O presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, participa de um evento perto de uma imagem do falecido presidente da Venezuela Hugo Chávez em Caracas, Venezuela, 4 de fevereiro de 2024 (Foto: REUTERS/Leonardo Fernandez Viloria/File Phot)
“É confortável superdimensionar a culpa das interferências externas por dramas e derrotas na América Latina”, escreve o colunista Moisés Mendes
Moisés Mendes
Os duelos de ideias sobre os desdobramentos da eleição na Venezuela e a capacidade de sobrevivência de Nicolás Maduro são mais intensos e dramáticos entre as esquerdas brasileiras. Não há nada aproveitável no embate entre direita e esquerda.
A produtividade é alta no confronto entre quem se identifica com o bolivarismo, o chavismo e o madurismo ou pelo menos compreende o que se passa na Venezuela como resultado da afronta e da sabotagem permanente dos Estados Unidos e seus satélites e das organizações multilaterais e serviçais.
Há consenso no entendimento de que Maduro é um homem acuado pelo cerco da direita mundial e do que ainda chamam de imperialismo, por falta de outro nome melhor. Que a Venezuela está sob estado permanente de golpe. E que é preciso resistir, em nome da defesa da soberania nacional.
Depois disso, começam as controvérsias só aparentemente pontuais. Sobre os limites da imposição de Maduro para se manter no poder. Sobre as dúvidas a respeito da eleição. Sobre os métodos para responder às intromissões de fora. E, principalmente, sobre a capacidade que agentes externos teriam de gerar toda a crise que levou à atual situação.
Um exemplo de dúvida encoberta, a partir de uma pergunta: é possível ver a líder da extrema direita Maria Corina como uma invenção da sabotagem, do intervencionismo e do golpismo americanos? Parece uma pergunta simplória. Mas que dá pra responder sem empáfia.
Imperialismo e guerras híbridas geraram Henrique Capriles, Juan Guaidó e Maria Corina, para ficar apenas nos nomes mais recentes da direita venezuelana? Edmundo González, o candidato que substituiu Corina, foi buscado em casa de pijama e inventado em quatro meses por Joe Biden, pela CIA, por Elon Musk e pelo golpista Luiz Almagro da OEA? E mesmo assim virou protagonista?
Javier Milei, que até dois anos atrás era apenas um comentarista de TV esdrúxulo, é um híbrido dessas guerras? Alguém acredita mesmo que o bolsonarismo foi gerado numa chocadeira americana? Que a CIA derrubou Dilma e encarcerou Lula?
Sim, dirão que nomes são apenas expressões dos planos dessa gente e que todos são resultado de projetos de dominação vindos de fora. Que Guaidó, Bolsonaro, Milei e González apenas se encaixam e prosperam dentro dos modelos de subordinação imposto aos países periféricos pelo centro do mundo exportador de dominação, golpes e guerras.
O que as esquerdas se negam a tentar medir é o peso de fatores internos de dominação na criação dessas criaturas e o que essa dominação representa. Porque é cômodo atribuir derrotas ao poder invencível que vem de fora.
O Brasil arcaico que produziu Bolsonaro e viabilizou o golpe de Dilma no Congresso é subestimado, mas só aparentemente, porque, para os que buscam explicações falsamente difíceis, a democracia não pode ter sido degradada pela articulação do pato da Fiesp com pastores, militares, delegados, o centrão e grileiros.
A democracia não pode ter sido pisoteada por homens arcaicos de bíblias, bois e balas, que têm base social fiel e atuante que as esquerdas um dia também tiveram.
As esquerdas se consolam com as explicações clichês das ações imperialistas e das guerras externas, pelo desconforto de ter de compreender como surgem internamente os Guaidós, Bolsonaros e Marias Corinas. Pela negação de que o fascismo nacional pode inventar um Edmundo González em menos de meio ano.
Porque as esquerdas não têm mais, como já tiveram um dia, a capacidade de construir, subindo degrau por degrau, um Chávez, um Lula, um Kirchner, um Mujica. A direita consegue em meses. E não são a CIA e a OEA que explicam tudo, apesar de serem golpistas intermitentes e estarem a serviço de republicanos ou democratas.
A velha direita latino-americana, que se impunha com golpes com suporte militar, foi engolida pela extrema direita, que inventa suas criaturas com o voto e a proteção da democracia que deseja destruir. E Bolsonaro e Milei são apenas alguns dos seus melhores exemplares. Eles foram e são eleitos.
Trump, Biden, CIA, OEA, Otan, Musk, Steve Bannon não bastam para a explicação desses fenômenos, cada um com suas particularidades. Nem a comprovada interferência externa na Lava-Jato é fator capaz de explicar o êxito da caçada a Lula. Mas essa explicação consola as esquerdas.
É ingênuo, preguiçoso ou mal-intencionado quem induz interlocutores e mesmo observadores distantes de suas teses a pensarem que todos os descaminhos e desatinos latino-americanos são resultado de interferências externas. E que essas interferências explicam tudo.
Por desleixo com as próprias ideias, algumas antigas, e por subestimar as inquietações do que um dia já se chamou de povo, há quem diga que, sem as vozes, as ações e as armas do imperialismo, a América Latina estaria livre de retrocessos, das Marias Corinas e dos Mileis e Bolsonaros. Estaríamos livres do chileno José Antonio Kast?
Será mesmo? Que imposições hegemônicas de fora produzem uma Marine Le Pen na França e uma Giorgia Meloni na Itália? As duas foram criadas por Elon Musk, que ajuda a explicar a explosão de ações fascistas no Reino Unido?
Que influência externa seria capaz de dar protagonismo meteórico a um Pablo Marçal (vão subestimá-lo?), na eleição da cidade mais importante do país, e ao mesmo tempo aniquilar a ascensão política lenta e segura de uma Tabata Amaral? Por que a extrema direita engoliu a direita em toda parte?
Isso não é uma tese, é só uma pauta singela para conversa de bar, de preferência entre bêbados insuportáveis que discursam aos berros que Trump e Kamala são iguais.
É apenas uma provocação, de alguém sem lugar de fala, sem a profundidade das questões propostas por quem atribui quase todas as nossas fraquezas e derrotas a forças externas poderosas.
Ver só os bichos e monstros distantes ainda tem um certo glamour. É o que muitas vezes nos acalma, no esforço pela negação da existência dos bichos de perto e pelo desprezo por obviedades que nos causam desconforto e nos imobilizam.
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