a primeira língua de Portugal foi o galego. Era o que estava disponível.”

Além da criação do reino de Portugal, outros eventos políticos acabaram por separar a comunidade entre os territórios ao norte e ao sul do rio Minho na faixa ocidental da península. Enquanto Portugal seguiu como reino independente, a Galiza foi anexada à Coroa de Castela, o que gerou repressão em relação à sua língua própria, uma vez que a língua oficial da Coroa era o castelhano. Entre os séculos XIII e XVIII, o galego foi pressionado a desaparecer por meio de Castela / Espanha e esquecido por Portugal.

Península Ibérica em 1400 d.C. - Fonte: Wikimedia Commons

Sob o nome de “português” a língua do sul, providenciou mudanças para diferenciá-la e afastá-la cada vez mais da sua origem do norte. Virado para o castelhano (língua que a elite portuguesa teve como modelo nos séculos XVI e XVII), o português retrocedeu no seu processo de perda das consoantes intervocálicas /l/ e /n/ ao incorporar palavras do castelhano ou adaptá-las à ortografia portuguesa, na tentativa de se reaproximar das fontes latinas. Sendo o centro-sul de Portugal o polo de poder, os falantes lisboetas criaram o “ão”, ditongo nasal que não há em outras línguas, substituindo o “om” galego (coraçom) por “coração”.



[…] No século XV sempre se escrevia ocasiom, patrom, consideraçom, e quase sempre liçom, condenaçom, tentaçom, coraçom. Isso só pode indicar que a pronúncia do õ permaneceu com boa saúde. Por volta do ano 1500, avançou-se a fusão das três terminações originais (ã, õ e ão). […] Mas ao longo do século XVI as grafias razom, coraçom, entom ou disserom, chegarom, forom, virom ainda eram comuns. Mesmo em pleno século XVIII vemos frequentemente cam, pam, tam e nom escritos (e publicados). Tudo isso sugere uma longa coexistência das pronúncias antigas com as novas. (2021, p. 151)

Foi um processo político de “desgaleguização” do português para transformá-lo numa língua independente e de império, para ser levado às suas colônias (como o Brasil). Seria muito estranho ser um império com a língua de outro território.

Foi um processo político de “desgaleguização” do português para transformá-lo numa língua independente e de império, para ser levado às suas colônias (como o Brasil). Seria muito estranho ser um império com a língua de outro território.

A desgaliguização durou entre os séculos XV e XIX, na tentativa de afastar o máximo possível as duas variedades linguísticas. Com isso, surgiu o mito da Lusitânia, muito bem explanado no livro, na tentativa de afastar Portugal de qualquer relação com a Galiza e sua língua. Logo, o português é o galego que desceu ao sul e foi para o mundo.

O apagamento das realidades setentrionais, e sobretudo do Além-Miño, veio dar espaço a novas referências, e a mais importante delas foi a ideologia lusitanista. Portugal descobre-se continuador da Lusitânia, e lusitano torna-se a palavra da moda no século XVI: “Reino Lusitano”, “povo Lusitano”, “terra Lusitana”. Essa reorientação cultural não é inocente. “O lusitanismo constitui a ideologia substituta para cobrir a lacuna deixada pelo apagamento do galego” (2021, p. 237).

Ainda há uma valorização muito maior pelo falar do sul de Portugal em relação ao norte português (que mantém até hoje proximidade com o galego contemporâneo. A língua não se intimida diante de barreiras políticas.

Galego e Português

A terceira parte do livro é dedicada à comparação entre a língua galega e a portuguesa. Uma questão que ainda se discute na Galiza é se o galego e o português são duas línguas distintas ou se são variedades da mesma língua. É um debate complexo, pois atravessado não apenas pela linguística, como também pela política e pela ideologia.

Venâncio considera os dois idiomas como línguas distintas, mesmo que tenham tido uma origem comum e ainda nos dias de hoje sejam muito parecidas. Para o tema, busca uma argumentação científica e culturalmente embasada para sustentar sua posição, apesar da “assombrosa proximidade” que há entre as línguas. Há elementos linguísticos que possam sustentar essa separação, como também o contrário, por isso o atravessamento político-ideológico.

Esse posicionamento do autor provocou irritação do movimento reintegracionista da Galiza, que busca, no português, uma saída milagrosa para frear a diluição de seu idioma no castelhano, substituindo a sua norma oficial da Real Academia Galega (RAG) pelo português europeu estândar (diluindo o galego, portanto, no português). A justificativa reíntegracionista é que o galego e o português são a mesma língua e por isso devem ter um mesmo sistema gramatical e ortográfico.

