segunda-feira, 20 de maio de 2024

O NEGÓCIO DO JAIR - A História secreta do clã Bolsonaro (gota 11)

“Olá, boa noite!”

Era tudo que a mensagem dizia. Ainda na cama, chequei a hora de envio. Fora de madrugada. Desde a eleição, eu estava atrás de quem tivesse conhecido Jair Bolsonaro ao longo da vida. No início queria compreender melhor a história dele, mas aos poucos vi que ele escondia muito sobre quem de fato era, o que realmente pensava e como agia. Procurei mais de cinquenta pessoas. A partir de 2018, porém, eram poucas as que aceitavam conversar, e com frequência manifestavam medo. No fim de setembro de 2018, enviei uma mensagem a alguém que convivera com Jair por anos: “Oi, como vai?”.

Enviei a mensagem por uma rede social que deixava ver onde eu trabalhava — era repórter da redação da Época e do Globo, no Rio. Tinha esperança de que a resposta chegasse antes de eu revelar o assunto da conversa, mas imaginava que a pessoa iria supor que se tratava de Jair Bolsonaro. A resposta chegou sete meses depois. Respondi imediatamente: “Como vai? Meu nome é Juliana, sou repórter. Desculpa te abordar aqui. Você não me conhece. Quando te mandei mensagem estava fazendo uma matéria no meio da eleição […]. Toparia conversar comigo por telefone? Gostaria de te ouvir”.

Em seguida, escrevi meu telefone e uma hora depois recebi uma longa resposta: “Podemos conversar sobre a situação, mas ainda não sei o que pode acontecer comigo após serem publicadas minhas opiniões. Temo perder meu emprego. Ao mesmo tempo, gostaria de contribuir de alguma forma para desmitificar o ‘mito’ […]. Foram anos de convivência com ele e presenciei muita coisa (ruim). Como seria esta entrevista ?”.

Na sequência, fizemos um acordo para uma conversa sob sigilo. Aqui, ela será chamada “Madalena”, como Maria Madalena, figura cercada de mistério, testemunha de parte essencial da história e com muita informação relevante. Ela foi a primeira de outras fontes que presenciaram os bastidores dos gabinetes e a intimidade da família Bolsonaro muito antes de eles conquistarem os postos mais altos da República.

Uma das primeiras coisas que Madalena disse foi que nós estávamos muito focados em Queiroz. Na verdade, tudo dizia respeito ao Negócio do Jair: “Jair Bolsonaro envolveu toda a família nessa história. Tudo passava por ele. Tenho nomes pra passar…”.

Essa troca de mensagens durou boa parte daquela manhã e seguiu nos dias posteriores. Madalena pediu off de toda a conversa, mas era possível checar boa parte dos dados por meio de documentos públicos a partir dos nomes completos que ela me forneceu. Solicitei o nome de todos os funcionários de Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados desde 1991. Na Alerj, a transparência é mais restrita. Então comecei a procurar algumas fontes que, sob anonimato, me auxiliaram com informações sobre uma pequena lista de nomes. Parecia um caminho mais ágil do que aguardar o retorno de todos os pedidos formais, que pode durar até vinte dias ou mesmo um mês.

Enquanto aguardava os documentos, consegui convencer Madalena a se encontrar comigo cerca de uma semana depois de nosso primeiro contato. Conversamos por muitas horas. Ela repassou vários episódios sobre o início do esquema e seu desdobramento ao longo dos anos, sobretudo durante o casamento com Cristina. Ao final, ela me disse que eu poderia ouvir uma gravação, mas com algumas condições: só podia ouvir, não poderia publicar e, claro, precisava manter o seu anonimato. Concordei.

O conteúdo era bastante perturbador. Em um dos trechos mais comprometedores, Andrea Siqueira Valle, ex-cunhada de Jair, admitia muita coisa: “Eu ajudei, ele ajudou, beleza. Certo ou errado [agora] já foi, não tem jeito de voltar atrás”. Havia mais, e era tudo muito grave, mas eu não tinha autorização para publicar. Sabia de uma bomba e não podia torná-la pública. Alguns dias depois, saiu a autorização da quebra de sigilo dos investigados no gabinete de Flávio e as informações que Madalena havia me relatado passaram a ter ainda mais importância.

