terça-feira, 13 de agosto de 2024

Xadrez da disputa EUA-China e as oportunidades do Brasil, por Luís Nassif


Por: Luis Nassif
jornalggn.com.br/

Peça 1 – a ignorância coletiva

As dificuldades para o país se firmar como nação ficaram nítidas nos últimos dias, especialmente em torno do caso Venezuela.

O Brasil retomou a condição de nação não-subordinada, repetindo outros momentos da chancelaria brasileira, como na Operação Panamericana, de Juscelino Kubitschek, no próprio período militar, com o chanceler Azeredo da Silveira e no glorioso período 2008-2010.

Repete, agora, essa tradição de poder autônomo no caso da Venezuela. O padrão Washington de atuação consiste em retaliações econômicas, intervenções militares, guerras híbridas. O da diplomacia brasileira é o da negociação, preservando a autodeterminação dos países.

Houve um jogo nítido – para quem entende a geopolítica. Toda a estratégia brasileira visava uma solução negociada, evitando uma guerra civil na Venezuela e, ao mesmo tempo, preservando a possibilidade de autorregulação da América Latina.

Foi bem sucedida. Recebeu apoio de Maduro e do candidato da oposição. A Argentina solicitou – e foi atendida – para que a embaixada brasileira atendesse seus cidadãos, depois que a representação diplomática foi expulsa do país. Seguiu-se uma carta assinada por Brasil, Colômbia e México, propondo a negociação. Depois, elogios de Emmanuel Macron e apoios de outros países europeus, todos entendendo que a preocupação brasileira era impedir uma guerra civil na Venezuela.

É evidente, óbvio, que para assumir papel de mediação, Lula não poderia antecipar nenhum julgamento prévio sobre as eleições, mas exigir apresentação de elementos concretos, que decidissem quem teria razão.

Os Estados Unidos sentiram. O primeiro movimento foi uma ligação de Joe Biden para Lula. O segundo foi a declaração americana, determinando a vitória do candidato de oposição, em uma clara jogada para esvaziar a iniciativa dos três países.

A opinião pública brasileira explodiu em discussões acaloradas e polarizadas, com os anti-lulistas acusando Lula de apoiar Maduro; parte da esquerda acusando Lula de não defender Maduro e parte apoiando a queda de Maduro pelos vícios do regime – sem nenhuma análise sobre os efeitos no avanço da ultradireita e da influência norte-americana no continente. E nenhuma sensibilidade em relação a um princípio sagrado da diplomacia brasileira: a não interferência na política interna de outros países.

Até aí, repete-se o roteiro de polarização de outros países.

O quadro se complica quando a mídia entra pesadamente no jogo. Voltou uma tática do desgaste em cima de quinquilharia, de manchetes em cima de qualquer declaração, dentro ou fora do contexto, em tudo semelhante ao clima da conspiração do impeachment.

Em suma, a guerra híbrida está de volta e todas as lições do período 2016-2022 foram esquecidas. Como pano de fundo, a disputa entre Estados Unidos e China, e a tentativa de tornar o Brasil uma potência autônoma regional.

Peça 2 – Os donos do Estado

O quadro atual é um ciclo similar ao do fim da Monarquia e início da República.


O poder acumulado pelos financistas/cafeicultores era tão grande que a moeda de troca da abolição foi a entrega do Estado a seus grupos políticos. No caso brasileiro, a Faria Lima conseguiu o controle da política econômica a partir do Plano Real, quando o centro financeiro ainda era a avenida Paulista. Acentuou-se tanto no período Temer-Bolsonaro que, hoje, mantém o governo refém.

Em ambos os períodos, as disputas políticas ocorrem no tablado do mercado de notícias. Graças aos estudos divulgados nos últimos anos, aprendemos a conceituar e entender as chamadas guerras híbridas, as disputas de narrativas que sempre foram praticadas pela mídia corporativa.

É tipicamente o que ocorre hoje em dia. A implicância com qualquer frase de Lula, o destaque a qualquer fato negativo, independentemente de sua maior ou menor relevância, os bons resultados escondidos, tudo isso faz parte desse modelo. O que está em jogo é o controle do Estado.

Difusão de poder

No fim da Monarquia, o poder central estava enfraquecido pelo crescimento político do poder agro-financeiro. Enfraquecida, a Monarquia cedeu às pressões externas, com a Abolição, mas negociou a passagem para a República praticamente entregando o Estado aos interesses dos coronéis regionais; em 2022, aos novos coronéis da Faria Lima.

