sábado, 1 de junho de 2024

Lazzarato: por que é tão crucial superar o dólar


Supremacia monetária dos EUA é a síntese da dominação sobre o Sul, diz pensador marxista, ao lançar novo livro. Em seu nome eclodem as guerras. Sua contestação pela China marca mudança de épocas. Mas será preciso lutar muito até alcançá-la

Maurizio Lazzarato, em entrevista Gorka Castillo, em CTXT | Tradução: Antonio Martins

Lúcido, cordial e direto, Maurizio Lazzarato (Meduna di Livenza, Itália, 1955) é um pensador heterodoxo cujas reflexões sobre o funcionamento econômico do mundo servem para entender a origem das guerras. Sobre esta última, ele diz sem rodeios: “Desafiar a hegemonia do dólar é declarar guerra aos EUA”. Sociólogo e filósofo, Lazzarato é um dos pais do movimento “Autonomia Operaia”, que Toni Negri ajudou a fundar, uma consciência crítica da esquerda clássica italiana na década de 1970. Exilado por este motivo em Paris, na década de 1980, Lazzarato não desistiu de seus esforços para disseminar a consciência social, ora dirigindo projetos de pesquisa sobre capitalismo financeiro na Universidade de Paris, ora escrevendo ensaios como Guerras e o capital ou o mais recente El Imperialismo del dólar (Tinta Limón, 2023) onde analisa o mercado internacional como fator decisivo que os norte-americanos utilizam para dominar o mundo e liberar sua força bruta quando surgem contrapesos. A China é o alvo de sua fulminante estratégia imperial. Com pesar, Lazzarato antecipa que “a Europa tem sido a grande perdedora nesta batalha. A guerra na Ucrânia já conseguiu quebrar o eixo franco-alemão, bem como transferi-lo para a Polônia, país liderado por um dos governos mais reacionários do continente, reforçando assim as posições mais atlantistas”, conclui.

A hegemonia global do dólar começa a ser questionada por vários lados. Você acha que o declínio da moeda americana é irreversível?

Dizer que o dólar começou a perder de vez a hegemonia é um pouco exagerado. O que estamos presenciando é um relativo declínio dos Estados Unidos em relação à posição que ocupavam desde a Segunda Guerra Mundial, quando passaram a representar metade da produção mundial e organizaram a economia do planeta em torno da supremacia de sua própria moeda. Não há dúvida de que hoje perderam posições, porque outras regiões do mundo, como a Europa e alguns países do Sul global, cresceram muito. Essa queda, evidentemente, ficou exposta após a crise financeira de 2008 e fez com que países como a China ou mesmo a Rússia, embora não seja bem um país do Sul global, queiram se desvincular do dólar como moeda de troca, entendendo que funciona como um mecanismo global de captura de riqueza. No entanto, não será fácil levar adiante esta ruptura, pois é tida é como uma declaração de guerra pelos Estados Unidos.

Lula pediu aos países do Mercosul que criem sua própria moeda, a China negocia a compra de petróleo em yuans e a Rússia exige o pagamento de seu gás em rublos. Você considera essas propostas inviáveis?

A dificuldade é que, por meio da dolarização do sistema monetário, os Estados Unidos financiam seu próprio déficit, que é gigantesco. Se esses países e regiões conseguirem se livrar de seu domínio, os norteamericanos perderão o dinheiro de que precisam para manter as relações econômicas necessárias a seu padrão de vida, o american way of life. Até 2008, parecia que não havia problemas porque operávamos sob um sistema internacional baseado nas relações entre os Estados Unidos e a China. Os chineses produziam mercadorias baratas e os americanos as compravam. Isso permitiu à China acumular enormes volumes de dólares, apesar de ser uma moeda que não lhe servia muito, por ser desvinculada do ouro. A saída que encontraram foi adquirir dívida americana, mas chegou 2008 e tudo mudou. Os chineses decidiram iniciar um processo de desdolarização para se desvincularem, na medida do possível, da enorme capacidade que os americanos têm de criar crises, uma atrás da outra. A guerra na Ucrânia, por exemplo, não é bem um confronto entre democracia e autocracia como querem que vejamos, mas sim uma guerra pela hegemonia do dólar. Tão claro. Por isso mesmo, não tenho muitas esperanças no sucesso desses movimentos de Lula e da China. Do ponto de vista econômico, será difícil para eles conseguir isso a curto e médio prazo. Mas houve uma grande novidade indiscutível em tudo isso e é que surgiram países dispostos a desafiar a hegemonia dos Estados Unidos do ponto de vista político.

