segunda-feira, 17 de junho de 2024

A ELITE DO ATRASO - da escravidão à lava jato ( gota 04 - "d" )



A classe média e a esfera pública colonizada pelo dinheiro

O que tem de ser explicado aqui é como a elite do dinheiro, que detém o capital econômico e, por conta disso, manda na economia, passa a mandar de modo indireto também no mundo social e político pela construção, colonizada pelo dinheiro, da opinião pública. A elite econômica precisa travestir seus interesses de proprietário em suposto interesse geral para garantir o controle da reprodução social, mantendo seus privilégios. Apesar de controlar os meios de produção material e também os meios de produção simbólicos, como jornais e editoras, a tarefa, ainda assim, não é fácil. O dinheiro quer se reproduzir sempre aumentando sua quantidade, o que significa, quase sempre, que outros estão perdendo nessa conta. O dinheiro, na forma da acumulação de capital, precisa ser legitimado politicamente e moralmente para conseguir sua reprodução ampliada ad infinitum. Como isso se dá em uma sociedade, como a democrática moderna, que diz de si mesmo que representa o interesse geral?

Esse tema é central para que compreendamos a perpetuação de relações de dominação social e econômica no tempo. Isso significa, também, que, além de mercado e Estado, temos que considerar e compreender a ação de uma outra instituição fundamental que nasce – do mesmo modo que mercado competitivo e Estado centralizado – apenas com o mundo moderno: a esfera pública. Sem compreendermos como essa esfera social funciona, não compreendemos como a elite do dinheiro se apropria simbolicamente, já como efeito de ideias que se tornam depois naturais como andar e respirar, das classes médias em formação no nosso país.

A classe média sempre foi, desde meados do século passado, no Brasil, a tropa de choque dos ricos e endinheirados. É preciso compreender, no entanto, como isso se tornou possível. Como é possível se apropriar dos desejos, ambiguidades e insegurança da classe média para mantê-la servil, mesmo contra seus melhores interesses, e deixar as classes populares para a polícia truculenta? O uso sistemático da inteligência nacional e da imprensa que a veicula em proveito dos interesses da pequena elite endinheirada é a resposta.

Para entendermos como isso se deu, teremos, no entanto, que compreender a singularidade da esfera pública em relação ao Estado e ao mercado. Afinal, é lá, na esfera pública, que a classe média é colonizada pelos interesses do dinheiro. O domínio da elite sobre a classe média é simbólico e pressupõe convencimento. O domínio sobre as classes populares baseia-se, ao contrário, mais na repressão e na violência material. Como se dá essa dominação pelo convencimento? Quem melhor esclareceu essa questão e percebeu sua importância para as formas modernas de aprendizado coletivo foi o filósofo e sociólogo alemão Jürgen Habermas. Note o leitor que, em vez de recorrer a estoques culturais ou supostas heranças malditas, como faz o culturalismo racista entre nós, temos que analisar, mais uma vez, a presença ou ausência de aprendizados coletivos para compreender nossa singularidade como sociedade.

Para Habermas, a esfera pública não se confunde com a interpretação clássica da sociedade civil como “reino de necessidades” oposto ao Estado. Esfera pública passa a designar, a partir da sua obra seminal para o pensamento deste século, um terceiro momento fundamental das sociedades modernas, o qual não se confunde nem com o mercado nem com o Estado. O tema da esfera pública já é o tema central da tese de livre-docência de Habermas, Mudança estrutural da esfera pública,72 datada de 1962. O interesse primário de Habermas nesse livro, onde já encontramos em germe todos os temas que iriam concentrar os seus esforços nas décadas seguintes, é marcadamente genealógico e histórico e nos ajuda a compreender o que está em jogo na esfera pública e no debate público.

Ele se interessa, primeiramente, em perceber a gênese histórica da categoria de “público”. Na Idade Média, a categoria de “público” assume a forma de mera representatividade pública. Representatividade aqui possui um sentido literal, de teatralização, visto que não se trata de uma representação de autoridade derivada da soberania popular, mas sim de uma representação do poder de fato perante o povo. A importância das insígnias, do gestuário, das regras de etiqueta aponta, precisamente, para esse estado de coisas.

