sexta-feira, 24 de maio de 2024

O NEGÓCIO DO JAIR - A História secreta do clã Bolsonaro (gota 13)



Cristina chegou bastante agitada à casa dos pais, a poucas quadras da sua, no bairro Morada da Colina, em Resende. Ela cruzou a porta de madeira que fica no meio do muro amarelo-escuro e entrou. O casal mora ali desde 2000. Da rua pouco se vê além da entrada. No fundo do terreno ainda há outra pequena construção.

Marcelo Nogueira viu quando a advogada saiu da casa em que morava na cidade carregando uma sacola com dinheiro vivo, documentos e uma caixa de joias. Mal entrou e imediatamente começou a procurar onde esconder seus pertences. Sua urgência tinha uma razão: ela temia ser despertada nos dias seguintes do mesmo modo como acontecera com alguns de seus familiares naquela semana. Os parentes tinham virado alvo do MP. Ela, ainda não.

O CASAL HENRIQUETA E JOSÉ VALLE ainda estava deitado quando policiais e promotores chegaram na manhã de 18 de dezembro, poucos dias antes da visita de Cristina. Munidos de um mandado de busca e apreensão assinado pelo juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, o grupo entrou e passou a recolher o celular e alguns documentos do ex-sogro de Bolsonaro. Enquanto revistava os cômodos, um agente perguntou pela fisiculturista Andrea Siqueira Valle: “Vocês sabem onde está a Andrea?”.

“Não, não sabemos.”

“Não sabem onde ela mora?”

“Não.”

Os agentes se entreolharam. Era no mínimo curioso que os pais desconhecessem o endereço da filha. Os investigadores andaram pela casa, recolheram alguns objetos e partiram no meio da manhã. Deixaram uma notificação para que José Valle fosse prestar depoimento no dia seguinte, 19 de dezembro de 2019, na sede do MP em Resende.

A casa na Morada da Colina, porém, não foi a única que acordou com a batida dos policiais e promotores naquela manhã. O mesmo ocorreu em outros sete endereços na cidade. Todos aqueles que um dia constaram como assessores de Flávio. Cristina também havia acordado cedo e tentara falar com o ex-enteado várias vezes, em vão. O senador também estava vivendo um dia daqueles e sua última preocupação seria a antiga madrasta.

A operação era apenas parte de uma ação ampla do MP que ainda incluía endereços na capital carioca, onde os alvos eram Fabrício Queiroz e três familiares. O juiz também autorizou buscas em outros oito ex-assessores de Flávio,1 na casa do policial Diego Ambrósio e em sua empresa de segurança, além de uma empresa de contabilidade. Incluiu também o sócio do senador, Alexandre Santini, e a loja de chocolates dos dois. Um total de 24 endereços diferentes.

NAQUELE 12 DE DEZEMBRO DE 2019, faltavam vinte minutos para a meia-noite quando Márcia enviou uma mensagem para Queiroz. Na semana seguinte, o MP daria início a uma operação para coletar provas em diferentes endereços do policial e sua família, mas naquela noite o casal estava alheio a essa possibilidade e conversava pelo celular. Na agenda de Márcia, o número do marido estava registrado sob a rubrica “Hop”, uma saudação conhecida entre policiais. Do Rio, ela monitorava se ele estava na casa em Atibaia. Wassef costumava negar publicamente que soubesse onde Queiroz estava ou mesmo que o conhecesse. No entanto, o policial falava abertamente do advogado com a mulher. E, em um dos raros momentos de descontração, o casal riu da possibilidade de Wassef aparecer inesperadamente e flagrar Queiroz com um amigo que ele tinha feito em Atibaia, desconhecido do advogado, dentro da sua casa:

“Já chegou em casa?”

“Positivo.”

“Beleza. Não falou nada.”

“Estou vendo .”

“Também estou.”

“Eu e Daniel.”

“Se Fredy chegar de surpresa, quero ver onde você vai enfiar o Daniel kkkk kkkk.”

A conversa terminou à 1h11. Mas o criminalista estava longe: tinha marcado de conversar com o presidente Jair Bolsonaro em Brasília na noite do dia 13 de dezembro. E como o assunto não se esgotou, eles ainda se reuniram no Alvorada logo no início da manhã do dia 14, às oito horas.

Naquela semana, Wassef e Bolsonaro conversavam em Brasília. Dias depois, Márcia e a mãe de Adriano da Nóbrega se encontraram no Rio. O miliciano seguia foragido, escondido no interior da Bahia, e se comunicava por meio de Julia, sua companheira. Vera repassava os recados do filho e Márcia ainda tentava resolver o pedido de Queiroz levado por ela na reunião que tiveram na cidade Astolfo Dutra, em Minas Gerais, no início de dezembro. Queiroz continuava querendo ajuda do ex-companheiro da polícia que agora fugia das autoridades.

Depois de algumas tentativas de conciliar horários, Vera encontrou Márcia e o advogado Luis Gustavo Botto Maia na noite de 17 de dezembro de 2019. Qualquer que tenha sido o acerto entre eles, o plano não conseguiu sair da mesa porque a operação de busca e apreensão nos ex-assessores de Flávio chegou antes. Os investigadores bateram tanto à porta do apartamento das filhas quanto na antiga casa em Taquara e no mais recente apartamento da família, em um condomínio novo e de alto padrão, em Jacarepaguá. Ao encontrar quase todos os Queiroz, o conseguiu apreender os celulares de Márcia, Nathália, Evelyn e Felipe, além de cadernos, agendas e diversos documentos. A família entrou em pânico: agora os promotores iriam descobrir o lugar onde o policial se escondia.

Na casa de outros funcionários, o nervosismo não foi diferente. Luiza Souza Paes também acordou com os agentes, a despeito das tentativas da mãe, que dizia que “Lulu” não tinha nada a ver com o escândalo de Flávio e Queiroz. Os investigadores saíram carregados de papéis, e inclusive um pen drive com a contabilidade da moça, com o registro dos gastos mensais e do valor real que lhe cabia todo mês após restituir 90% do salário. Entre os documentos, havia contratos de trabalho que revelavam que todo o tempo em que esteve nomeada na Assembleia, ela atuava em outras empresas. Seu último emprego fora como analista de suprimentos na TV Globo, entre janeiro de 2017 e fevereiro de 2019. Naquele dezembro, ainda desempregada e sentindo-se perseguida pelo imbróglio do gabinete, a estatística finalmente começava a entender que todas as orientações que recebia de seu pai a punham numa posição cada vez mais perigosa. Mas Luiza ainda levaria meses para reagir.

AS PRIMEIRAS INFORMAÇÕES de que o MP estava fazendo uma operação para coletar provas sobre o caso chegaram no meu celular no início da madrugada daquele 18 de dezembro de 2019. Eu estava em Park City, nos Estados Unidos, numa rara viagem de trabalho para o caderno de turismo do jornal. Eram 6h55 da manhã quando publicamos a matéria sobre a operação no site do Globo. Pouco depois, o Brasil só falava das acusações contra o senador. Mesmo longe, comecei a tentar acessar as razões daquela ação do MP. Jornalistas de todo o país também passaram horas procurando descobrir as provas apresentadas pelos promotores para justificar a operação nas casas de um amigo do presidente e dos familiares de sua segunda mulher, Cristina, que tinham se tornado alvo de mandados de busca e apreensão.

As razões dos promotores foram descritas em 114 páginas apresentadas ao juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do TJ-RJ. Como a investigação estava sob sigilo, só se conheceram os detalhes que tinham embasado a decisão do magistrado horas depois, ainda que eles não tenham sido divulgados oficialmente.

Soube que o clima no MP estava pesado naqueles dias. Desde que o caso passara para o Gaecc, em fevereiro de 2019, a cúpula do MP tinha perdido o poder sobre a investigação, mas mantinha observação em cada movimento dos promotores da primeira instância. A decisão de pedir a quebra de sigilo tinha sido uma opção do grupo, por exemplo, algo que a PGJ não tinha feito em quase um ano no comando do caso. E assim o Gaecc foi avançando. Uma vez analisados os dados financeiros dos investigados, um caminho natural seria a coleta de provas, com a apreensão de documentos e sobretudo celulares. Assim, para não perder mais tempo, os promotores resumiram algumas das principais descobertas nas contas bancárias de Queiroz, Flávio e outros investigados.