Você defende que as condições que levaram à guerra na Ucrânia foram forjadas, em grande parte, após a crise de 2008. Por quê?

Porque a guerra é uma “lei” inerente ao capitalismo. A tendência natural desse sistema econômico é dominar o mercado mundial, embora nunca o tenha conseguido, porque carece de uma estrutura estatal em nível global e há nações reativas à sua expansão natural. A única maneira de o capitalismo quebrar qualquer resistência que encontre em seu caminho é a guerra. Acho que o que estou dizendo é bem fácil de entender. Se você estudar cuidadosamente as causas que levaram à Primeira Guerra Mundial, encontrará muitas semelhanças com a situação em que vivemos hoje.

Na sua opinião, qual é a maior semelhança?

O desejo de dominar o mercado mundial. Antes da Primeira Guerra Mundial, havia dois impérios coloniais estabelecidos, o francês e o britânico, e uma potência emergente como a Alemanha que queria sua parte nos despojos. O conflito entre essas três potências coloniais européias surgiu quando se tratava de determinar quem estava no comando ou quem controlava o mercado mundial. Agora, os atores mudaram, mas a essência do problema é a mesma. Temos um Sul global que deixou de ser objeto de disputa política e passou a ser um sujeito político e econômico que exige sua posição no mercado mundial. Essa é outra grande novidade da tensão atual. A divisão que se estabeleceu no mundo durante quatro séculos, entre um Norte que se desenvolveu explorando o Sul, começou a ser definitivamente questionada porque esses países se rebelaram contra a subordinação. A China, evidentemente, é a principal representante desse desejo de emancipação. Na verdade, o alvo da guerra na Ucrânia são os chineses e não a Rússia – uma potência militar, mas muito fraca economicamente. Acho que ninguém duvida que hoje eles são o verdadeiro concorrente dos Estados Unidos.

Seria então China um país imperialista?

Depende. Se olharmos para sua capacidade de exportar capital, sim. Embora não no sentido clássico porque, ao contrário dos Estados Unidos, não ocupa territórios nem tem aspirações militares, além das conhecidas, longe de suas fronteiras. No entanto, é o primeiro parceiro comercial de quase todos os países latino-americanos e tem uma grande presença na África por meio de uma série de intercâmbios comerciais que visam, também, obter benefícios próprios. Você tem que observar essas coisas se desenrolarem.

Você acha que as diferentes crises que estão sendo vividas hoje estão acabando com a globalização, tal como era configurada há 30 anos?

Na realidade, a globalização continua a funcionar, mas de uma forma diferente. As cadeias de valor foram reorganizadas para privilegiar países considerados aliados políticos. Por exemplo, o Ocidente tenta excluir a China de certos processos de inovação tecnológica, impedindo-a até mesmo de ter contatos com algumas empresas europeias. Portanto, estamos submersos num processo de reorganização, porque a globalização que conhecemos nos últimos 30 anos chegou ao fim. Daí as constantes tentativas dos Estados Unidos de repatriar as empresas que deslocaram para a China ou a Europa, ainda que seja difícil conseguir.

Que papel desempenha a Europa nesta luta?

A Europa está sendo a primeira derrotada nesta guerra. O conflito na Ucrânia tem muitas guerras dentro dele e uma das mais importantes é a travada pelos Estados Unidos para controlar a Europa. Washington já conseguiu romper o eixo franco-alemão e transferiu-o para a Polônia e outros países vizinhos, com o objetivo de agravar a crise na Alemanha, que hoje atravessa graves dificuldades, com a maior recessão econômica do continente. Não se pode esquecer que os alemães desenvolveram, há décadas, uma política própria em relação ao Oriente, a “Ostpolitik”, que envolvia relações pragmáticas com a Rússia e também com a China. É algo que s americanos não suportariam na situação atual, e decidiram cortar destruindo os gasodutos Nord Stream e obrigando o resto da UE a se alinhar com as posições atlantistas que mais os favorecem.