O sentido moderno de público começa a desenvolver-se em combinação com fatores materiais e simbólicos novos, que se constituem no alvorecer da modernidade. Desde o início, a categoria de público se mostra intimamente ligada à categoria de privado. É apenas a partir da delimitação de uma esfera privada inviolável do indivíduo que temos a possibilidade de perceber a novidade do sentido moderno de público. Uma primeira forma de privacidade com implicações públicas óbvias dá-se a partir da privatização da fé. A liberdade de confissão, duramente conquistada em guerras sangrentas, aponta para uma primeira forma de liberdade privada. Esse é o primeiro passo para a constituição daquilo que Habermas irá chamar de esfera pública, ou seja, de uma esfera composta de sujeitos privados com opinião própria, o que assegura a possibilidade da contraposição coletiva a decisões discricionárias do poder público.

Desse modo, liberdade pública é indissociável da liberdade privada. O que Habermas chama de esfera pública nasce da redefinição dos lugares do público e do privado, formando, o Estado e a pequena família burguesa, as duas instituições fundamentais de cada um desses respectivos espaços. Além da liberdade de confissão como antecedente principal da liberdade de consciência tipicamente burguesa, temos fatores materiais importantes em jogo. Acima de tudo, a passagem do capitalismo comercial para o capitalismo industrial engendra toda uma infraestrutura de novas formas de transporte e de troca de informações. Na esteira da troca de mercadorias, desenvolve-se, concomitantemente, um aumento correspondente de troca de informações, de início dirigidas a um público restrito de comerciantes com notícias de interesse profissional.

Paralelamente, desenvolve-se, também como consequência da passagem de um capitalismo comercial, limitado localmente, em favor de grandes empreendimentos nacionais e internacionais, o Estado permanente, baseado em instituições burocráticas e militares, assim como a partir de um eficiente sistema de impostos. Todo esse conjunto de novas instituições era indispensável ao estímulo e à proteção das atividades econômicas nas esferas interna e externa.

Uma esfera pública de conteúdo não estatal nasce, no entanto, apenas a partir da mudança da função da imprensa desde uma atividade meramente informativa e manipulativa do que interessava ao Estado tornar público, em favor da concepção de um veículo, de um “fórum” apartado do Estado. É esse fórum de pessoas com capacidade de julgar que permite a formação de uma opinião pública crítica que introduz, pela primeira vez, a questão da legitimidade discursiva da política. O que é público, de interesse geral e para o bem de todos, precisa, a partir de agora, provar-se argumentativamente enquanto tal. De início, os burocratas do incipiente aparelho estatal, profissionais liberais, pastores, professores e comerciantes formam a base social dessa nova esfera. A esfera pública burguesa que se constitui aqui deve ser entendida, antes de tudo, como a reunião de pessoas privadas num ambiente público.

Essa esfera é regulamentada pela autoridade, mas é dirigida diretamente contra a autoridade política, na medida em que o princípio de controle discursivo e argumentativo que o público burguês contrapõe à dominação pretende modificá-la enquanto tal. Em termos históricos, a entrada em cena de uma esfera pública política coincide com a passagem do Estado absoluto em direção ao despotismo esclarecido. Já a evidente contradição dos termos que compõem essa forma de exercício do poder político evidencia o encontro de uma forma de dominação tradicional monárquica e despótica, a qual, no entanto, pela primeira vez, tem que prestar contas de seu governo, ou seja, tem que se esclarecer perante um público.

Para Habermas, a demanda política por uma maior reflexividade na formação da opinião coletiva tem como pressuposto experiências privadas que se originam na esfera íntima da pequena família. Esse é o lugar onde se origina historicamente a privacidade no sentido moderno do espaço de exercício de uma interioridade livre e satisfeita. O status do homem privado, enquanto dono de mercadorias e pai de família, se completa com a compreensão política que a esfera pública burguesa faz de si mesma. Antes de assumir funções políticas, no entanto, o processo de autocompreensão das pessoas privadas adquire a forma literária de trocas de experiências sobre o exercício da nova forma de privacidade. Essa esfera pública literária não é originariamente burguesa, mas sim uma herança da aristocracia cortesã transmitida à vanguarda da burguesia que mantinha contato com o “mundo elegante”.

O crescimento das cidades vai possibilitar, a partir da proliferação da cultura dos cafés, dos salões e dos clubes literários, a institucionalização da esfera pública. Os herdeiros burgueses do humanismo aristocrático, no entanto, logo passam a conferir caráter crítico às suas conversações sociais, quebrando a ponte entre as duas formas de esfera pública e engendrando um elemento historicamente novo: a esfera pública burguesa. A partir de 1750, também as novas formas literárias dominantes assumem características especificamente burguesas, como o drama burguês e o romance psicológico, ou seja, adquirem formas que propiciam tematizar o modo especificamente burguês da nova subjetividade que se constitui nessa época. A passagem da carta ao romance psicológico, como a forma paradigmática de problematização das questões existenciais e subjetivas, já aponta para o maior grau de abstração e de elaboração da reflexividade que se institucionaliza.