Aos que defendem essa proposta, Venâncio nomeia-os como “reintegracionistas radicais” (que veem o galego e o português como a mesma língua, considerando-se nativos também). Segundo o autor, eles já não percebem a evolução das duas línguas e ficam presos a um passado distante, além de que, nem no português padrão existe apenas uma norma (Brasil e Portugal diferem muito nas suas maneiras de usar a língua). Afinal, está cada vez mais evidente que o português europeu e o português brasileiro estão, há um bom tempo, num processo irreversível de distanciamento. Trata-se de um idioma em “circuito aberto”, para aproveitar a expressão com a qual o autor dá título ao último segmento de seu livro.

Passar de uma norma galega (RAG) para a portuguesa de maneira brusca não é vista como solução. Venâncio apresenta exemplos de erros dos galegos que “acham que escrevem em português”. Essa exposição justifica-se quando não se fala de estrangeiros que estão aprendendo português, mas de “supostos” nativos da língua, em que os erros são muito mais próximos dos erros de estrangeiros do que os erros de quem tem essa língua como materna. O sistema linguístico é diferente, tanto fonético como sintático.

Outra questão muito pontual é a questão fonética. O galego oficial (RAG) mantém parte da fonética original do galego, mas também já adotou uma parte da fonética castelhana, já que a língua falada continua mudando. O dígrafo “lh” em português, adotou-se a escrita com “ll”, em galego, convergindo com a usada em castelhano. O som deveria ser o mesmo do português, como em: coelho – coello; mulher – muller. Mas boa parte da população não consegue fazer esse som adequadamente por causa da influência do castelhano como língua dominante, esse som, muitas vezes, é alterado para o som que é pronunciado em “calle”, “yo” e “ya”, na pronúncia em castelhano madrilenho, por exemplo.

O som das letras B e V já constam como iguais na RAG, sem marca distintiva, o que no português ocorre. Outra diferença fonética é a transformação do J e do G em X, como “janela” e “xanela”. Um galego não tem na sua variedade linguística esse som, gerando confusão em palavras como chá – já; chato – jato; xingar – gingar, por exemplo.

A variedade galega não tem o fonema fricativo alveolar sonoro /z/, apenas o surdo /s/, como no castelhano. Como é um traço distintivo do português e não do galego, não há a diferenciação na Galiza entre casar – caçar; ouso – ouço; selar – zelar; assar – azar; ração – razão etc.


Fonte: Tabela criada pelo autor com informações em Venâncio (2021, p. 219-221)

Brasil, Galiza e Portugal

Na quarta e última parte de seu livro, Venâncio apresenta a originalidade da língua portuguesa, suas inovações e vocábulos próprios que confundiriam galegos e falantes de castelhano. Ele traz uma amostra da evolução da língua e as soluções escolhidas por aqueles que direcionaram o idioma para o modo como se apresenta hoje.

Para o Brasil, essa contribuição é valiosa por apresentar um material mais direto e completo sobre a história de sua própria língua. Não há, nos bancos escolares, conteúdos que explicitem a história da língua portuguesa como de fato ocorreu. O que chega ao Brasil já é uma história distorcida que concebe o português como uma língua única, originada diretamente do latim e moldada na Lusitânia, o que não condiz com os estudos atuais. O português veio do Galego, que, sim, é uma língua que se originou diretamente do latim e resiste aos assédios da Espanha até os dias de hoje.

Para a Galiza, a publicação deste livro traz à tona a discussão de seu passado glorioso, como primeiro reino medieval e principal língua ibérica na Idade Média. Língua essa que foi a mais importante e de prestígio social entre os séculos XII e XV, usada por reis e grandes intelectuais, que deu origem à segunda língua latina mais falada no mundo e a quinta com mais utentes no globo.

Para Portugal, a contribuição é de conscientizar seu povo sobre a própria história, pois a língua que batizou de português era a língua falada no Reino da Galiza. Além disso, a história da Lusitânia deve ser entendido como um mito, e o nome “lusofonia” vem desse mito, uma informação criada para inventar um orgulho português, mas que vem sendo questionado por intelectuais galegos, uma vez que o nome correto seria “galegofonia”.

Que os professores de língua portuguesa brasileiros saibam usar bem esse livro em suas aulas sobre a origem do que se fala de fato no Brasil e de onde veio a língua cuja história não será mais deturpada por valores ideológicos e nacionalistas.


Nota: as citações do livro de Fernando Venâncio foram traduzidas da versão em galego, publicada em 2021.


Victor Hugo da Silva Vasconcellos é doutorando em estudos linguísticos pela Universidade da Coruña e também doutorando em letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Além de pesquisador, é professor particular de língua portuguesa e linguística.





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