QUANDO VI A LISTA DE NOMES da quebra de sigilo, desconfiei que os investigadores não tinham ideia de que ali existiam tantos familiares relacionados a Jair Bolsonaro. As pessoas listadas não tinham o sobrenome do presidente, pois o parentesco se dava por meio de dois casamentos de Jair. Os promotores pareciam somente querer apurar os funcionários de Flávio desde 2007, ano em que Queiroz entrou para o gabinete oficialmente.

O MP quis evitar um pedido formal de dados à Alerj para não identificar o que estava sob investigação e impedir que o senador soubesse daquelas diligências. Assim, eles optaram por um rastreamento eletrônico, fazendo uma varredura nos diários oficiais da Alerj. A medida também ajudava a identificar pessoas que haviam atuado de modo terceirizado, por meio de indicações de Flávio para comissões.

Mas essa varredura só foi feita a partir de fevereiro de 2019, quando o caso desceu para a primeira instância e foi parar no Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção, Gaecc, que funcionava no segundo andar do prédio principal do MP. Antes, o caso estava no oitavo andar do mesmo edifício, a PGJ. E era nítido que lá tudo andava com excessiva cautela e precaução. Tanto é que por seis meses, de julho a dezembro de 2018, a apuração praticamente não saiu do lugar. Além disso, a informação sobre os cheques depositados para a primeira-dama era deliberadamente ignorada pelo MP. Nos bastidores, comentava-se que ela não fora assessora de Flávio e por isso não era investigada.

Era notável o esforço que a cúpula do MP do Rio fazia para ser discreta e não polemizar sobre o assunto publicamente. Uma vez divulgada a existência da investigação, em dezembro de 2018, o primogênito do presidente passou a acusar os promotores de perseguição. No dia 18 de janeiro de 2019, o jornalista da GloboNews Octavio Guedes e o então procurador-geral do MP-RJ Eduardo Gussem foram vistos almoçando em um restaurante no Jardim Botânico. Um apoiador de Jair Bolsonaro fotografou a cena e Flávio passou a acusar os dois de vazamento, sem prova alguma.

No dia anterior, registrava-se a primeira paralisação do caso por ordem judicial. Flávio ainda não havia tomado posse. Convidado a prestar esclarecimentos ao MP-RJ, ele pediu para antes ter acesso aos autos. Quando sua defesa soube dos pedidos por relatórios sobre movimentação atípica de Flávio, foi um auê. Flávio não atendeu ao convite do MP e foi ao STF pedir, no plantão judiciário, uma liminar para interromper a investigação até que o foro apropriado ao caso fosse “esclarecido”. Ainda que no passado ele houvesse criticado duramente o foro especial concedido a políticos com mandato, não seria agora que ele iria levantar essa bandeira. O ministro Luiz Fux, titular no plantão do STF, concedeu a liminar. Meses antes, porém, o STF já tinha decidido, ainda em 2018, que com o fim do mandato encerrava-se o foro.

A defesa de Flávio também passou a dizer que o Coaf violara o sigilo bancário dele. A argumentação era completamente infundada, não havia prova alguma. Os advogados chegaram a inventar que os pedidos dos relatórios tinham sido feitos por e-mail ao órgão, o que era falso. Para sustentar a falácia, a defesa de Flávio fez referência a trocas de mensagens internas restritas a integrantes do MP. Com isso conseguiram simular uma confusão e Flávio passou a atacar o MP-RJ.

Menos de 48 horas depois, surgiram na imprensa os primeiros dados acerca de um relatório do Coaf sobre Flávio Bolsonaro: ele havia feito 48 depósitos de 2 mil reais no caixa da Alerj em alguns dias entre junho e julho de 2017, quando ainda era deputado.

Os episódios daquela semana deixaram Gussem e os promotores em geral ainda mais receosos em comentar o caso. O procurador geral nunca mais daria entrevista sobre o assunto. No entanto, quando acabou o recesso do Judiciário, o relator do pedido de Flávio no STF, ministro Marco Aurélio Mello, retornou ao trabalho. Ele já havia adiantado publicamente que costumava “remeter ao lixo” petições como a de Flávio, que contrariavam a jurisprudência estabelecida pelo STF. E foi o que fez.