A pequena família burguesa que se cria representa uma forma de comunidade familiar distinta tanto da família aristocrática quanto da família camponesa. A essa sociabilidade original corresponde uma nova forma de arquitetura das casas, garantindo um espaço de privacidade para cada um dos integrantes da família, assim como formas de convívio que se destinam a exercitar o novo tipo de individualidade que se constitui.

A esfera pública literária dos indivíduos privados mantém já uma conexão profunda com a esfera pública política. A subjetividade literariamente trabalhada do burguês já é desde sempre pública (a passagem da carta ao romance, como notamos acima, já o demonstra), funcionando como uma espécie de autofalante das necessidades e experiências mais íntimas. Por outro lado, e até de forma ainda mais fundamental, o público literário implica uma igualdade das pessoas cultas com opinião, igualdade essa indispensável para a legitimação do processo básico da esfera pública: a discussão baseada em argumentos como aspecto decisivo que subordina a questão do status social relativo dos participantes.

É a generalização dessa nova atitude em relação ao poder que irá tornar irresistível também, primeiro na classe burguesa e depois na sociedade como um todo, a própria ideia de soberania popular como única legitimação possível do poder político. Afinal, quando se abrem espaços de reflexividade em uma dimensão da vida, ela não fica resignada e quieta nesse espaço restrito. Ela tende a se expandir para todas as dimensões da vida social.

Desde essa época, podemos perceber como a atenção do jovem Habermas já se dirige ao estudo daquela inovação social que será para ele a característica essencial do mundo moderno e a cuja análise de pressupostos dedicará toda sua vida de pesquisador: a descoberta de uma força interna, capaz de criar obrigações recíprocas entre os seres humanos, à comunicação e ao diálogo, que exige a desconsideração de fatores sociais externos como poder, riqueza e prestígio. Essa força interna é o caráter vinculante que nasce do melhor argumento, ou, como prefere Habermas, já nesse escrito da juventude antecipando a problemática moral do Habermas maduro, a força interna daquela racionalidade moralmente pretensiosa que busca vincular a verdade e a justiça.

O ponto aqui não é, como críticas superficiais de críticos superficiais procuravam fazer infantilizando o argumento habermasiano, negar o poder da violência e do dinheiro em nome do melhor argumento. O que é dito por Habermas a partir de sua análise da esfera pública é que, além do poder e do dinheiro e das formas de violência física e simbólica, as quais continuam decisivas em qualquer caso concreto, o exercício do poder político deve, também, se legitimar discursivamente. A novidade aqui é que o jogo da dominação social se torna mais complexo com a entrada de um elemento historicamente novo. Dependendo da conjuntura histórica, inclusive, essa nova instância de poder pode ser decisiva como a história recente comprova sobejamente. Tanto o direito à igualdade dos trabalhadores quanto o direito à igualdade das mulheres foram conquistados, também, não apenas pela violência, mas por processos de convencimento na esfera pública que lograram penetrar e convencer partes significativas da sociedade.

Em boa parte essa dialética do aprendizado social pelo convencimento já está prefigurada pelo ideário da sociedade burguesa de ser a “melhor sociedade” já existente, a sociedade da liberdade, da igualdade e da fraternidade. Como percebia o jovem Marx, esse fato abre a possibilidade da crítica social na medida em que permite a comparação da sociedade real com aquilo que ela diz e promete ser. Há sempre, agora, a possibilidade de desmascarar a mentira e a fraude antes santificada e sagrada. É esse o vínculo interno que se cria historicamente entre verdade e justiça.

Já o século XIX, e mais ainda o século XX por oposição ao século XVIII, testemunha uma modificação estrutural da esfera pública: a ampliação do público que exige a consideração de seus interesses. As massas menos letradas do proletariado emergente que passam a pressionar pela efetivação de seus interesses de classe quebram por dentro a unidade da esfera pública burguesa. Com isso, a esfera pública deixa de ser um espaço de convencimento entre pessoas com interesse semelhante para ser, também, um espaço de pressão das classes que haviam sido alijadas do processo de esclarecimento.