Veio então o primeiro atrito com a cúpula do MP. Embora o procurador-geral de Justiça do Rio à época, Eduardo Gussem, não fosse mais o titular do caso na promotoria, é praxe que os promotores de primeira instância avisem o comando da instituição antes de operações de grande repercussão. Apenas um aviso, não precisam de um aval. Só que, no caso de Flávio, quando a equipe da PGJ leu o documento e viu que na lista de endereços da operação estava a loja de chocolates, a cúpula do MP tentou vetar a busca no local.

Tanto o Gaecc como o procurador-geral do MP e sua equipe trabalhavam no edifício principal da instituição, na avenida Marechal Câmara, no número 370, no centro do Rio. Assim que o recado da cúpula saiu do oitavo andar e chegou ao segundo andar, os promotores sentiram uma tentativa de interferência no caso. Avaliavam que, depois de analisar os dados da conta bancária da loja, tinham motivos de sobra para buscar computadores e livros do caixa da empresa. Temiam a destruição de documentos caso não recolhessem tudo naquele momento. Resolveram, coletivamente, bater de frente. Se a busca não ocorresse como planejado, os promotores iriam entregar os cargos. A interferência não seria aceita. Um climão se instalou e a PGJ cedeu. O grupo tocou o trabalho como havia pensado originalmente, mas manteve-se longe da imprensa.

É compreensível que não interessasse aos investigadores tornar público o conteúdo de uma investigação em andamento, mas também era razoável esperar que a sociedade, em especial a imprensa, procurasse ter um conhecimento mínimo do que justificava aquela ação tão ampla. Afinal, o principal investigado é um senador, filho do presidente da República. Isso seria notícia em qualquer lugar e parlamentares precisam prestar contas à sociedade.

Só que, naquele 18 de dezembro, não ocorreu nenhuma entrevista coletiva para explicar a operação e os jornalistas dependeram exclusivamente de suas fontes anônimas. Em nada se parecia com a atuação da Força-Tarefa da Lava Jato, no MPF, que dava ampla publicidade para suas ações, o que também era alvo de crítica. Mas, em um caso com tanto interesse público e volume tão grande de investigados, é quase impossível manter sigilo dos documentos por muito tempo. Em uma contagem conservadora, entre o Judiciário, o MP e os advogados de defesa, mais de vinte pessoas tinham acesso direto aos documentos.

Demorou algumas horas, mas ainda no mesmo dia da operação vazou o pedido de busca e apreensão feito pelo MP e a decisão de Itabaiana. Então, quando finalmente conseguimos uma cópia, foi possível ver que o documento entregue ao juiz autorizando a coleta das provas era bastante completo e extenso. O MP apontava a existência de uma organização criminosa dentro do gabinete de Flávio, dividida em seis núcleos que interagiam: uma parte envolvida com a entrega dos salários e outra com a lavagem do dinheiro. Queiroz tinha um papel central, como mostrava sua conta bancária de 2007 até 2018: ele havia recebido 483 depósitos de um grupo de treze ex-funcionários de Flávio, num total de 2,062 milhões de reais. Outro núcleo era formado por dez familiares de Cristina que sacaram 4 milhões de reais em dinheiro vivo ao longo do tempo em que essas pessoas estiveram nomeadas no gabinete do primogênito de Jair.

Outro importante núcleo era formado por Danielle Nóbrega e Raimunda Veras Magalhães, que haviam repassado 203 mil reais a Queiroz de suas contas. Mas não era tudo. A conta de Queiroz também tinha recebido 69,2 mil em transferências ou cheques de duas pizzarias de Vera e mais 91,7 mil em depósitos não identificados de uma agência na mesma rua dessas pizzarias. Dados que viriam à tona adiante.

Naquele momento, além dos dados das contas de Danielle e Vera, o MP também havia registrado ao juiz parte do conjunto de mensagens que estavam no celular da ex-mulher do miliciano — suas conversas com Queiroz combinando as entregas de contracheque, seu incômodo com a origem daquele dinheiro e outros detalhes comprometedores.

O MP acompanhava as investigações da imprensa sobre o caso; citavam-se sobretudo as reportagens que havíamos feito ao longo do ano e que ajudaram a encontrar tantos funcionários-fantasmas e a desvendar suas relações com os Bolsonaro. Os promotores ainda listaram uma série de negociações imobiliárias de Flávio que não tinham lastro em suas contas e não condiziam com seu salário, nem que a ele se somassem os ganhos de sua mulher, a dentista Fernanda Bolsonaro. Um caso era bastante curioso. Em 27 de novembro de 2012, o casal comprou duas quitinetes em Copacabana, e informou ter pago tudo com cheques que somaram 310 mil reais. Os dois imóveis pertenciam a dois americanos e quem conduziu as negociações foi Glenn Dillard, um corretor americano que já havia se envolvido em algumas transações imobiliárias nebulosas. No dia da formalização da venda, 27 de novembro de 2012, Dillard anotou em sua agenda “closing at HSBC” — “fechamento no HSBC”. Assim, o casal e Dillard se encontraram na agência no 0898 do HSBC que fica na avenida Rio Branco, número 108, no centro, a 450 metros do cartório onde as escrituras de venda foram lavradas e a poucas quadras da Alerj.

No entanto, no banco, ficaram registradas informações que nenhum deles declarou ao cartório ou ao fisco. Dillard depositou no HSBC os cheques de Flávio e Fernanda e outros 38 mil reais em dinheiro vivo. Em seguida, o corretor tentou depositar também mais 600 mil reais em espécie. Como o volume era alto, era preciso uma autorização da gerência e a contagem das notas em máquinas próprias. Flávio nunca registrou esses valores nos documentos. Dillard voltou aos Estados Unidos e seu paradeiro é desconhecido.

Na manhã da operação de busca, diferentes fontes admitiram que o documento pedindo busca e apreensão nos endereços de Queiroz e de todos os demais soava como a prévia de uma denúncia. Era a sensação dos Queiroz, no Rio. Durante horas, eles viveram sob o temor de que o MP também tivesse pedido a prisão dele. O policial estava em São Paulo enquanto o caos se instalava no Rio de Janeiro, e tanto a família como seu advogado tinham dificuldade em se comunicar com ele.

Enquanto isso, Frederick Wassef estava em Brasília e fora ao Palácio do Planalto tanto no dia da operação do MP como nos dias seguintes. Ele ainda tentou um habeas corpus no STF para, pela sexta vez, tentar barrar o avanço das investigações. Já no Rio, Klein estava farto das intervenções de Wassef, que atropelavam a sua atuação local. Ações que atrapalhavam tanto a defesa que ele fazia de Queiroz quanto a própria defesa de Flávio Bolsonaro. O último episódio, e mais importante, tinha ocorrido no fim de setembro de 2019.

QUEM CONVIVE COM WASSEF sabe que ele não pergunta a opinião de ninguém e faz o que bem entende. Era importante acabar com o caso, mas também que as teses jurídicas dele fossem as vitoriosas para esse objetivo. Se outro advogado sugerisse algo, mesmo que mais útil, não importava. Tanto que atrapalhou uma ação que poderia beneficiar Flávio e teria impedido o MP de coletar provas na busca e apreensão em dezembro de 2019. Em 17 de maio daquele ano, pouco depois da descoberta da autorização da quebra de sigilos, o advogado de Queiroz entrou com um habeas corpus contra a decisão.

O defensor queria anular a autorização dada na primeira instância e, com isso, impedir o acesso aos dados. Em síntese, o recurso de Paulo Klein alegava que o juiz não explicara corretamente os motivos pelos quais concordava com o pedido do MP, sustentava que faltaria fundamentação para a decisão. A defesa de Flávio, liderada por Wassef, engatou um pedido semelhante três dias depois com argumentação bastante próxima. Mas não pressionou pelo julgamento.