A investigação então foi retomada no Rio e acabou encaminhada a um promotor da primeira instância, seguindo a decisão do ministro. Por atribuição formal, a investigação foi enviada à 24ª Promotoria de Investigação Penal, comandada pelo promotor Claudio Calo. A papelada mal chegou e foi passada adiante no dia seguinte, pois Calo se declarou suspeito. A imprensa havia noticiado suas posições conservadoras, com ideias próximas às do clã Bolsonaro, e ele logo foi visto como bolsonarista nas redes sociais.

Calo avaliou que corria o risco de ser apontado como parcial qualquer que fosse o resultado da investigação, pois alguns colegas souberam que, logo após a campanha eleitoral de 2018, ele conversara com Flávio Bolsonaro na loja Kopenhagen que o agora senador tinha em um shopping na Zona Oeste. O promotor disse que havia ido expressar preocupação com os rumos que o governador eleito do Rio, Wilson Witzel, queria dar para a segurança pública. A conversa não teria ido adiante, segundo Calo, mas em fevereiro de 2019, com toda polêmica que já existia na investigação da rachadinha, o episódio certamente iria se somar à pilha de dúvidas.

Assim, em nova distribuição no MP, a investigação foi encaminhada para o promotor Luís Otávio Lopes, que por sua vez o encaminhou ao Gaecc. Criado em novembro de 2016, o Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção era uma resposta às críticas de que o MP fluminense teria sido leniente com os desmandos ocorridos durante o governo de Sérgio Cabral. Ao todo, sete promotores do Gaecc passaram a trabalhar no procedimento, coordenados por Patrícia do Couto Villela. Ali, uma investigação sobre o patrimônio do senador, arquivada em 2018, foi reaberta e unificada com o novo caso aberto a partir do relatório do Coaf.

O próximo passo era bastante evidente. A única maneira de saber se existiam outros repasses e transferências de Queiroz para Flávio, além de checar se o patrimônio do primogênito de Bolsonaro era compatível com seus ganhos, era por meio da quebra de seu sigilo bancário. Após a varredura eletrônica, o MP decidiu incluir no pedido a quebra de sigilo bancário e fiscal de 86 pessoas e nove empresas.

Assim, e sem conhecimento público, o juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, recebeu por sorteio eletrônico o pedido de quebra e autorizou o acesso aos dados bancários em 24 de abril de 2019. Ninguém soube de nada até o dia 13 de maio, quando a jornalista Ana Clara Costa,1 então editora da redação integrada do jornal O Globo e da revista Época, descobriu a decisão.

Nas 87 páginas do documento, o MP havia pedido a quebra de sigilo de mais de cem nomes entre empresas e pessoas, a maioria das quais de assessores ou ex-funcionários de Flávio. Dez dos nomes que Madalena citara para mim integravam a lista. Depois de muita conversa, ela me autorizou a divulgar a existência da gravação que havia me mostrado e parte de seu conteúdo em uma matéria.2

Um novo caminho se abria, com outra linha de investigação que chegava até Jair Bolsonaro e aprofundava o caso, independente da história dos cheques de Queiroz para a primeira-dama Michelle Bolsonaro. Agora era necessário conhecer as histórias das dez pessoas. E a primeira com a qual eu precisava entrar em contato era justamente a dona da voz da gravação que confessava os crimes: Andrea Siqueira Valle.

EM MAIO DE 2019, fui a Guarapari, no litoral do Espírito Santo. É uma cidade pequena, a uma hora da capital do estado, conhecida pelo surfe. Poucos meses antes Andrea mudara de Resende para lá. Havia alugado uma quitinete por oitocentos reais, na praia do Morro, e tentava se estabelecer. Segundo os amigos e vizinhos, a fisioculturista passava por um período de grande aperto financeiro. Procurava emprego diariamente, mas encarava qualquer bico de faxina que aparecesse. Mal conseguia pagar as contas.

Era uma situação bastante estranha para alguém que havia passado vinte anos ganhando bons salários entre os gabinetes de Jair, Carlos e Flávio Bolsonaro, uma média de 10,8 mil reais em valores atualizados. O montante bruto recebido por ela nesse tempo todo era superior a 2,6 milhões de reais, também atualizados.