Duas respostas clássicas foram formuladas para reagir a esse desafio. Por um lado, temos a posição socialista onde a teoria de Karl Marx logrou formular a visão mais coerente e consequente. Para Marx, todas as instituições burguesas, inclusive a esfera pública, fundamentam-se no encobrimento manipulativo da dissidência básica da sociedade de classes em explorados e exploradores. Aos primeiros cabe a tarefa de transformar radicalmente a infraestrutura social que perpetua desigualdades. A socialização dos meios de produção encontra nessa formulação sua razão de ser.

A outra reação clássica ao desafio da ascensão do proletariado industrial opera-se no contexto do liberalismo clássico. Com a resignação perante a impossibilidade de resolução racional dos conflitos que agora dilaceram a esfera pública, desejam os liberais uma defesa contra uma eventual maioria na opinião pública suspeita, agora, de possuir um núcleo não racional. A noção de populismo como mecanismo de deslegitimação dos interesses populares, sob a forma de uma reação liberal à entrada das massas trabalhadoras na política, tem aqui seu nascimento histórico. Como os interesses das massas são diferentes, a forma de deslegitimá-los é negar-lhe racionalidade. Foi o que nosso liberalismo fez e faz o tempo todo entre nós.

Com a despedida do conceito de crítica restrita a uma mesma classe com interesses parecidos, a crítica agora tende a ser taxada de radical por tocar na questão sagrada da propriedade privada. A soberania popular tem que ser restrita e só vota quem tem dinheiro ou propriedades, ou se constroem pesos e contrapesos dentro da estrutura de poder para que se evite o cesarismo na política no contexto de um homem um voto. A resposta liberal é reacionária no sentido de meramente reativo à tomada do espaço público pelas massas despossuídas.

O advento do sufrágio universal e da educação para todos abre a possibilidade real de uma esfera pública mais inclusiva. No entanto, novos e mais poderosos inimigos ainda estão à espreita. As esferas estatais, públicas, e privadas, do mercado, passam a formar um único contexto funcional, a partir da privatização do Estado pelo capitalismo organizado (ou seja, a real privatização do Estado, em relação a qual nossos teóricos do patrimonialismo pretendem nos cegar, ao chamar atenção à privatização por indivíduos), processo esse acelerado pela concentração de capitais.

A passagem da lógica da produção capitalista das mercadorias materiais para as mercadorias simbólicas é o momento decisivo da decadência da reflexão racional como recurso societário. O capitalismo organizado expande-se da esfera de produção de bens materiais para a produção industrial de bens simbólicos, constituindo aquilo que T. W. Adorno havia chamado de “indústria cultural”.73 Para Adorno, a indústria cultural é a aplicação consequente da lógica capitalista da maximização do lucro à esfera dos bens simbólicos. Ou seja, além de ser a forma dominante de produzir mercadorias materiais, como salsichas e roupas, o capitalismo também passa a ser a forma dominante da produção de mercadorias simbólicas, como a informação e o conhecimento. Assim, se na esfera dos bens materiais uma salsicha mantém seu valor de uso enquanto alimento, seja em contexto pré-capitalista, seja ela produzida sob condições capitalistas de produção, o mesmo não se dá na esfera dos bens simbólicos.

A lógica da maximização do lucro, que envolve a preponderância do valor de troca de uma mercadoria, ou seja, seu preço final, em relação a seu valor de uso, ou seja, a utilidade desta para seu comprador, aplicada à produção de bens simbólicos desvirtua o próprio valor de uso do bem cultural, que é possibilitar o desenvolvimento da capacidade reflexiva. Desse modo, a mercadoria da indústria cultural precisa abrir mão da complexidade inerente aos objetos culturais e produzir uma homogeneização psíquica “por baixo”, de modo a poder garantir a maior vendagem possível de mercadorias simbólicas ao maior número de pessoas. Embora se possa criticar a ideia da indústria cultural adorniana se pensada em termos absolutos, como tendência fundamental da sociedade moderna, hoje em dia mais que nunca ela é irretocável.

A esmagadora maioria dos produtos da indústria cultural e da mídia não se dirige ao conhecimento, que transforma e emancipa o sujeito, mas sim ao reconhecimento de estereótipos, clichês e chavões, que reproduzem o mundo e os interesses que estão ganhando. O clichê político dos jornalões e da TV brasileira, em época recente, de chamar de “chavismo” e “bolivarianismo” qualquer crítica a si mesmo ajuda em que a reflexão? As novelas, filmes de grande bilheteria, livros de autoajuda e best-sellers que repetem as mesmas fórmulas gastas e repetitivas de provocar seu público ajudam em que a reflexão verdadeira?