Ao autorizar a quebra de sigilo, o juiz Flávio Itabaiana escreveu apenas dois parágrafos para justificar o sinal verde ao acesso de dados financeiros. A decisão sucinta é extremamente comum no Judiciário, mas pode ser criticada em Cortes Superiores e avaliada como um erro formal. Em casos de grande repercussão, envolvendo figuras públicas, a lei é esmiuçada por experientes advogados e a garantia de direitos dos investigados é mais assegurada.

Quem atua no meio sabe disso e, por essa razão, havia algum tempo que se temia, até dentro da promotoria, que a defesa conseguisse reverter essa decisão e anular a quebra de sigilo. Assim, o MP fez novo pedido de quebra de sigilos, incluindo mais um conjunto de funcionários que ficara de fora do primeiro lote. Ao analisar o documento, o juiz escreveu uma nova decisão mais ampla e a conectou à primeira. Tentava evitar problemas no futuro, um “erro formal”. Mesmo assim, nos corredores do TJ-RJ, também se criticava o fato de o MP não ter justificado separadamente o motivo pelo qual precisava da quebra de sigilo de cada um dos nomes da lista.

As defesas observaram o movimento e enxergaram a oportunidade de anular a autorização para as quebras na segunda instância do TJ-RJ. Por sorteio, o desembargador Antônio Amado foi designado para a análise dos habeas corpus. E nos corredores próximos à 3ª Câmara Criminal, responsável pelo caso, comentava-se que o magistrado tinha avaliado muito mal a decisão de Itabaiana. No entanto, na segunda instância, três magistrados iriam analisar os pedidos de defesa e acusação. O julgamento sobre a validade da quebra foi inicialmente marcado para 8 de outubro de 2019.

E se de um lado a defesa de Queiroz atuava, de outro, o advogado Victor Granado passou a fazer uma campanha junto a Flávio Bolsonaro para ele ouvir uma outra tese de defesa, elaborada pelas advogadas cariocas Luciana Pires e Juliana Bierrenbach. A ideia era questionar a competência do juiz Flávio Itabaiana e defender que Flávio, ao se tornar senador, não tinha perdido o direito de ter seus processos analisados pelo Órgão Especial do TJ, a instância formada por 25 desembargadores que julgam os deputados estaduais. Seria um modo de tirá-lo das mãos do juiz com fama de durão e que já havia quebrado seu sigilo.

Flávio gostou da ideia e deu sinal positivo para as advogadas apresentarem esse recurso ao TJ do Rio, o que ocorreu em setembro de 2019. Dias depois, elas obtiveram um parecer favorável da procuradora Soraya Gaya, que atua na segunda instância, justamente na 3ª Câmara Criminal, onde o caso seria discutido. Em outras palavras, uma integrante do MP concordava com a defesa de Flávio, discordando de seus colegas promotores do Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção. Coincidência ou não, a procuradora tampouco via problema em demonstrar seu alinhamento às ideias, posições e políticas do presidente Jair Bolsonaro. Por exemplo, em julho de 2019, em meio às discussões sobre o avanço do desmatamento no Brasil, ela compartilhou um vídeo no Facebook de um canal chamado Folha do Brasil, no qual Bolsonaro questionava os dados sobre o desflorestamento divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Gaya ainda escreveu: “Gostei das respostas dele, bem objetivo”.

Wassef, porém, não levava fé na tese das advogadas e, ainda, ao tomar conhecimento de que o TJ-RJ ia julgar a validade da quebra de sigilo, ele resolveu impedir a análise do pedido de Klein. Apostava que sairia vencedor no STF com a argumentação sobre o Coaf, o que faria o caso de Flávio ser arquivado, e não queria dividir os méritos. Ele então fez uma petição ao STF para paralisar não apenas a investigação (que já estava parada esperando o julgamento sobre o Coaf), mas também o julgamento do TJ do recurso de Klein para anular o acesso às quebras de sigilo. E Wassef conseguiu, após uma reclamação, uma liminar do ministro Gilmar Mendes, em 30 de setembro de 2019. Depois, Mendes também se tornou o relator do caso de Flávio Bolsonaro no Supremo, apesar de meses antes Marco Aurélio Mello ter sido sorteado para analisar outro habeas corpus do caso.

Assim, Wassef impediu o julgamento no TJ-RJ e a análise da legalidade das quebras. Mais que isso, ele ainda convenceu o clã a fazer Flávio desistir de invocar o direito ao foro especial. Se, com Flávio, Wassef criou uma forte relação, com Jair ela era ainda mais estreita. O advogado o acompanhou nos difíceis meses do início do governo e guardou alguns de seus segredos mais íntimos. Ambos se compreendem, dividem valores, ideias, e até acreditam nas mesmas teorias conspiratórias — das fraudes nas urnas eletrônicas à alegação de um mandante no atentado desferido por Adélio. O pai mandou e Flávio acatou, mesmo que todos os outros advogados torcessem o nariz.

Mas a aposta de Wassef de pôr todas as fichas no julgamento do STF deu errado. Em dezembro de 2019, eles perderam no julgamento sobre o compartilhamento de dados do Coaf e Wassef não conseguiu trancar o caso.

Quando a operação de busca ocorreu, em 18 de dezembro de 2019, justificada a partir dos dados da quebra de sigilo e todas as demais provas, os advogados do escritório de Klein, que defendia Queiroz, avaliaram que a situação havia se agravado e que as ações de Wassef em Brasília lhes tiravam o controle necessário para trabalhar no caso. E assim Klein foi convencido a sair. Um dia depois da operação, o criminalista divulgou uma nota anunciando que estava deixando a defesa de Queiroz por “motivos de foro íntimo”. Ele ainda afirmou que acreditava na inocência de seu excliente, mas nunca falou publicamente do assunto. Nos bastidores, especulou-se também que Queiroz não teria condições de arcar com seus honorários.

A questão financeira do policial estava tão indefinida que, mesmo preocupado com uma denúncia, ele ficaria os seis meses seguintes sem advogado. Só voltaria a ter um defensor em junho de 2020, quando o MP apareceu para prendê-lo. E quem ia passar a defender o ex-assessor de Flávio Bolsonaro era alguém que já tinha representado o miliciano Adriano da Nóbrega, o criminalista Paulo Emílio Catta Preta.

Conheci o advogado em setembro de 2019, algum tempo depois de descobrir nas redes sociais uma rara foto pública de Wassef em um momento de descontração. Na imagem, sem data específica, ele posava numa festa ao lado da empresária Maria Cristina Boner e de outras duas pessoas, uma das quais era Catta Preta. Minutos depois, localizei registros de que o criminalista havia atuado em processos da ex-companheira de Wassef e entendi que os dois se conheciam havia algum tempo. Alguns cliques a mais e também identifiquei que Catta Preta era o mais novo defensor do miliciano

Adriano da Nóbrega.

Coincidências. Foragido, Nóbrega contratou um defensor que atuava sobretudo em Brasília e não no Rio de Janeiro, onde ele era acusado por diferentes crimes em Rio das Pedras. Publiquei uma nota no site da Época e alguns dias depois Catta Preta me recebeu em seu escritório no Lago Sul, em Brasília, para explicar que fora contatado por meio de advogados de Nóbrega no Rio e que, independentemente das informações que apontavam o envolvimento de seu cliente em assassinatos e extorsões, ele era inocente. Além disso, Wassef não teria nenhuma relação com sua entrada na defesa de Nóbrega. Outra coisa que me chamou a atenção naquela semana foi uma entrevista de Wassef para a jornalista Andréia Sadi. Na ocasião, entre outros comentários, ele defendeu Nóbrega de maneira veemente, dizendo que ele nunca havia sido condenado por nenhum crime.

Os meses correram e, depois de passar todo o ano de 2019 fugindo da polícia fluminense, o ex-capitão do Bope foi localizado em Esplanada, no interior da Bahia, no dia 9 de fevereiro de 2020, e acabou morto durante uma nebulosa operação policial. Logo que chegou a confirmação de sua morte, a família do miliciano suspeitou da versão divulgada. Para suas irmãs, ele teria sido sumariamente executado.