Depois de alguns dias de pesquisa, havia conseguido um endereço e um número de celular. Só que fiquei com medo de ligar e ela bater o telefone na minha cara. Resolvi tentar uma conversa olho no olho. Cheguei a Guarapari à noite e me hospedei numa pousada a poucas quadras de onde Andrea estava morando. Por volta das nove horas da manhã do dia seguinte, 22 de maio, eu já estava no endereço. Era um prédio pequeno, de dois andares. Do lado de fora, só dava para ver o muro e o portão de alumínio. Eu havia apurado com uma fonte que Andrea estaria na quitinete, mas logo que cheguei recebi uma mensagem informando que ela fora fazer compras. Resolvi esperar. Sentei num barzinho que ficava na esquina e lá fiquei uma, duas, três horas. Mexi no celular, tomei água, almocei.

Até que, pouco depois do meio-dia, Andrea passou andando muito rápido. Já não tinha o cabelo comprido como nas fotos do casamento do irmão. Pelo contrário, usava um corte estilo Joãozinho e estava loira. Quase não a reconheci. Vestia uma blusa rosa e um short colorido. Saí andando atrás dela e disse: “Andrea…”.

Ela virou o rosto para trás, surpresa: “Quem é você?”.

“Meu nome é Juliana, sou repórter d’O Globo, queria falar sobre a Alerj.”

“Não tenho nada a declarar.”

Depois disso, ela passou a correr. E eu também, atrás dela.

“Andrea, mas você trabalhou tanto tempo com o senador Flávio…”

“Não tenho nada a declarar.”

“As pessoas tão dizendo que você tá com dificuldades. Como alguém que já ganhou até 8 mil reais tá morando nessa quitinete?”

Andrea saiu em disparada até o portão do prédio. Continuei fazendo perguntas, mas ela enfiou a chave, claramente nervosa, abriu e entrou, como se quisesse se esconder. E em certa medida ela tinha razão, pois já sabia que estava com o sigilo bancário quebrado e que os promotores iam ter acesso a tudo que dizia respeito à sua conta.

Fiquei alguns minutos por ali e comecei a conversar com os vizinhos. A vida dela na cidade se resumia a pouco mais de duas quadras, entre a quitinete, a academia, algumas pousadas onde trabalhou temporariamente como faxineira, e uma pizzaria da qual era cliente. Meia hora depois Andrea passou e me viu conversando com um dos funcionários da pizzaria e fez o maior escândalo. Gritou que ia chamar a polícia e decidi ir embora.

No avião, voltando para o Rio, entendi que, para seguir buscando as pistas do esquema do clã Bolsonaro, era preciso ir atrás do passado de outra família, os Siqueira Valle, “assessores” de Flávio Bolsonaro.

QUANDO CRISTINA FOI VIVER COM BOLSONARO, em 1998, Andrea inaugurou a lista de seus muitos parentes que passaram a ter cargo no gabinete de Jair Bolsonaro. O segundo foi José Procópio da Silva Valle, pai de Cristina. José entrou na lista de funcionários de Jair em novembro de 1998, e ficou até 2000. Depois, quando Flávio conseguiu um mandato na Alerj, seu José ganhou outro cargo no gabinete, onde ficou de 2003 a 2008. Tudo isso sem nunca ter saído de Resende para pisar no Congresso Nacional ou no Palácio Tiradentes. Eu precisava falar com ele. Resolvi telefonar para a residência do casal em 27 de maio de 2019: “Alô?”.

“Sim, quer falar com quem?”

“Com o seu José.”

“É ele mesmo.”

“Seu José, meu nome é Juliana. Tudo bem?”

“Tudo bem.”

“O senhor trabalhou para o deputado Flávio?”

“Olha, por favor, eu não tenho nada a declarar neste momento, tá bom? Por favor, eu não queria falar nada.”

“Eu só quero… É que assim, a Alerj não tem nenhum registro do seu trabalho lá.”

“Me desculpa, tá? Mas eu não tenho nada a declarar.”

“Mas o senhor trabalhou?”

“Nada a declarar, nada a declarar. Obrigado, tchau.”

“Alô, seu José? Alô?”

Logo depois ouvi um barulho estranho, como se ele tivesse tentado desligar o aparelho, só que eu continuava escutando. Quer dizer, ele pensou que havia desligado, porém a ligação continuava. Não entendi isso de imediato e o chamei, mas ele não me escutou. Então continuei ouvindo. Alguns segundos depois, ele começou a contar nossa conversa para alguém: “Se eu trabalhei para o Jair. Desliguei na cara dela”. Mas, à medida que falava, José inventava coisas: “Ela ficou insistindo se eu tinha dinheiro, se tinha salário para eles, se eu tinha recebido. Aí eu não falei mais nada. Não tenho problema nenhum. Não sei de nada e não vou dar entrevista. Tchau. Bati o telefone”.