O público, deixado indefeso, é presa fácil de todo tipo de manipulação. A ameaça aqui é uma invasão dos imperativos da esfera econômica sobre a esfera pública, transformando sua racionalidade específica em mero bem de consumo econômico74 ou de manipulação política. Como vimos acima, sua racionalidade específica tem a ver com uma discussão de argumentos que se opõem e que almejam produzir convencimento refletido. É apenas a exposição a argumentos opostos que pode permitir ao sujeito construir sua própria opinião. Ao se expor às razões conflitantes, o sujeito é instigado a perceber sua própria inclinação e quais argumentos lhe parecem mais justos e verdadeiros. É esse convencimento refletido que pode produzir aproximações sucessivas ao objetivo de unir verdade com justiça. Esse é o objetivo declarado da esfera pública, tanto que a manipulação da grande imprensa entre nós não pode se assumir enquanto tal. Ela tem que fazer de conta que é plural e argumentativa. Essa é sua legitimação explícita.

Com a passagem histórica de uma esfera pública de pessoas privadas para uma esfera pública mediada pelo mercado, temos a ambiguidade típica do mercado de bens simbólicos no capitalismo: como conciliar o acesso democrático à informação com os interesses privatistas da maximização do lucro e da expropriação do trabalho coletivo? Por conta disso, a mudança estrutural da esfera pública nos séculos XIX e XX está intimamente relacionada com a mudança estrutural da sua instituição mais importante: a imprensa.

Originariamente, a imprensa foi a parteira da esfera pública ao mediar o diálogo entre os indivíduos e fazer o papel de autofalante de um público pensante que discutia suas experiências privadas e públicas num fórum compartilhado coletivamente. Os jornais e semanários agiam ainda em primeiro plano de acordo com o interesse do debate público de questões existenciais, morais e políticas. A passagem da imprensa de opinião para a imprensa como negócio se dá a partir da necessidade de garantir o aumento e aperfeiçoamento da técnica produtiva e organizacional.

A consequente necessidade de assegurar a rentabilidade do novo capital empregado acarreta a subordinação da política empresarial às necessidades da reprodução ampliada do capital empregado na empresa. O imperativo de assegurar o acesso a cada vez mais leitores transforma o interesse comercial em fator principal da mudança de uma imprensa pedagógica, interessada em esclarecer seu público, em meramente manipulativa. Balzac, no seu clássico As ilusões perdidas, analisa precisamente a entronização da imprensa manipulativa e venal na França de sua época. Esse é o núcleo duro da questão que nos interessa aqui. Se toda a informação disponível para a sociedade moderna tende agora a ser mediada, de cima para baixo, por empresas capitalistas, não necessariamente interessadas no aprendizado de seu público cativo, mas em aumentar seus lucros, como garantir o acesso plural da informação?

A resposta a essa pergunta é percebida por Habermas como apenas possível por meio de uma democratização institucional. Instituições políticas, como os partidos e as associações de classe, devem propiciar um espaço comunicativo para uma crítica pública reflexiva. Para Habermas, no entanto, seria impossível pretender-se voltar a uma esfera pública do tipo que vigorava na segunda metade do século XVIII. A crítica racional e pública da dominação política não pode ser restabelecida, em meio aos interesses privatistas organizados, segundo o modelo das pessoas privadas reunidas num público. A estratégia defensiva deve dirigir-se a uma espécie de controle recíproco de instituições rivais que lutam por espaço em meio à luta pelo poder social, econômico e político.

Foi precisamente esse contexto que construiu o pano de fundo para uma reformulação profunda da imprensa europeia – especialmente do meio mais poderoso da imprensa, que é a televisão – no pós-guerra a partir de 1945. O objetivo aqui foi criar um contrapeso à ameaça da captura dos interesses da sociedade inteira em um debate aberto e plural por interesses econômicos de ocasião representados nas empresas capitalistas da grande imprensa. Esse objetivo foi precisamente o norte para o modelo público de imprensa televisiva, muito mais importante que qualquer outro meio de difusão, seguido por diversos países europeus no pós-guerra. A televisão europeia e, em pequena parte, até a norte-americana, é marcada pelo advento da televisão pública.

A televisão pública não se confunde com televisão estatal, embora a maioria das televisões públicas europeias tenha surgido como televisões estatais. Considerações como as que preocupavam Habermas, como a independência do conteúdo televisivo de interesses políticos e econômicos de ocasião, foram fundamentais para que as televisões estatais pudessem se transformar em televisões públicas. Essa passagem se deu em praticamente todos os países de democracia mais sólida como França, Alemanha, Inglaterra, Itália, Espanha e Portugal. O fortalecimento da democracia e da cidadania, no pós-guerra, impôs o controle público, a participação da sociedade na gestão das emissoras e a criação de conselhos de representantes de partidos, associações e igrejas diversas.