Em ambos os momentos, havia a parceria dos capitalistas brasileiros com a potência hegemônica: antes, a Inglaterra, agora, os Estados Unidos. E o controle total sobre as políticas públicas, valendo-se, em ambos os casos, da ideologia propagadeada pelos economistas de mercado – chamados de financistas no início do século 20.

A política cambial ficava na dependência do Banco da Inglaterra, antes, e, agora, do Federal Reserve.

O livre fluxo de capitais impedia qualquer processo de industrialização, tendo como arautos ideológicos os economistas de mercado, que garantiam o que nunca ocorreria: se houvesse plena liberdade para o capital externo, ele transbordaria do centro para a periferia trazendo desenvolvimento para todos.

Estudioso do período, antes de se tornar Ministro, Delfim Netto dizia que os escravagistas tinham escritórios em Londres, depositavam em bancos, como Schroeder, Rothschild, e esse dinheiro era emprestado ao Brasil. Londres era uma espécie de centro internacional de lavagem de dinheiro.

Com as restrições ao comércio escravagista, os bancos londrinos interromperam as operações com clientes que tivessem alguma ligação com o trabalho escravo. É esse movimento que permite aos cafeicultores paulistas substituir os escravagistas como parceiros preferenciais da banca internacional e se tornar os novos donos da liquidez nacional.

Agora, com as restrições aos paraísos fiscais, os fundos internacionais se tornaram os donos da liquidez internacional e, seus sócios nacionais, o setor mais influente nas economias periféricas.

O livre fluxo atraiu apenas capitais gafanhotos. Assim como no pós-Real até os dias de hoje. E esses capitais foram atrás dos mercados que ofereciam a remuneração mais fácil.

Os manás do Estado

Nos dois períodos, os ganhos davam-se em dois mercados correlatos: serviços públicos e dívida pública.

Em parceria com capitais ingleses, antes os recursos eram aplicados nas PPPs da época: serviços públicos, estradas de ferro, com remuneração garantida e vantagens escandalosas. Cada empreendimento permitia à Inglaterra inundar o país com consultores, insumos, que entravam sem pagamento de taxas. E tinham a garantia de uma remuneração mínima para o capital investido, e nenhum limite para os lucros da exploração dos serviços.

Agora, recorrem à privatização escandalosa de empresas públicas elétricas e de saneamento, as negociatas com Eletrobras, Sabesp e energia a gás, ou a regulação sob medida, como foi o caso das termoelétricas.

O segundo mercado é do endividamento público, antes, através dos empréstimos indiscriminados para a união e para estados e municípios. Agora, através da Selic e dos títulos do Tesouro.

Em ambos os casos, cortavam-se despesas que beneficiavam a população e o crescimento para garantir o pagamento de juros. E a mídia foi um parceiro imprescindível, mesmo o país dispondo de apenas 5% de população alfabetizada no início do século e, hoje em dia, ter 45% da população aberta a qualquer notícia falsa.

Nova potência

Ao mesmo tempo, havia a emergência de uma nova potência – Estados Unidos no final do século 19, China agora.

Em um primeiro momento, esses países tornaram-se grandes compradores de produtos agrícolas brasileiros, permitindo o enriquecimento de grupos ligados ao café e, agora, ao agronegócio.

Em um segundo momento, essas potências ampliam sua influência geopolítica, praticando uma política de colaboração – os Estados Unidos no pós-Segunda Guerra, a China, começando agora.

Na década de 50 houve a Comissão Mista Brasil-EUA, através da qual se prometia injetar recursos para a infraestrutura brasileira. A guerra da Coréia interrompeu a parceria.

Depois dessa tentativa de um imperialismo civilizado, os Estados Unidos abriram espaço para a geopolítica das canhoneiras. Agora, tem-se a Rota da Seda e outras propostas da China, para ajudar no desenvolvimento dos parceiros comerciais.

Peça 3 – a geopolítica norte-americana

Até o governo Geisel os parceiros preferenciais do Departamento de Estado eram as Forças Armadas. Com o tempo, percebeu-se que era uma parceria desgastante. De um lado, devido ao desrespeito sistemático aos direitos humanos, provocando desgaste junto à opinião pública e à mídia.

Nos anos 70, Delfim Netto recorreu ao banqueiro Walther Moreira Salles, para conseguir que alguma rede de televisão aberta, dos Estados Unidos, preparasse uma reportagem sobre o chamado “milagre brasileiro”. O dono da rede – amigo de Moreira Salles – consultou a redação que, unanimemente, recusou-se a vir ao Brasil, devido às denúncias de tortura.