No início, ele parecia conversar com uma mulher que lhe perguntava a respeito do telefonema. Depois parecia falar com alguém em outro aparelho. E, novamente, reclamava de mim: “Mas toda hora ligam. Quando não é um é outro. Fiquei famoso. Vou cobrar lá a minha imagem, um velho gostoso. Ah, sim, isso aí vai acabar em pizza mesmo. Vai dar em nada. Tão fazendo isso tudo para derrubar o homem lá em cima, mas vai ser difícil. O que eles podem fazer? Nada. A gente não pode falar muito nisso porque pode estar grampeado, entendeu, aí fica meio chato. Mas a gente está tranquilo. Já falei para a Cristina, para a Henriqueta, não vamos falar antes do tempo. Talvez não aconteça nada, vamos ver. Se eu tiver que ir lá, vou lá e falo o que tiver que falar e mais nada. Pior vai ser se for me botar na cadeia junto com o Lula. É, vou tomar umas cachacinhas com ele lá”.

O ex-presidente Lula estava preso devido a uma condenação da Operação Lava Jato fazia mais de um ano. A menção a Lula era, além de debochada, curiosa. Em uma conversa íntima, ele próprio mencionava a hipótese de também ir para a cadeia, mas a tensão era mesclada a uma esperança de impunidade — tudo terminaria em “pizza”.

Tentei conversar com outros parentes de Cristina listados como assessores de Flávio, como o veterinário Francisco Siqueira, primo de Cristina, mas ele bateu o telefone na minha cara. Descobri detalhes de vários outros “servidores”, e então decidimos publicar uma reportagem sobre alguns deles. Foi a matéria que abriu a edição de domingo do Globo, em 2 de junho de 2019.3 Trazia informações sobre quatro parentes de Cristina.

Em seguida sugeri ao jornal um projeto para mapear todos os funcionários da família Bolsonaro. Na apuração para a matéria de domingo, eu tinha entendido uma coisa sistêmica. Bolsonaro usara a própria família, mas não era só isso. Os documentos dos funcionários do clã mostravam que existiam muitas pessoas com sobrenomes parecidos: Fabrício Queiroz, Nathália Queiroz e Evelyn Queiroz; Márcio Gerbatim e Claudionor Gerbatim; Waldir Ferraz, o “Jacaré”, também aparecia, junto com a filha, Bárbara Ferraz; Marília de Oliveira Francisco, Jorge Francisco e Jorge de Oliveira Francisco. Existia um modus operandi. Empregar pessoas de confiança e seus familiares.

Só que o volume de informação era imenso. Eu precisava acompanhar o noticiário diário, além de tentar obter pistas de onde estava Fabrício Queiroz. Assim, decidimos fazer uma espécie de força-tarefa com sete repórteres da equipe de política de O Globo. Além de mim, participaram Juliana Castro, Rayanderson Guerra, Pedro Capetti, Bernardo Mello, Marlen Couto e João Paulo Saconi. Dividimos tarefas. Precisávamos transformar uma pilha de centenas de páginas num arquivo digital no Excel para sistematizar os nomes, cargos, profissões e salários de todos os assessores que um dia haviam sido nomeados pelo clã Bolsonaro. Já tínhamos os dados brutos de Jair e Eduardo. Em seguida obtivemos, agora por um pedido formal na Alerj, a lista dos assessores de Flávio. Mas ainda era preciso monitorar os documentos que não tinham chegado e tentar outras maneiras de obtê-los. Em especial os relativos aos funcionários de Carlos Bolsonaro. Nisso, arrumamos algumas brigas, a principal delas com a Câmara de Vereadores, que se recusava a atender ao pedido e nem sequer dava uma justificativa.

