quarta-feira, 17 de julho de 2024

Ockam e as Conspirações

Donald Trump (Foto: Reuters/Brendan McDermid)

"Em primeiro lugar, há muitas provas testemunhais e materiais de que o atentado foi verdadeiro", escreve Marcelo Zero

Marcelo Zero

Teorias da conspiração muitas vezes fazem sucesso. É natural. Pessoas que as concebem ou disseminam aparentam ter um conhecimento que poucos têm. Parecem ir além do óbvio e das aparências. Esgrimem razões complexas e tortuosas para tudo.

Claro que conspirações, operações de “falsa bandeira” etc. sempre existiram. Mas, normalmente, há explicações mais simples para os fatos.

No caso específico do atentado contra Trump, um caso rumoroso, é bom aplicar o famoso princípio heurístico da “navalha de Ockam”, do filósofo e teólogo medieval inglês William (Guilherme) of Ockam, o qual, diga-se de passagem, inspirou o personagem William of Baskerville (uma mistura de filósofo com detetive “sherlokiano) do romance “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco.

Grosso Modo, tal princípio recomenda que, ante duas explanações que tentam explicar um determinado acontecimento ou fenômeno, deve-se escolher a mais simples, a menos complicada, a que exige menor quantidade de elementos: pluralitas non est ponenda sine necessitate

Pois bem, ante as evidências até agora surgidas vai ficando claro que o atentado contra ex-presidente Trump não foi, como afirmaram inicialmente alguns, uma “encenação”. Foi algo verdadeiro e muito sério, provavelmente praticado por um “lobo solitário”.

Em primeiro lugar, há muitas provas testemunhais e materiais de que o atentado foi verdadeiro. O ex-presidente foi ferido de raspão na orelha, uma pessoa morreu e duas outras ficaram gravemente feridas. Foram balas de verdade que atingiram pessoas reais.

Achar que o Serviço Secreto, uma organização de Estado muito profissionalizada, que serve tanto a republicanos quanto a democratas, participaria de uma encenação tão torpe, em meio a centenas de testemunhas e câmeras, e, de alguma forma, teria passado “ketchup” ou coisa semelhante na orelha de Trump, é algo francamente risível.

Em segundo, muito embora o acontecimento tenha dado grande estímulo à campanha de Trump, pela publicidade e pela grande onda de solidariedade gerada, ex-presidente não precisava de nada disso.

A campanha de Trump ia bem, mesmo com os problemas judiciais do ex-presidente. A campanha que ia mal, muito mal, e era amplamente questionada dentro do próprio Partido Democrata, era a de Biden. Continua a ser.

Ergo, promover uma encenação desse tipo, correndo o risco mortal (sem trocadilho) de ser desmascarado, sem nenhuma necessidade, seria algo totalmente irracional.

Quantos aos motivos do atirador, só a investigação dirá. Não obstante, até agora seu perfil indica tratar-se de um “lobo solitário”, sem conexões políticas com organizações ou grupos.

O que não falta nos EUA são desequilibrados com armas, inclusive com armas de grosso calibre.

Todos os anos há algum (ou alguns) massacre (s) em escolas ou estabelecimentos públicos. E atirar em políticos e celebridades é praticamente um esporte nacional, desde os tempos de Abraham Lincoln.

Por outro lado, é fato que houve uma grosseira falha no esquema de segurança do ex-presidente. Embora o atirador estivesse fora do perímetro de segurança do Secret Service, a polícia e os “contrasnipers” deveriam tê-lo “neutralizado” antes dos tiros. Populares tentaram alertar a segurança, que não agiu a tempo. Evidentemente, isso alimenta as teorias conspiratórias.

Mas, muitas vezes, falhas são apenas falhas. E, como dizia Freud, as vezes um charuto é apenas um charuto, sem significado oculto ou inconsciente.

Outro fato é que Trump está capitalizando bem o acontecimento.

O atentado possibilita à sua campanha uma providencial mudança de tom e de estratégia.

Agora, Trump, o grande promotor da violência e da polarização política nos EUA, um sujeito sem qualquer compromisso com a democracia, falará contra a polarização e se apresentará como uma vítima que quer promover a “união nacional” e a “pacificação”.

Essa “narrativa”, embora totalmente hipócrita, deverá repercutir bem nos segmentos indecisos e mais independentes dos eleitores, justamente os que podem fazer oscilar definitivamente o pêndulo eleitoral para o lado dos republicanos.

Ainda é cedo para dizer que o atentado já decidiu a eleição para Trump, como afirmaram açodadamente alguns. Em pouco mais de três meses muita coisa ainda pode acontecer, inclusive a mudança do candidato democrata. Porém, não há dúvida de que o atentado fracassado será muito bem explorado pela campanha de Trump até o final. É uma carta simbólica forte na mão de Trump.

Hoje, a eleição dos EUA inclina-se decididamente para o lado do MAGA, a extrema-direita nacionalista, protecionista e que coloca em xeque as instituições democráticas. “Republicanos” nem mais existem, dado o inteiro domínio do partido por parte de Trump.

A eventual vitória de Trump será muito ruim para o Brasil e a América Latina. Com efeito, Trump e associados enxergam nossa região como uma grande fonte de problemas (imigração ilegal, criminalidade, narcotráfico, contrabando, regimes “rebeldes” etc.). Trump fala com ódio incontido sobre os migrantes latino-americanos. Promete punho pesado e deportação de todo o mundo. Muitos brasileiros poderão ser afetados.

Seu prometido protecionismo generalizado deverá incidir negativamente sobre exportações brasileiras importantes, como as metalúrgicas, e mesmo de alguns produtos agropecuários que têm concorrência nos EUA.

Ademais, Trump, bastante influenciado pela extrema-direita da Flórida, vê com muita desconfiança e hostilidade não apenas regimes como os de Cuba, Venezuela, Nicarágua etc., mas também regimes progressistas moderados, como o do Brasil.

Como argumentei em artigo anterior (“Trump Promete ser Pior”), tudo indica que Trump, caso retorne ao poder, voltará liderar e extrema-direita mundial e investirá em sua antiga aliança com o bolsonarismo. Poderá, é claro, pressionar o Brasil, inclusive com eventuais sanções, para liberar Bolsonaro e bolsonaristas de ações judiciais. É algo que tem de ser levado em consideração, especialmente se os republicanos conseguirem boa maioria na House e no Senado.

A atentado contra Trump foi real e não parece, de forma alguma, ter sido originado por alguma obscura e tortuosa “conspiração”.



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