Mais que isso. O padrão inicial de domínio americano, inspirado em Nelson Rockefeller – o maior estadista do capitalismo norte-americano -, consistia em espalhar o modelo da democracia ocidental pelo continente. Nele, as fontes de controle são a imprensa, os grandes escritórios de advocacia, o mercado financeiro, ainda que incipientes, e os Partidos Políticos – Partido Republicano Paulista, antes, PSDB depois. Esse modelo tornava o jogo muito mais previsível e controlável, conforme atestaram a conspiração do impeachment de Dilma.

A parceria com regimes militares significava depender da cabeça do ditador de plantão. Os movimentos de Ernesto Geisel na diplomacia, e na tentativa de acordo nuclear com a Alemanha, mudaram o modo de pensar do Departamento de Estado norte-americano.

No início da redemocratização, a parceria norte-americana se deu através do Cebrap (Centro Brasileiro de Planejamento), financiado pela Fundação Ford, e de duas lideranças dita modernas – Fernando Henrique Cardoso e José Serra, com ligações estreitas com o Partido Democrata.

Repare que a parceria STF-PSDB se manteve até as eleições de 2018, quando impediu Lula de participar, na esperança de que Geraldo Alckmin pudesse ser eleito. Foram incapazes de prever o furacão da ultradireita.

Nem se desqualifique o Cebrap ou o velho PSDB. A intenção inicial era a modernização subordinada da economia e do Estado. Hoje em dia, há um sem-número de organizações sociais venezuelanas, financiadas por bilionários bondosos, tentando modernizar as estruturas nacionais por dentro. E a ficar com o petróleo por fora.

Depois, com o Real, o que se viu, por trás da estratégia, foi a entrega total do poder ao mercado financeiro.

Peça 4 – as estratégias de dominação

Tendo o mercado como parceiro preferencial, a geopolítica norte-americana se manifesta através de três estratégias, visando públicos distintos:

1. A ideologia da liberalização total do mercado, vendida especialmente pela mídia, com especial impacto no Supremo Tribunal Federal.

2. As guerras híbridas, conduzidas através das redes sociais, explorando especialmente as bandeiras do anticomunismo, associando toda forma de regulação e de ação do Estado ao marxismo. Aí entram os terraplanistas da ideologia anti-estado, que tratam o tema com a mesma paixão dos que acreditam que a vacina transforma pessoas em jacarés.

3. A cooptação de setores públicos relevantes.

A Lava Jato surgiu da cooptação do MInistério Pùblico Federal e do STF. A privatização selvagem decorreu de decisão do STF de considerar que subsidiárias de estatais poderiam ser vendidas sem autorização do Congresso. E a venda de refinarias pela Petrobras foi resultado da cooptação do CADE (Conselho Administrativo de Direito Econômico). em cima de um conceito falso: o de que a privatização das refinarias conduziria à competição no setor.

É uma cooptação baseada no soft power norte-americano. Militares, procuradores, juízes, delegados, funcionários de agências reguladoras, Ministros do Supremo, todos foram seduzidos com convites para viagens, cursos, diplomas nas universidades dos EUA.

Vocês não imaginam o ego de um Ministro do Supremo depois de fazer uma palestra para estudantes brasileiros em Harvard. Passa a se sentir um novo Rui Barbosa, um Joaquim Nabuco redivivo, um San Thiago Dantas da direita.

Para os militares, cursos nos EUA, treinamento de defesa, intercâmbio de inteligência e participação em missões de paz, são equivalentes a uma promoção. Por aí entende-se o silêncio quase pornográfico com que aceitaram a venda da Embraer ou os ataques ao Almirante Othon, figura central do programa nuclear brasileiro.

Os sócios menores desse jogo são o agronegócio – influenciado pela bandeira do anticomunismo -, o crime organizado, representado pela bancada da bala e pela máfia dos jogos, e o Centrão. Todos têm em comum o fim de qualquer forma de regulação.

É nesse quadro que se dá a disputa geopolítica atual, dentro do que se convencionou denominar de guerra híbrida.

De um lado, os Estados Unidos disputando a hegemonia diplomática e cultural sobre a América Latina. De outro, o Brasil tentando se firmar como país líder do continente. E, entrando no jogo, a China, disputando a influência tanto no Brasil quanto no continente.

Peça 5 – Os sócios maiores


O mercado financeiro é, hoje em dia, a parte mais relevante do tripé que sustenta a hegemonia norte-americana, ao lado da big techs e da indústria da guerra.