Foi aí que Rayanderson Guerra resolveu tentar a sorte na Biblioteca da Câmara, então no prédio ao lado do Palácio Pedro Ernesto. E deu certo. Em uma tarde de junho de 2019, ele folheou alguns diários oficiais e encontrou nomeações, exonerações e os cargos de pessoas no gabinete de Carlos. Uma consulta analógica, nenhum diário daquela época estava digitalizado. Tínhamos como meta terminar o trabalho até o fim de julho. Então decidimos fazer um mutirão para ler os diários oficiais na biblioteca da Câmara. Na manhã seguinte, Rayanderson, Juliana Castro e eu estávamos lá.

Passamos dias inteiros lendo diários oficiais da Câmara em busca dos assessores de Carlos Bolsonaro desde 2001. Livro por livro, página por página, começamos a notar que havia um padrão também nas nomeações e exonerações. Quase como se os cargos de livre nomeação no gabinete de Carlos fossem herdados por pessoas de uma mesma família. Uma pessoa entrava em determinada ocasião e tempos depois era exonerada para dar lugar a um parente. Andrea Siqueira Valle, por exemplo: em 2006 ela ocupou uma vaga que até então era de seu irmão, André, à época estudante. Como os dois, existiam vários outros casos. Carlos Bolsonaro tinha empregado, aos dezoito anos, sete parentes da ex-madrasta, a maioria dos quais exercia outras atividades.

Decidimos fazer uma reportagem sobre as nomeações que envolviam Cristina e Carlos. Mapeamos detalhes profissionais de cada servidor, seus endereços. Conversamos com amigos, vizinhos, colegas de escola. Levantei até a monografia de fim de curso de duas estudantes que faziam faculdade em Resende e ao mesmo tempo eram assessoras de Carlos no Rio de Janeiro. Fui à Câmara de Resende para tentar falar com Cristina. Autorizada a entrar, subi pelas escadas mesmo. Quando cheguei ao terceiro andar, dei de cara com ela no corredor e fui logo perguntando: “Você pretende falar em algum momento?”.

“Não.”

“Por quê? E se seus parentes forem acusados de lavagem de dinheiro, peculato, que é o que está recaindo sobre a própria investigação que envolve outros assessores?”

“Eles vão responder. Nada a declarar.”

Enquanto eu estava em Resende, Juliana Castro, que trabalhava comigo, achou uma cunhada de Cristina em Juiz de Fora, Marta Valle, casada com o primogênito de seu José. Marta constou como assessora de Carlos Bolsonaro por sete anos e meio, entre novembro de 2001 e março de 2009. Sem sair de Juiz de Fora.

“Em qual gabinete que você trabalhou?”

“Eu não trabalhei em nenhum gabinete, não. Minha família lá que trabalhou, mas eu, não.”

“Ah, entendi. É porque tem seu nome nomeada, durante nove anos lá.”

“É, mas não fui eu, não. Foi a família do meu marido, que é Valle, que trabalhou.”

“Mas você sabia que tinha sido nomeada?”

“Mas logo em seguida já me tiraram do cargo.”

“É, mas é que tem nove anos.”

“Olha, eu prefiro não dar nenhum depoimento. Você me desculpa, tá?”

A reportagem citava vários membros da família de Cristina lotados no gabinete de Carlos durante o período em que ela era a chefe. Depois dessa matéria, o MP passou a investigar Carlos e Cristina. O caso guardava semelhanças com o de Flávio e Queiroz. A matéria era bastante detalhada. Falamos de quase duas décadas de assessores de Carlos Bolsonaro, mostramos que, além da prática de nepotismo, havia um chefe de gabinete que nem crachá tinha, e ainda por cima morava a mais de 160 quilômetros do local de trabalho. Publicamos até o áudio da entrevista com Marta Valle. Mesmo assim, a maior parte dos veículos de comunicação não repercutiu a história. O MP, porém, leu e imprimiu uma versão da reportagem para análise.

Nos dias seguintes, continuamos trabalhando. Queríamos saber quantos funcionários o clã teve, desde 1991, que cumpriam aquele padrão de nepotismo e funcionários-fantasmas. Mapeamos pessoas e suas famílias por todos os meios possíveis. O clã Bolsonaro, Jair e os três filhos mais velhos, usou seus mandatos em três Casas Legislativas do Brasil para nomear 286 pessoas que constaram como seus assessores. Desse total, 102 tinham algum laço familiar entre si e pertenciam a 32 familiares diferentes.