A Polícia Civil do Rio tinha grampeado boa parte da família de Nóbrega para investigar seu paradeiro. Assim, foi possível ouvir Daniela desabafando com uma tia e relatando que havia uma ordem para a execução do irmão: “Ele já sabia da ordem que saiu para que ele fosse um arquivo morto. Ele era um arquivo morto para todo mundo. Já tinham dado cargos comissionados no Planalto pela vida dele, já. Fizeram uma reunião com o nome do Adriano no Planalto. Entendeu, tia? Ele já sabia disso, já. Foi um complô mesmo”.2 Tatiana Nóbrega, outra irmã, citou uma teoria distinta. Em uma ligação, ela falou que a determinação não vinha do Planalto, mas do então governador do Rio, Wilson Witzel. “Foi esse safado do Witzel, que disse que se pegasse era para matar. Foi ele”, afirmou Tatiana. Mas ninguém saberia dessas conversas por mais de um ano. E, sem ter ideia do grampo, quem também saiu denunciando uma suposta execução de Nóbrega naqueles dias foi o clã Bolsonaro. Jair chegou a dizer que tomaria “providências” para que uma “perícia independente” fosse feita. Só não explicou quais.

Com todas essas especulações, coube ao advogado Paulo Emílio Catta Preta ajudar a família de Nóbrega a pedir novas perícias sobre o corpo do miliciano e também questionar a versão dos policiais da operação. Na manhã em que Nóbrega morreu, conversei com o advogado por telefone e ele me disse que o cliente não queria se entregar porque acreditava que seria assassinado: “Ele me disse assim: ‘Doutor, ninguém está aqui para me prender. Eles querem me matar. Se me prenderem, vão matar na prisão. Tenho certeza que vão me matar por queima de arquivo’. Palavras dele”.

A conclusão da Polícia Civil da Bahia foi que Nóbrega morreu em uma troca de tiros. Dois laudos de necropsia produzidos tanto na Bahia quanto no Rio de Janeiro trouxeram informações que contradizem essa versão. Não havia vestígio de pólvora nas mãos dele, apesar dos relatos dos policiais de que o miliciano teria atirado sete vezes, além de outras controvérsias sem esclarecimento. O caso segue em investigação.

Quem tinha interesse na morte de Nóbrega? A resposta que ouvi em diversas conversas de bastidor é que muita gente preferia se livrar do ex-capitão do Bope a conviver com o medo de que ele falasse o que sabia sobre diferentes assuntos e pessoas no Rio de Janeiro. Conhecendo parte das informações que Nóbrega tinha, Julia Lotufo, sua viúva, precisou de apoio e abrigo nos dias seguintes à morte do companheiro. Ela deixou o sítio onde ele se escondia na Bahia horas antes da invasão da polícia e seguiu numa Hilux branca para o Rio de Janeiro. No entanto, por questões de segurança, decidiu deixar o estado quando soube da morte de Nóbrega.

Cerca de dez dias depois da morte de Adriano, Julia foi a Brasília se reunir com Catta Preta para discutir ações. Ela queria provar que o marido fora assassinado a mando do bicheiro Bernardo Bello em um complô com as autoridades fluminenses. Na capital federal, ela se dirigiu para o escritório do criminalista no Lago Sul. Pouco depois de sua chegada, Wassef apareceu no local e pediu para conversar com Julia. Ela concordou e deixou que ele explicasse o motivo. O advogado do clã Bolsonaro queria que ela procurasse o MP do Rio de Janeiro e denunciasse a relação do então governador Wilson Witzel com Bello. Julia sentiu a tentativa de uma tutela e negou o pedido. Não queria viver como Queiroz, que seguia como refém do Anjo. Em certo momento, Wassef chegou a dizer a ela que Julia não amava Adriano realmente. Ela ficou furiosa e os dois discutiram. Ao final, o advogado dos Bolsonaro tentou contemporizar, mas fez comentários constrangedores sobre sua aparência. Julia não quis mais ouvir. Catta Preta chegou a se desculpar com a cliente pelo episódio. Mas ela deixou o escritório e resolveu tocar a vida longe do clã Bolsonaro.

Alguns meses se passaram e, em 18 de junho de 2020, Catta Preta assumiu a defesa de Queiroz. Ao saber disso, perguntei a ele se havia relação com seu trabalho no caso de Nóbrega. Os familiares de Queiroz o procuraram, ele disse: “Posso supor que por eles terem visto a minha atuação no caso do Adriano. Eles eram amigos. Talvez isso tenha sido um dos motivos de eles terem me procurado”.

A OPERAÇÃO DO MP assustou a família Siqueira Valle. Se por meses os familiares de Cristina aceitaram suas escusas pouco claras de que o caso “não iria dar em nada”, o choque de ter a casa revistada acendeu um alerta. Eles então passaram a se reunir na casa de José e Henriqueta para discutir um jeito de se defender. O primeiro desses encontros foi na sexta-feira, 20 de dezembro de 2019, dois dias depois das buscas dos promotores.

Na ocasião, Cristina chegou acompanhada do advogado Magnum Cardoso, que deu uma primeira e breve orientação: todos deveriam ficar em silêncio até que fosse possível obter uma cópia dos autos da investigação. Só então se pensaria numa estratégia. Na cabeça de Cristina, porém, quem tinha que arrumar um jeito de resolver tudo aquilo eram Flávio e Jair. Ela contava com a impunidade, fosse por aqueles episódios terem ocorrido havia tanto tempo, fosse pelo que ouvia dos emissários do clã.

No entanto, ela estava um pouco mais atenta desde outubro de 2019, quando o MP também havia batido à sua porta, mas de uma maneira mais sutil, intimando-a a depor sobre o período em que chefiara o gabinete de Carlos, nos idos de 2001 a 2008. Os promotores estavam investigando Carlos por crimes parecidos aos de Flávio. Cristina procurou Magnum Cardoso, seu colega na Câmara de Vereadores de Resende, e ele fez o básico. Disse ao que ela não podia comparecer naquela data e pediu aos promotores que providenciassem um modo de Cristina prestar esclarecimentos em Resende e não na capital. Ganhou tempo.

Um primo dela, convocado pelo MP naqueles mesmos dias, agiu diferente. Resolveu ir ao gabinete de Carlos na Câmara Municipal. Eram 15h05 do dia 30 de outubro de 2019 quando as câmeras da portaria do Palácio Pedro Ernesto registraram a entrada do advogado Guilherme de Siqueira Hudson e de seu pai, o coronel aposentado Guilherme dos Santos Hudson. Guilherme, o filho, constou como assessor-chefe de Carlos durante dez anos — de 2008 a 2018. Nunca teve crachá, tampouco tinha cópias de e-mails trocados com Carlos ou qualquer prova do trabalho que teria feito. O advogado possuía, havia anos, residência fixa em Resende, onde mantinha um escritório de advocacia. Mesmo assim, recebia um salário médio corrigido que, junto com os benefícios, chegava a 24,4 mil reais. Com isso, ele ganhou um total de 2,8 milhões de reais ao longo do período.

Já o coronel, antigo colega de Jair no Exército, costumava se apresentar como funcionário dos Bolsonaro, apesar de ter aparecido na lista de assessores de Flávio por apenas dois meses em 2018. Com o tempo, seria possível saber que ele trabalhava, sim, mas seu papel era recolher os salários da família de Cristina.

Os Hudson foram ao gabinete de Carlos Bolsonaro e lá ficaram por quase três horas. O vereador estava na Casa, porém nunca quis explicar aquele encontro. Mas, na semana seguinte, Guilherme, o filho, foi ao MP, onde tentou se explicar dizendo que no início da assessoria a Carlos teria morado um tempo no Rio, depois havia atuado à distância e entregava seu trabalho a Carlos em pen drives. Falou muito e disse pouco.

Com a busca e apreensão nas residências de vários dos Siqueira Valle, e até na casa dos Hudson, a tensão se instalou e eles passaram a cobrar providências de Cristina. No TJ, o advogado Magnum Cardoso não fez nenhum movimento de defesa dos Siqueira Valle. Não reclamou das buscas nem apresentou recursos questionando qualquer ação do MP. A todos os questionamentos da imprensa, ele respondia que só poderia explicar os detalhes dentro do processo porque o caso corria em segredo de justiça.