O centro dessa estrutura de poder são os chamados pirañas financeiras – termo criado por Augusto PInhochet para designar os financistas que atacaram o estado chileno após o golpe de Estado contra Salvador Allende.

O Swift (Society for Worldwide Interbank Financial Telecommunication), sistema global de comunicação interbancária, que facilita a troca de informações e mensagens relacionadas a transações financeiras internacionais, é utilizado pelos EUA como instrumento de retaliação. E, assim como na Velha República, a parceria entre o capital financeiro internacional e o brasileiro é o principal instrumento de pressão sobre a política interna. A única diferença é que, no início do século 20 o centro financeiro era Londres, e hoje em dia, é Nova York.

No caso brasileiro, os sócios preferenciais são os chamados farialimers, cuja principal liderança é André Esteves, do BTG Pactual, desbancando a influência da 3G. Sua influência se estende ao Congresso, aos ministérios, às agências reguladoras e aos governos estaduais dominados por bolsonaristas. E, especialmente, à mídia.

É atribuído a ele uma das privatizações mais controvertidas da história – a venda da Sabesp pelo governo Tarcísio de Freitas. E, como contrapartida, houve o lançamento da candidatura de Tarcísio à presidência – através de uma capa da hoje irrelevante Veja, sob o comando do BTG.

Não foi por outro motivo que a Lava Jato liquidou com as empreiteiras brasileiras, abriu espaço para a privatização selvagem e poupou os bancos de investimento.

A prisão dde Esteves pela Lava Jato foi um acidente de percurso, uma trapalhada do Procurador Geral Rodrigo Janot, prontamente corrigido pelo Supremo Tribunal Federal e pela Lava Jato.

Aliás, a orientação expressa, recebida do Departamento de Justiça, do procurador de Nova York e de Kenneth Blanco, do Departamento de Estado, era não mexer com os bancos, a pretexto de que poderia abalar a economia.

A Lava Jato permitiu não apenas o desmonte das empreiteiras, como colocou sob fiscalização expressa de escritórios de advocacia ligados do DoJ, a Petrobras, Embraer e Eletrobras.

Peça 6 – a China e o jogo das potências

Hoje em dia, há apenas a popularidade de Lula como ameaça a esse pacto. Mas Lula se move com dificuldade, sem dispor de uma massa crítica que lhe permita virar o jogo.

É nesse quadro que entra o fator China.

Ainda nos anos 40, a estratégia norte-americana era a modernização das economias latino-americanas, que se transformariam em extensão do mercado interno norte-americano. Rockefeller julgava que o segundo New Deal seria a modernização subordinada da economia latino-americana. Não foi por outro motivo que um dos artífices da tentativa de redemocratização de 1946 foi o embaixador Adolfo Berle Jr – intelectual de enorme projeção no New Deal.

A China segue passos semelhantes.

A Iniciativa do Cinturão e Rota da China busca um caminho similar, integrando países – e mercados – do Ocidente ao Oriente, mudando o centro dinâmico da economia do Atlântico para o Pacífico.

Assim como os Estados Unidos do século 19, seu maior peso atual é o econômico. A cada dia que passa, a economia brasileira torna-se mais dependente da China, através do canal do agronegócio e seus superávits comerciais.

O passo seguinte será a parceria na industrialização e na exploração de minérios raros.

A China tem a vantagem de manter controle total sobre o capital financeiro, e ênfase na indústria e na inovação, lideradas por empresas privadas.

O grande desafio é o Brasildispor de uma estratégia de desenvolvimento para aproveitar a parceria chinesa. Até agora, só tem oferecido terras e obras de engenharia para os chineses.

Provavelmente, no próximo ano, o governo tentará convencer fundos chineses e asiáticos a investir em títulos públicos brasileiros, para reduzir o poder de cartel da Faria Lima. A saída para o Pacífico, apregoada pela Ministra do Planejamento Simone Tebet, certamente tem chineses como parceiros.

A imposição de impostos de importação sobre produtos chineses dará sobrevida à indústria brasileira e induzirá à transferência de fábricas para o país.

Não basta. Tem que se definir qual o papel do capital nacional, das indústrias nacionais, as contrapartidas de transferência de tecnologia, de abertura de mercado externo, de desenvolvimento do mercado interno. Ainda mais com as vantagens competitivas do país para a nova etapa do desenvolvimento mundial, com a energia verde e as mudanças climáticas.

Na grande disputa EUA-China, o Brasil tornou-se peça central. E, com Lula, tem conseguido se equilibrar entre as duas superpotências. Mas o passo decisivo é transformar a relevância diplomática em econômica.



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