As televisões públicas quase sempre possuem estrutura semelhante a grêmios ou conselhos, que controlam a empresa e o conteúdo de sua programação. Esses conselhos, e isso é essencial para seu caráter público, independentemente do Estado e do mercado, refletem uma pluralidade social onde todo tipo de interesse significativo, patronal e dos trabalhadores é representado. Esses interesses são defendidos por múltiplos sindicatos, partidos, representantes religiosos, representados na direção da televisão pública. Essa é a origem de televisões públicas como a BBC inglesa, a TVE espanhola, a France Televisón, a RAI italiana, a RTP de Portugal, a ARD e a ZDF, alemãs, entre outras. Os EUA e o Canadá também têm TVs públicas, a PPS e a CSA, respectivamente.

Esse, infelizmente, não foi o desenvolvimento da imprensa e da televisão no Brasil moderno. Aqui, o interesse unicamente comercial de grandes conglomerados na área da comunicação foi a regra. Todo o poder de fogo, de pressão e de ameaça e chantagem do poder político foi utilizado para destruir no nascedouro, por exemplo, uma televisão pública entre nós. Presa unicamente do interesse comercial, sema concorrência de televisões públicas como no contexto europeu, esse tipo de imprensa, em vez de ser instância de mediação da esfera pública, assegurando a circulação dos argumentos em disputa, pode então transformar-se em arregimentadora e instrumento de interesses privados que são expostos como se fossem públicos. A Rede Globo vicejou nesse contexto.

Desse modo, o círculo discursivo se quebra no seu primeiro e principal elo da transmissão pública dos argumentos. O público de pessoas privadas perde a possibilidade de construir uma opinião autônoma e independente a partir da pluralidade dos argumentos em debate. Os telejornais e programas de debate da TV Globo e outros canais com pessoas que refletem a mesma opinião criam uma fraude evidente. A semelhança de opiniões visa criar, em um público sem padrão de comparação, um arremedo de debate. Abre-se caminho para todo tipo de manipulação midiática como a que ocorreu recentemente entre nós.

A colonização da esfera pública pelo dinheiro evita aquele tipo de racionalidade que permite a união entre verdade e justiça. Só a pluralidade de informações e de opiniões assegura aproximações sucessivas à verdade. E apenas esse esforço de aproximações sucessivas para restaurar a verdade factual permite escolha autônoma, ou seja, moralidade refletida como um atributo dos sujeitos envolvidos nessa forma de aprendizado coletivo. A ausência de pluralidade de informações e opiniões na grande imprensa gera seres humanos facilmente influenciáveis e manipuláveis e incapazes de pensar por si mesmos. É o que temos hoje entre nós.

Esse tipo de espaço público colonizado pelo dinheiro e suas necessidades de reprodução ampliada gera aquilo que Habermas chama de refeudalização da esfera pública. Essa nova publicidade, como na representação do poder da Idade Média, não significa mais uma produção pública de opinião por pessoas privadas, mas a produção para um público de opiniões que são apresentadas como se fossem públicas. A esfera pública tem que ser produzida e maquiada artificialmente porque ela não mais existe. Como nos programas de debate da TV Globo, tudo funciona como se houvesse debate, ou seja, opiniões divergentes em disputa, quando, na verdade, temos a ver uma farsa, um teatro, precisamente como na esfera pública feudal. A elite do atraso construiu a esfera midiática adequada a seus fins.

É incrível que, em um país onde se fala sempre da privatização do público como seu problema principal, nunca ninguém tenha sequer refletido seriamente acerca da privatização da opinião pública, como efeito da colonização da esfera pública pelo interesse econômico. Enquanto a privatização do Estado por uma suposta elite estatal é o embuste do patrimonialismo como jabuticaba brasileira, a privatização do espaço público, que é real, é tornada invisível. Por sua vez, é a privatização da opinião pública que permite a continuidade da privatização do Estado pelo interesse econômico. Em grande medida, como sempre acontece nesses casos, uma falsa contradição está sempre no lugar de um conflito real. Afinal, a falsa ameaça da corrupção patrimonialista foi sempre acionada pelos interesses privados que comandam, de modo direto e indireto, a grande imprensa.




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