Fora do tribunal, o advogado agiu conforme queria Cristina. Depois de muita insistência dela, usando Jair Renan de intermediário, Wassef aceitou um encontro com Cardoso. O defensor da segunda mulher de Bolsonaro então foi à capital paulista para discutir a situação de Cristina e seus parentes. Cardoso levava o recado: ela queria que a defesa de Flávio resolvesse a situação de todos eles, ou seja, encontrasse alguma maneira de livrar todos das acusações. Também queria que os Bolsonaro custeassem os gastos com os advogados, tanto dela como do restante da família. Mas, pelo menos nesse momento, o pedido não foi atendido.

Em meados de fevereiro de 2020, Cardoso teve outra reunião com os Siqueira Valle, dessa vez muito mais tensa e difícil. A questão dos honorários dele, sobretudo, precisava ser resolvida. Assim, em uma noite de sexta-feira, pouco antes do Carnaval, todos se encontraram na casa do patriarca. Reunidas na sala, umas dez pessoas: José e Henriqueta, Cristina e diversos dos investigados nos casos de Flávio e Carlos. Esse episódio me foi relatado por duas pessoas que pediram sigilo e por Marcelo Nogueira, que ainda trabalhava para Cristina.

A reunião foi requisitada pelo advogado para acertar os honorários: cada um deveria pagar mil reais pelo trabalho já realizado nos dois meses anteriores e outros quinhentos reais mensalmente, a partir do mês seguinte. Eram taxas fixas para cada um. O criminalista explicou que o caso era complexo e tomaria muito tempo. Apenas a cópia da investigação, custeada do próprio bolso, já tinha sido um bom dinheiro. O clima na sala esquentou. Henriqueta virou-se, irada, para Cristina e disse:3 “Não vou pagar e quem vai pagar é você”. E Cristina respondeu: “Cada um se vira”. A mãe seguiu reclamando, até que a advogada resolveu desviar o assunto: “Mãe, depois a gente vê isso”.

Na sequência, uma das tias de Cristina quis entender o pior cenário: “E se der tudo errado? O que acontece?”, perguntou Marina, irmã de Henriqueta e investigada por ter constado como assessora de Flávio. Em uma eventual condenação, todos eles poderiam ter que devolver o dinheiro, com correção dos valores, disse Cardoso. Os nervos explodiram. Alguns levantaram e ameaçaram ir embora, outros choraram.

Desde o fim de 2018, Cristina sabia que a imprensa podia voltar a bater à sua porta. Mas acreditava na impunidade, pensava que aqueles fatos estavam esquecidos e que era remota a chance de os promotores chegarem ao ponto de fazer uma operação na casa de seus pais. Quando isso se tornou realidade, em dezembro de 2019, ela entendeu que precisava se movimentar. De algum jeito, era como andar em círculos. O capítulo da história dela com Bolsonaro nunca havia de fato acabado e ela nem fazia questão disso.

Embora seu casamento com Jair tivesse terminado doze anos antes, em 2007, a vida de Cristina e a de seus parentes ficaram marcadas para sempre por aquele relacionamento. A partir de 2009, já morando na Europa, Cristina recomeçou a vida. Depois do casamento com o construtor norueguês Jan Raymond Hansen, ela — que precisou aprender um pouco de norueguês para obter a cidadania daquele país — também fez alguns negócios por lá. Comprou um carro e duas casas na pequena Halden, cidade que fica a cerca de uma hora de Oslo, capital da Noruega. Abriu uma pequena empresa e foi tocando a vida.

Mas o tempo passou e as diferenças culturais do estilo de vida na Noruega pesaram. A língua, o clima frio e a reserva europeia se somaram à saudade dos filhos. Ela voltou ao Rio em 2014 e foi morar em Resende. Arrumou um emprego como assessora de um vereador local e foi se restabelecendo. Jair Renan seguia morando no Rio aos cuidados de Bolsonaro, mas agora convivia mais com a mãe, ainda que os conflitos entre ela e o ex-marido continuassem.

E não era só a relação de Bolsonaro e Cristina que vivia por um fio. Michelle, a nova mulher do capitão, e Jair Renan não conseguiram compartilhar o mesmo teto por muito tempo. As brigas eram tantas que Bolsonaro decidiu alugar para o filho um apartamento num prédio vizinho ao Vivendas da Barra, com direito a empregadas que iam cozinhar e limpar. “Não faltava nada para ele, a não ser a família”, relembra Nogueira.

Cristina sabia das brigas entre a madrasta e o enteado e cobrava o ex-marido. Depois que se reestabeleceu no Brasil, ela decidiu comprar um terreno perto dos parentes. Outro pagamento em espécie. No terreno, que custou 125 mil reais, ela construiu uma casa de dois pisos, quatro quartos e piscina. Assim Jair Renan voltou a viver com a mãe.

Cristina notou que os ventos no país tinham mudado e, se antes o ex-marido era visto como parlamentar inexpressivo, as coisas pareciam diferentes à medida que as eleições de 2018 se aproximavam. Cansada de ser coadjuvante na assessoria de diferentes parlamentares, ela resolveu tentar uma vaga na Câmara dos Deputados surfando na popularidade de Bolsonaro. Na ocasião, assim como Jair fez por anos, ela também ocultou patrimônio na declaração de bens ao TSE.

Ao longo dos meses que antecederam a eleição, ela fez tudo que estava a seu alcance para se viabilizar. Aproximou-se do clã por meio de vídeos e imagens nas redes sociais. Apresentou-se como Cristina Bolsonaro, sobrenome que nunca teve formalmente. Fez campanha na rua e defendeu o ex-marido dos protestos do #EleNão convocados por diferentes movimentos feministas no país. Circulou no grupo político que serviu de palanque para Bolsonaro no Rio e que tinha como candidato o ex-juiz Wilson Witzel. As notícias sobre a separação dela e Bolsonaro lhe valeram a pecha de ex-mulher ressentida, coisa que ela mesma criou para si ao dizer que havia inventado todas as acusações contra o ex. Cristina teve 4,5 mil votos, esteve longe de conquistar uma cadeira na Câmara.

Fora da Câmara dos Deputados, ela usou o período pós-campanha para transitar no entorno de Witzel, já eleito governador. Esteve em jantares e reuniões da equipe e até participou de encontros que contavam com a presença do vice-presidente eleito, Antônio Hamilton Mourão, e do general Augusto Heleno, cotado para ser um dos ministros do novo governo. Transitou para conseguir um cargo qualquer para o filho Ivan Mendes na Secretaria de Estado de Esporte e Lazer do governo fluminense.

Só que ela também acompanhou o momento em que o caldo começou a entornar, a partir do imbróglio Queiroz, uma figura que ela conhecia havia muitos anos. Quando surgiram as notícias de que sua família estava no meio da investigação, ela, a princípio, não se preocupou. Costumava dizer para amigos e no trabalho, na Câmara de Resende, que tudo havia prescrito. Com o avanço do caso, tinha claro que era Jair quem precisava se mexer, e havia meses ela enviava cobranças, especialmente por meio de Jair Renan, filho do casal.

Mas a espiral de acontecimentos ainda era bastante contrária aos movimentos da defesa de Flávio e, nos bastidores, os advogados intensificaram a disputa por espaço. Em fevereiro de 2020, foi retomado no TJ-RJ o julgamento sobre a legalidade da quebra de sigilo do primogênito de Bolsonaro, Queiroz e os outros investigados. A análise que Wassef impediu em outubro de 2019 após obter uma liminar do STF. Quando o tribunal analisou, quatro meses depois, o relator Antônio Amado até votou para anular a decisão de Itabaiana, mas o timing era outro, e Amado acabou vencido pelos votos das colegas, as desembargadoras Suimei Meira Cavalieri e Mônica Tolledo. Restou à defesa de Flávio reclamar ao STJ. E, para irritação de Wassef, as advogadas Luciana Pires e Juliana Bierrenbach retomaram a estratégia do foro especial e decidiram centrar a artilharia no juiz Flávio Itabaiana. Na defesa, o raciocínio era um só. Era necessário tirar o futuro do senador das mãos do xará que ficava na 27ª Vara Criminal do TJ-RJ.