Pessoas da família do presidente, seus sogros de dois casamentos, duas de suas mulheres e vários policiais de sua confiança e suas famílias, todos envoltos em uma teia de suspeição sobre como e para que eram realmente usados os gabinetes da família Bolsonaro. Esse padrão de nomeações sugeria um modus operandi. Primeiro, vinha a prática de nepotismo. Nomeavam-se familiares, até por intimidade. Depois, amigos próximos e seus respectivos parentes, também por confiança. A primeira parte do esquema indicava uma tentativa de manter controle sobre as pessoas.

Depois de levantar a lista completa dos nomes e as relações familiares, aprofundamos a segunda etapa sobre a existência de funcionários-fantasmas. A suspeita era de que a entrega ilegal de salário, a rachadinha, era, sobretudo, praticada entre os que não trabalhavam efetivamente.

Assim, fomos pesquisar em bancos de dados públicos, arquivos do tribunal de justiça e redes sociais para conhecer o perfil profissional dos nomeados. Dali, identificamos indícios de que pelo menos 37 assessores do total tinham outros trabalhos, profissões e as mais diversas atividades em uma situação incompatível com quem seria assessor parlamentar. Eram babás, donas de casa, homens e mulheres que trabalham com serviços gerais, aposentados, entre outros. Ou seja, tratava-se de funcionários-fantasmas.

Nesse quadro geral, também chamava a atenção que, mesmo alguns que não tinham parentes nomeados, igualmente atuavam em outros serviços e atividades de modo concomitante. O que tornava impossível que fossem realmente funcionários do clã nas Casas Legislativas. Portanto, estava desenhado que o esquema criminoso podia contemplar tanto os assessores com parentes quanto os demais.

E, enquanto levantávamos os dados dos assessores, também detalhamos os valores recebidos por eles. O grupo de 102 pessoas com laços familiares entre si, por exemplo, obteve no período em que esteve nomeado, em algum dos anos entre 1991 e 2018, um total de 80 milhões de reais, em valores atualizados pela inflação. Já entre os assessores-fantasmas os valores de salários recebidos alcançaram 36 milhões de reais corrigidos. Na outra ponta, um contraste. Uma boa parcela do grupo tinha uma vida bastante simples e com dificuldades para se sustentar. Pessoas como a fisiculturista Andrea, ex-cunhada do presidente.

A primeira reportagem saiu no domingo, 4 de agosto. Jair Bolsonaro reagiu bem à sua maneira. Primeiro, criticou: “Empreguei mesmo, e daí?”. Dois dias depois, em um discurso para empresários no 29º Congresso & ExpoFenabrave, deu um recado a um jornal do grupo Globo: “Essa imprensa que eu tanto amo. Até sobre a matéria de domingo, sobre 102 parentes, eu queria dizer que eu não sou o deus Príapo. Então, ontem assinei uma medida provisória que fala sobre publicação de balanços referentes às empresas de capitais aberto. Quantas vezes nós abrimos os jornais e temos ali balanços de grandes empresas, como a Petrobras, dezenas de páginas, bem como outras empresas não estatais, também com algumas páginas publicando seu balanço. Então, para ajudar a imprensa de papel e para facilitar a vida de quem produz também, a nossa medida provisória faz com que o empresário possa publicar seus balanços a custo zero em sites da CVM ou no Diário Oficial da União”, completou. Por fim, rindo, foi direto na ameaça: “Espero que o Valor Econômico sobreviva à medida provisória”.

Talvez Jair Bolsonaro já soubesse que naquele momento ele tinha dois filhos, e não só um, investigados por esquemas de corrupção dentro do gabinete. Esse número quase chegou a três. Eduardo Bolsonaro é aquele de quem menos se fala nas investigações, o que não significa que não tenha o que explicar. Deputado federal por São Paulo desde 2015, ele está em seu segundo mandato no Congresso. Antes de entrar para a política, foi escrivão concursado da PF, e por algum tempo, entre 2010 e 2014, chegou a trabalhar em São Paulo.

Antes disso, ainda na faculdade, ex-colegas o consideravam um aluno regular, que estudava o suficiente para passar nas provas. Um cara cordial e de bom convívio, que chegava a rir das piadas dos colegas sobre o radicalismo de seu pai — ele nem o defendia quando o chamavam de “maluco”.