Na minha opinião, este é o segundo suicídio cometido pela Europa em um século, após a Primeira Guerra Mundial. Ele cedeu completamente aos Estados Unidos e agora tem que assumir as consequências – ou seja, a ascensão do nacionalismo, que nada mais é do que novas formas de fascismo e extrema direita. É o caso da Polônia, o país que os americanos colocaram no centro, sendo um dos estados mais reaccionários da UE. O governo fascista italiano já estabeleceu relações íntimas com eles e outros países com claras tendências de extrema-direita. Não tenho dúvidas de que a partir de agora veremos a curva à direita acentuar-se em toda a Europa.

Você acha que o resultado da guerra na Ucrânia pode acelerar o totalitarismo europeu?

As condições que provocaram a guerra na Ucrânia não terminam com a cessação dos confrontos armados porque, insisto, o problema que existe é entre o Ocidente e o Sul global. A China não poderá ocupar o lugar dos Estados Unidos e os americanos não poderão derrotar a China e o Sul. Minha impressão é que entraremos em um período de grande instabilidade política e um certo caos que levará a situações imprevisíveis. A Europa e os Estados Unidos estão armando a extrema direita na Ucrânia e ajudando os países politicamente reacionários do Leste a construir exércitos muito poderosos. Embora não possamos saber como terminará esta história de armamento da extrema-direita na Europa de Leste, será mais um elemento de instabilidade que terá consequências para o resto do continente. Mas quero enfatizar que um problema muito semelhante ocorreu há não muitos anos. Os Estados Unidos armaram os islâmicos e depois tiveram que declarar guerra para desarmá-los.

Onde estão os movimentos transformadores, como o feminismo, nessa batalha pela hegemonia mundial e na ascensão dos nacionalismos fascistas?

As lutas do feminismo, do indigenismo ou do ambientalismo são muito importantes, mas não são suficientes, porque o conflito contra o poder é muito mais profundo.

Não acredito que o feminismo tenha a capacidade de reverter a ascensão do fascismo na Europa. Na minha opinião, é um movimento de emancipação muito importante, mas não é revolucionário em termos clássicos. Sua grande contribuição é ter apontado o sexismo sobre o qual esta sociedade foi construída, mas não responde a um problema mais amplo. No Chile, por exemplo, todos pudemos constatar que o movimento feminista foi um dos motores do enfrentamento social contra um Estado patriarcal e privado, mas quando se chega a um certo nível de conflito surgem questões que vão além da injustiça intrínseca do poder patriarcal . O movimento feminista também foi muito importante nas “primaveras árabes”, mas não conseguimos encontrar a estratégia que nos levaria à vitória. Os Estados Unidos, por exemplo, acompanharam de perto a dinâmica do surto social ocorrido no Chile em 2019. Portanto, as lutas do feminismo, do indigenismo ou do ambientalismo são muito importantes, mas não são suficientes, porque o conflito contra o poder é muito mais profundo. Estou falando de um poder geral, um poder internacional que nos obriga a pensar em um nível mais amplo de enfrentamento.

O que acontece com a esquerda?

A esquerda não entendeu a transformação sofrida na composição de classes. Continua sem entende que ela mudou de modo notável. E quando você produz um confronto contra o poder, só duas coisas podem acontecer: ou você ganha, ou você retrocede. O exemplo chileno é muito instrutivo. Eles desafiaram o poder, mas não conseguiram quebrá-lo e agora estão regredindo como vimos com a Constituição de Pinochet.

Você não está um pouco pessimista?

Não, não sou pessimista, mas realista. Estamos entrando em um novo momento político que está provocando transformações sociais muito rapidamente. Vamos prestar atenção à história. Quando a Primeira Guerra Mundial eclodiu, em 1914, a esquerda havia praticamente desaparecido e o que existia estava completamente alinhado com o nacionalismo e seus exércitos. A social-democracia alemã votou pelos créditos de guerra. Logo depois, Lênin liderou a revolução na Rússia. Não estamos na mesma situação, mas a guerra introduz um tempo imprevisível que exige que as forças políticas assumam esta nova temporalidade embora, no final, seja sempre a necessidade, inserida no confronto, que faz uma reação emergir. Assim diz a história – e esse é o meu desejo




 

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