NA FAMÍLIA ITABAIANA, a magistratura passou de geração em geração desde os anos 1920. Antes de Flávio Itabaiana Nicolau vestir a toga, em 1995, o pai, o avô, o bisavô e o trisavô dele foram juízes. Itabaiana se formou em direito pela Universidade Candido Mendes, em 1989, e seis anos depois foi o segundo colocado no concurso público para juiz no TJ do Rio. Ele bem que tentou escapar da sina da família, tendo se graduado primeiramente como engenheiro elétrico, chegando a fazer uma especialização em engenharia econômica. Mas o apelo dos tribunais soou mais forte.

A primeira vez que ouvi o nome dele foi quando acompanhei as investigações a respeito de 23 manifestantes envolvidos nos protestos entre 2013 e 2014. Um caso bem complexo e com uma investigação um tanto frágil que deu muita notoriedade a Itabaiana. Lembro que me chamou bastante a atenção um trecho nos autos do processo que fazia referências a “matérias jornalísticas” retiradas da internet e que apontavam a possibilidade de Elisa Pinto Sanzi, a Sininho, ter feito “cursos de ativismo político e agitação com formação em ações de guerrilha e terror urbano em Cuba e na Rússia”. Eles chegaram a ser presos preventivamente, mas depois conseguiram responder às acusações em liberdade. Mesmo assim, em meio a uma imensa papelada, em 2018 Itabaiana condenou Sininho e outros 22 manifestantes, que ainda estão recorrendo.

As decisões de Itabaiana no caso de Sininho reiteraram sua fama de “mão pesada” — ele profere sentenças duras na 27ª Vara Criminal do TJ-RJ há dezessete anos. Há quem diga que é de família. Nos anos 1950, o juiz Décio Itabaiana, primo da mãe de Flávio, invadiu a casa de um foragido para prendê-lo devido à inércia da polícia.

Em uma rara entrevista, Itabaiana disse à revista Época, em 2020, que o processo mais importante de sua carreira foi um caso no qual uma aposentada filmou por dias seguidos o tráfico de drogas na Ladeira dos Tabajaras, em Copacabana. Em 2005, uma testemunha, de nome fictício Dona Vitória, gravou 22 fitas com 33 horas mostrando o envolvimento de moradores da comunidade e policiais no comércio de drogas. O caso foi revelado pelo jornal Extra e, depois, o processo chegou a ter mais de 8 mil páginas. Terminou em cinco meses, com dezessete pessoas condenadas.

No entanto, talvez nenhum outro caso tenha dado a Itabaiana tanta dor de cabeça quanto a investigação sobre Flávio Bolsonaro. Em 15 de abril de 2019 ele foi sorteado para analisar o pedido de quebra de sigilo do senador, de Queiroz e de outros investigados. Duas semanas antes, sua filha, a advogada Natália Nicolau, havia sido nomeada para um cargo na Casa Civil do governo estadual do Rio, comandado por Wilson Witzel. Rodrigo Cerqueira, genro de Itabaiana, também tinha sido nomeado no governo do Rio, ainda em janeiro de 2019. Ex-juiz, Witzel foi eleito fazendo dobradinha com Bolsonaro em 2018 e com a forte campanha de Flávio. Até então, nenhum problema.

Mas os meses se passaram e, no segundo semestre de 2019, Witzel começou a mencionar abertamente a possibilidade de disputar a presidência em 2022. Viu o caso de Flávio Bolsonaro desgastar Jair nas redes sociais e na opinião pública de modo geral, e passou a sonhar com a possibilidade. Trocava mensagens com contatos no WhatsApp enviando figurinhas com uma imagem sua usando a faixa presidencial. Tudo isso chegou aos ouvidos de Jair Bolsonaro, que passou a vê-lo como um adversário. Mas a guerra entre os dois foi deflagrada depois de um depoimento do porteiro do condomínio de Bolsonaro, que disse que um dos assassinos de Marielle pediu para ir à casa de número 58, a residência de Jair. No entanto, a gravação do interfone mostrava outra coisa. Élcio Queiroz pediu para ir à casa 65 e quem autorizou a entrada foi Ronnie Lessa, ambos acusados pelo homicídio da vereadora.

Devido à polêmica instalada, inclusive na imprensa, o presidente passou a culpar Witzel pelo episódio do porteiro e depois misturou o discurso de conspiração com o caso da rachadinha. Nas teorias que o clã passou a espalhar, a filha de Itabaiana, servidora do governo Witzel, estaria conspirando junto ao governador do Rio, tramando situações contra o clã. Inclusive, a investigação sobre Flávio. Alguma narrativa precisava colar, já que as explicações objetivas sobre a entrega de salários e funcionários-fantasmas, bem como o uso de dinheiro vivo não vinham. O silêncio público soava como admissão de culpa.

Então, pouco depois da operação de busca e apreensão nos Queiroz e Siqueira Valle, em dezembro de 2019, o presidente disse à imprensa, com ironia: “Vocês já perguntaram para o governador Witzel por que a filha do juiz Itabaiana está empregada com ele? Já perguntaram? Pelo que parece, não vou atestar aqui, é fantasma”. Flávio Bolsonaro fez o mesmo dias depois. “Parece que a boquinha é boa”, criticou, ao falar que o MP tinha que investigar a situação.

No TJ, Itabaiana começou a receber visitas surpresas da corregedoria. A defesa de Flávio também o reportou ao Conselho Nacional de Justiça devido à nomeação da filha e do genro. Corregedor do CNJ, o ministro Humberto Martins abriu o procedimento contra o juiz. Meses depois, Martins passou a ser cotado para uma vaga no STF.

Mas, apesar de todas as pressões, a mão pesada de Itabaiana atingiu Flávio Bolsonaro e Fabrício Queiroz uma última vez.

QUINTA-FEIRA, 18 de junho de 2020. Eram três horas da manhã quando vinte policiais do Grupo Armado de Repressão a Roubos e Assaltos (Garra) deixaram a capital paulista rumo a Campinas para uma operação que ia cumprir mandados de prisão e coleta de provas. Era começo do inverno e as ruas andavam ainda menos cheias que o usual porque o Brasil estava no meio da primeira onda de casos da pandemia de covid-19.

Os agentes deixaram São Paulo sem informação sobre o alvo da operação. Uma hora depois, já em Campinas, receberam instruções específicas: deveriam se dirigir a Atibaia, no interior do estado, para prender Fabrício Queiroz. Mas nem os titulares da investigação no Rio de Janeiro tinham certeza se ele realmente estaria no local indicado no mandado de prisão, pois as informações de que dispunham eram de dezembro de 2019.

Coordenados pelo promotor José Báglio, os agentes do MP-SP fizeram um reconhecimento prévio no endereço da operação, e durante a campana identificaram Queiroz. Na véspera, informaram aos colegas fluminenses que o local era quente, o alvo seguia no endereço. Um tanto céticos, os investigadores do Rio nem sequer enviaram alguém deles para acompanhar a prisão.

Assim, às seis da manhã, após as instruções da promotoria, os agentes chegaram a uma chácara no bairro Jardim dos Pinheiros, à rua das Filgueiras, no número 644. Na frente do endereço, uma placa com a inscrição “Wassef & Sonnenburg Sociedade de Advogados”, o nome do escritório de Frederick Wassef. Por isso, para prevenir questionamentos, representantes da OAB foram chamados para acompanhar toda a ação dos policiais.

Na tentativa de evitar o uso da força, os agentes tocaram a campainha algumas vezes. Nenhuma resposta. Depois de alguns minutos, decidiram entrar. Cortaram uma corrente no portão e forçaram a porta da frente da casa. Ao entrar no imóvel, os policiais se depararam com um assustado Fabrício Queiroz ainda deitado na cama.

Talvez por estar sonolento, Queiroz tentou enrolar os agentes quando eles perguntaram seu nome. Mas os investigadores disseram que sabiam quem ele era, então ele admitiu ser quem de fato era: Fabrício Queiroz. A ficha foi caindo aos poucos. Enquanto os policiais revistavam a casa, ele vestiu uma camisa vermelha e uma calça de moletom, e calçou um chinelo branco. Sentou numa cadeira junto à mesa de jantar. Cruzou os braços e apoiou as costas em um colchão que estava atrás, encostado à parede. Sério, entregou os telefones e esperou que terminassem a busca por documentos.