Nunca se envolveu com grupos políticos de orientação conservadora ou de direita na faculdade; a política não o interessava, tanto que no início da vida adulta ele dizia explicitamente que não tinha vontade de seguir a carreira da família. Dividia o tempo entre as aulas, as ondas nos fins de semana e as ficantes. Uma ex-colega contou que ele era notado nos corredores da UFRJ, lembrava o cantor Nick, da boyband Backstreet Boys, com o cabelo loiro, liso, repartido ao meio. Visto como um playboy — era um dos poucos a ir de carro para a faculdade —, Eduardo também frequentava os eventos esportivos organizados pelos colegas do direito da UFRJ.

Com o tempo, ele mudou. Agora, quem o conheceu diz que não podia imaginar que ele trilharia o caminho do pai de maneira tão, aparentemente, convicta. Não apenas no discurso, mas também nas operações financeiras. Eduardo usou um total de 150 mil reais em dinheiro vivo para quitar duas aquisições. O primeiro caso ocorreu em 3 de fevereiro de 2011, quando ele comprou um apartamento em Copacabana. A negociação foi registrada no 24º Ofício de Notas do Rio. O imóvel, vendido por 160 mil reais, foi em parte pago com um cheque administrativo de 110 mil reais e o valor restante, como foi descrito pelo cartório na escritura, em “50 mil reais através de moeda corrente do país”. Outro padrão que Eduardo repetiu foi a imensa capacidade da família de comprar imóvel abaixo do valor de avaliação para efeitos fiscais. O apartamento tinha sido avaliado em 228,2 mil reais, à época. Com isso, Eduardo obteve um desconto de 30%. Em 2016, ao comprar outro apartamento, em Botafogo, ele voltou a quitar o imóvel com dinheiro vivo. Dessa vez, uma aquisição bastante superior. O imóvel custou 1 milhão de reais e o deputado obteve um financiamento junto à Caixa Econômica Federal de 800 mil reais para a compra. No entanto, na escritura, ficou registrado que ele já tinha dado um sinal de 81 mil reais pelo imóvel, sem esclarecer de que modo, e que estava pagando 100 mil reais no ato da escritura — “em moeda corrente do país”.

E as coincidências sobre o modo de agir de Eduardo com o pai e os irmãos não param por aí. Como o pai e os irmãos, ele empregou assessores e suas respectivas famílias: entre 2015 e 2018, Jorge Francisco e Jorge Oliveira Francisco, pai e filho, cuidavam respectivamente das chefias de gabinete de Jair e Eduardo Bolsonaro. Os gabinetes funcionavam lado a lado e, como o próprio pai costumava dizer, funcionavam como uma coisa só, os dois de modo unificado, inclusive, com os dois mandatos dos irmãos no Rio. Nesse tempo, constou como assessora de Eduardo a aposentada Marília de Oliveira Francisco — viúva de Jorge Francisco, morto em 2018, e mãe de Jorge Oliveira Francisco, que com a eleição de Bolsonaro chegou a titular da Secretaria-Geral da Presidência e depois virou ministro do TCU.

Sobre Eduardo ainda circulam histórias de que ele chegou a ter um cofre em seu gabinete na Câmara para guardar dinheiro vivo e que alguns de seus assessores também passaram a cultivar a prática da rachadinha. Gil Diniz, conhecido como Carteiro Reaça, foi seu assessor no primeiro mandato e depois eleito deputado estadual por São Paulo em 2018. No ano seguinte, um dos funcionários de Diniz o acusou de cobrar a entrega de parte do salário e chegou a denunciá-lo ao MP de São Paulo. A quebra dos sigilos bancários até mostrou saques próximos às datas de pagamento, mas o MP não encontrou provas de que o deputado saiu beneficiado e arquivou o caso mais tarde.

A história de que Eduardo também fizera uso de dinheiro vivo para a compra de imóveis chegaria até a PGR após uma reportagem que fiz com Chico Otávio no jornal O Globo, em 2020. No entanto, a cúpula do MPF, sem nenhuma diligência para apurar a origem do dinheiro, arquivou o procedimento, como boa parte das suspeitas sobre a família Bolsonaro que chegaram até Augusto Aras, procurador-geral escolhido pelo presidente para dois mandatos na liderança da instituição. Por anos, Eduardo ficaria em silêncio, sem responder aos questionamentos sobre o assunto.




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