Tudo parecia improvisado. Nos quartos, apenas camas e armários. Na cozinha, o básico: geladeira, fogão e utensílios domésticos. Nada lembrava um escritório de advocacia, segundo a análise do próprio promotor José Báglio.

As horas passaram e quase no meio da manhã Queiroz saiu escoltado. Vestia jeans, camisa azul-marinho e casaco grosso marrom-escuro. Boné e máscara. Resignado, trocou algumas palavras com os agentes. Disse que já havia efetuado muitas prisões na vida, mas jamais imaginou passar por aquilo. Também perguntava sobre a mulher e as filhas, sua maior preocupação. Tomou conhecimento de que havia uma ordem de prisão contra Márcia e ficou nervoso, pois soube que ela ainda não tinha sido localizada.

De Atibaia, ele seguiu num comboio para a capital, onde passou por exames no Instituto Médico Legal e pelos trâmites burocráticos no DHPP — Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa. Nesse momento lhe permitiram ligar para a família, e ele pediu a Nathália que acionasse um advogado. Na sequência, foi conduzido ao Aeroporto do Campo de Marte, na Zona Norte. Eram dez da manhã quando um helicóptero decolou. Depois de cerca de duas horas de voo, Queiroz pousou no Aeroporto de Jacarepaguá e foi recepcionado pela coordenadora do Gaecc, a promotora Patrícia Villela. Ali, na pista, ele recebeu voz de prisão. No MP a cena causou incômodo e foi considerada uma exposição desnecessária.

Queiroz foi levado para novos exames no IML do Rio e, depois, para Bangu 8. Na ordem de prisão, havia instruções para não deixa-lo na unidade prisional destinada a policiais, pois acreditava-se que ele podia tentar obstruir o caso mesmo dentro da cadeia. Restou então enviá-lo a Bangu 8 junto aos presos da Lava Jato, onde ele foi trancado numa cela para cumprir isolamento de catorze dias, segundo o protocolo de prevenção à covid-19. No local, tornou-se vizinho de cela do ex-governador Sérgio Cabral. Chegou em silêncio e se manteve discreto na maior parte do tempo em que esteve preso. Uma das poucas interações ocorreu quando pediu emprestado um livro de autoajuda para Wilson Carlos, ex-secretário de Sérgio Cabral e operador do esquema de propinas do governo.

Por pior que fosse, estar atrás das grades o poupava de enfrentar a imprensa e a opinião pública diariamente. Jair Bolsonaro e Frederick Wassef, no entanto, não tinham como fugir dos holofotes e microfones — eram procurados o tempo todo, eram inúmeras as cobranças sobre como Queiroz havia se escondido no sítio do advogado.

A prisão de Queiroz aprofundou a crise em torno do caso e do próprio Bolsonaro, que já vivia um calvário havia dois meses, quando o ex-juiz Sergio Moro deixou a pasta da Justiça acusando-o de tentar interferir na PF. Moro saiu atirando, e pouco depois o empresário Paulo Marinho concedeu uma entrevista à jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S. Paulo, revelando que ainda durante a campanha o clã já sabia do relatório sobre Queiroz. Ambas as acusações desgastaram a PF e geraram investigações que envolviam Jair, Flávio, Queiroz, Victor Granado e outros.

Mas a prisão de Queiroz atingiu Wassef em cheio e deixou sua situação insustentável junto ao clã. Uma das tentativas mais esdrúxulas de justificar que não sabia do paradeiro de Queiroz ocorreu em uma entrevista para a jornalista Andréia Sadi, da Globo: “O senhor emprestou a casa para ele?”, perguntou Andréia.

“Não, porque eu não falei com o Queiroz, não tenho o telefone do Queiroz, eu nunca troquei mensagem com o Queiroz. Então, o que eu vou dizer é o seguinte: sobre a pauta Queiroz, eu só vou poder falar até o ponto em que eu posso falar por uma questão de sigilo […]. Não dá para falar tudo isso agora.”

“O Queiroz pulou o muro? Ele apareceu voando na casa do senhor? Ou foi levado por alguém?”

“Não vou poder avançar ainda hoje, mas eu vou falar tudo com muito prazer, porque a verdade é uma coisa que você vai gostar de ouvir. Fica tranquila, tá?” Depois disso, ele passou dias fugindo da imprensa. Queria ganhar tempo e articular uma narrativa para abafar a crise instalada pela prisão de Queiroz. Nos bastidores, porém, a avaliação de que ele precisava se afastar do clã era unânime. Quanto mais tempo permanecia no caso, mais a situação de Flávio se agravava e, por tabela, o problema de Jair Bolsonaro.

Mesmo relutante, Wassef teve que pedir para sair.

FAZIA ALGUNS MESES que a advogada Luciana Pires se sentia segura sobre a vitória que podia obter em 25 de junho daquele ano. Era a data marcada para a análise do habeas corpus que ia discutir a situação do foro do senador. Ela e Flávio Bolsonaro haviam se cruzado na Alerj quando ela assessorava a ex-deputada Cidinha Campos. O tempo passou e ela atuou em outra área do interesse dos Bolsonaro: a defesa de militares acusados de atentados, assassinatos e desaparecimentos durante a ditadura militar.

A partir de 2014, diversos militares foram processados pelo Grupo de Justiça de Transição do Ministério Público Federal no Rio. Luciana Pires, junto com Rodrigo Roca, seu irmão e então sócio, atuaram pelos réus. Naquela época, o MPF argumentava que crimes como sequestro, desaparecimento, estupro, execuções não estavam cobertos pela Lei de Anistia de 1979. São crimes contra a humanidade, não passíveis de anistia em todos os países que se submeteram ao Tribunal Penal Internacional em Haia, criado em 2002. Na lista de clientes da advogada esteve o general Nilton Cerqueira, implicado no atentado do Riocentro, em 1981, quando era comandante-geral da PM do Rio e teria mandado suspender o policiamento na área do centro de convenções quando um grupo de militares pretendia plantar bombas no local.4 Do rol de clientes de Rodrigo Roca constava o general reformado José Nogueira Belham, acusado do assassinato e ocultação do cadáver do deputado federal Rubens Paiva em janeiro de 1971.

Jair Bolsonaro tem a ver com os dois militares. Cerqueira foi um de seus principais apoiadores durante a campanha para vereador em 1988. Depois, foi secretário de Segurança do Rio quando Bolsonaro sofreu um assalto em 1995, e comandou operações contra o tráfico na Zona Norte em função do crime. Quanto a Belham, sua mulher constou como assessora de Bolsonaro durante o ano de 2003.

Mas, fora da agenda ideológica bolsonarista, os criminalistas também atuaram nos casos da Lava Jato. Roca advogou para o ex-governador Sérgio Cabral, deixando o caso quando o político decidiu fazer delação premiada. Pires representava o ex-presidente da Fecomércio-RJ Orlando Diniz. Todos esses detalhes e diversos outros foram discutidos no Planalto por Bolsonaro e seus assessores mais próximos, enquanto outro grupo tentava convencer Wassef a renunciar à defesa de Flávio. O problema é que havia algum tempo ele achava que a advogada atuava para tirá-lo do caso. Sua principal queixa contra ela nem era pública na ocasião: ela representava Orlando Diniz no acordo de colaboração premiada que o empresário estava fazendo, e alguns dos principais tópicos dessa delação eram supostas negociações espúrias com diferentes advogados, um dos quais era Wassef.5 Daí a relutância dele em ceder o espaço a Luciana Pires. Wassef deixou a defesa fazendo o substabelecimento, termo técnico para a substituição, para Rodrigo Roca, que ele ignorava ser irmão de Pires. Junto aos dois se somou Juliana Bierrenbach, outra sócia.

No domingo à noite, 21 de junho, ele anunciou a saída e no dia seguinte a postura da defesa de Flávio era outra. A primeira mudança foi apresentar um pedido para prestar um depoimento junto ao MP no caso. Uma reviravolta, já que a estratégia de Wassef era paralisar o caso e evitar que Flávio, Queiroz ou os demais explicassem qualquer coisa. Nos bastidores, os novos advogados temiam que o MP fizesse um pedido de prisão contra Flávio.

O jogo virou de vez na quinta-feira, 25 de junho de 2020.

As previsões de Luciana Pires se concretizaram. Em um momento crítico da pandemia, a 3ª Câmara Criminal do TJ se reuniu virtualmente e votou o recurso de Flávio pelo direito ao foro. O caso tramitava em sigilo e a imprensa não pôde acompanhar, só pôde saber do resultado. Como a procuradora Soraya Gaya já havia se manifestado, e era a favor da tese da defesa, uma situação inusitada ocorreu. O MP escalou outra procuradora para defender os argumentos dos promotores do Gaecc. Eles ressaltavam que em 2018 o STF tinha julgado que ao fim do mandato também acabava o foro, e que a garantia de foro junto ao Órgão Especial contrariava a jurisprudência de diversos casos no Supremo.

Por dois votos a um, os desembargadores decidiram conceder o pedido da defesa e afastaram Flávio Itabaiana da titularidade do julgamento do caso. Por pouco não anularam todas as provas coletadas por ordem do juiz, conforme a defesa pedia. Horas depois começaram a circular nas redes sociais e em grupos de WhatsApp fotos antigas de Luciana Pires ao lado do desembargador Paulo Rangel em um momento de confraternização. Rangel, autor do livro Direito processual penal, em que criticava o foro privilegiado, votou a favor de Flávio no julgamento.

Esse dia marcou o início de uma série de derrotas do MP no caso. Incluindo até um tropeço nas próprias pernas que teria graves consequências.

A DERROTA NA 3ª Câmara Criminal e a troca de juiz não representavam em si um obstáculo à apresentação da denúncia. A cúpula do MP — em especial o procurador-geral de Justiça do Rio, José Eduardo Gussem — teria que assumir a titularidade da investigação, mas com um trâmite interno ele permitiu a colaboração dos colegas do Gaecc. Assim, o MP iria dar sequência ao que faltava para concluir o documento da denúncia ao mesmo tempo que se prepararia para lutar contra a decisão do TJ que concedeu foro especial a Flávio.

Na ocasião do julgamento, os promotores que investigavam Flávio divulgaram nota informando que “há pelo menos duas décadas os deputados estaduais não são mais julgados originariamente pelos Tribunais de Justiça depois de cessado o exercício da função”. Não é incomum que o Judiciário se deixe influenciar pelas circunstâncias, mas, mesmo naquela época, a configuração do STF fazia crer que seria muito difícil para Flávio que a Suprema Corte mantivesse aquela decisão, uma vez que já tinha decidido a questão do foro em 2018, pouco tempo antes. Alterar de novo a jurisprudência do STF devido ao caso de Flávio era algo bastante improvável em meados de 2020. Então havia esperança de vitória para o MP. Assim, ficou combinado que a cúpula do MP fluminense faria uma reclamação ao STF para questionar se o TJ–RJ tinha descumprido a jurisprudência da Suprema Corte. Outro contra-ataque seria um recurso na própria sentença da 3ª Câmara para que a discussão fosse também levada ao STJ. O Gaecc ficou responsável pelo último documento.

No Judiciário, para recorrer da decisão é preciso aguardar que o voto dos magistrados seja publicado no que se chama acórdão, quando então as partes, defesa e acusação, são informadas. É uma espécie de formalização do que foi dito no julgamento. A partir daí, cada parte toma conhecimento e inicia o prazo para apresentar recurso: quinze dias. Tudo começa a contar depois que a intimação é aberta e “toma-se ciência”.

O acórdão foi disponibilizado em 2 de julho de 2020. Mesmo sem intenção de recorrer, já que foi a favor da tese da defesa, a procuradora Soraya Gaya abriu a intimação no mesmo dia. Tomou ciência pelo MP. Do outro lado da promotoria, quem pretendia combater a decisão, o Gaecc, acessou o sistema no dia 3 de julho. Essa diferença foi crucial.

Nos processos, a contagem começa no dia seguinte ao momento em que as partes tomam ciência do acórdão. A exceção ocorre nas vésperas de final de semana e nos feriados. No caso, como os integrantes do Gaecc acessaram na sexta-feira, acreditava-se que o prazo começaria a valer na segunda-feira seguinte, 6 de julho, e terminaria no dia 20. Mas como a procuradora Soraya Gaya acessou no dia 2 de julho, o prazo final para a apresentação do recurso passou a ser 17 de julho.

Só que os promotores de primeira instância veem o sistema de um modo diferente dos procuradores, que atuam na segunda instância. Então o Gaecc não viu que Gaya havia acessado. Essa confusão burocrática teve um resultado desastroso para os investigadores de Flávio. A partir dessa sucessão de equívocos, ocorreu o erro mais básico que pode acontecer no Judiciário: o MP perdeu o prazo do recurso. Só depois da apresentação do recurso, já com prazo expirado, é que todos souberam do ocorrido.

De Brasília, mais especificamente do Superior Tribunal de Justiça, vieram outros sinais de que os ventos estavam mudando a favor do clã Bolsonaro. Uma semana antes de o MP perder o prazo, o STJ aliviou a barra da família Queiroz. No plantão do Judiciário, o ministro João Otávio de Noronha autorizou que o ex-policial fosse para a prisão domiciliar. O mesmo benefício foi concedido a Márcia, apesar de na ocasião, 9 de julho, ela ainda estar foragida. Fazia quarenta dias que a mulher do policial não era localizada. Apesar disso, Márcia conseguiu a prisão domiciliar do STJ sem declarar onde estava nem justificar por que fugira da ordem de prisão. Ela reapareceu na manhã do sábado, 11 de julho, já no apartamento da família na Taquara. Flávio Bolsonaro respirou aliviado, pois circulavam boatos e notinhas na imprensa de que ela estaria sondando advogados sobre a possibilidade de fazer uma delação. Começava a segunda fase da tentativa de melar o caso.

No círculo mais próximo de Flávio, avaliava-se que não era possível rebater cada prova. Era preciso matar o caso processualmente, como se diz no linguajar jurídico. Apontar fragilidades nos meios como a investigação obteve provas, anular o uso de documentos. Juliana Bierrenbach acreditava ter encontrado uma maneira. Embalada em acusações de integrantes da Receita Federal do Rio, de que existiriam acessos ilegais aos sistemas da Receita, ela defendeu junto à sócia que Flávio também podia ter sido vítima de um relatório “encomendado”. As duas marcaram uma reunião com Jair Bolsonaro, e mais o ministro Augusto Heleno, do Gabinete de Segurança Institucional, e o diretor da Agência Brasileira de Inteligência, Alexandre Ramagem, na qual pediram ajuda para encontrar provas de que os dados de Flávio haviam sido acessados ilegalmente. Na visão delas, o assunto integrava questões de segurança nacional, pois o senador é filho do presidente.

O encontro, em 25 de agosto de 2020, nem constou da agenda presidencial. Só veio à tona porque foi descoberto pelo jornalista Guilherme Amado. Dali em diante, as duas iriam protocolar diversas petições para identificar os servidores que acessaram os dados de Flávio. Posteriormente, essa consulta ainda ia se ampliar para quase todos os principais integrantes do clã Bolsonaro. Nada de extraordinário seria descoberto e as suspeitas de violação de sigilo ilegalmente não seriam comprovadas.

A situação criada, porém, teria como consequência uma série de mudanças em cargos importantes na Receita Federal. Cristiano Paes Leme Botelho, ex-chefe do Escritório da Corregedoria da Receita Federal no Rio de Janeiro, perdeu o cargo em dezembro de 2020, após treze anos na função em diferentes governos.6 Mais tarde, em dezembro de 2021, José Barroso Tostes Neto perdeu o posto de secretário-especial da Receita Federal.7 Nos bastidores, a saída foi explicada devido à resistência dele em nomear um indicado por Flávio Bolsonaro para a Corregedoria do órgão.




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