Fontes: Jacobinlat [Imagem: Bolsonaro. Créditos: Carolina Gil, retirado de Jacobinlat]
Por Valério Arcary
O bolsonarismo não é apenas uma reação passageira: é uma ofensiva contra os direitos conquistados pelos trabalhadores, que avança sob o pretexto de uma rebelião antissistema, mas com um programa profundamente reacionário.
A complicada realidade que nos cerca torna necessário reconhecer que o Brasil mudou, e para pior, nos últimos dez anos. Isto não é fácil para a geração mais velha da esquerda, porque a desilusão é muito grande. Houve muitas mudanças objetivas, mas também subjetivas. Em particular, estamos a assistir a dois processos dramaticamente graves:
a) Uma adesão ao bolsonarismo de pelo menos metade das camadas médias da classe trabalhadora entre 30 e 60 anos, que têm contratos, escolaridade e renda ligeiramente acima da média e que são predominantemente homens brancos.
b) Um distanciamento ou separação política entre partes da classe trabalhadora e os muito pobres, na sua maioria negros.
Um mundo mais perigoso
O mundo também mudou e tornou-se mais perigoso:
a) Uma fração da burguesia brasileira, confrontada com o fortalecimento da China, exige alinhamento incondicional com a defesa da supremacia do imperialismo norte-americano.
b) Outra fração da burguesia brasileira é negacionista da crise ambiental e hostil à transição energética, que prejudicará temporariamente aqueles que descarbonizarem mais rapidamente.
c) Algumas facções voltaram-se para a defesa de regimes autoritários que enfrentam protestos populares, abraçando uma linha nacional-imperialista.
d) Há estagnação econômica, empobrecimento e uma mudança para a direita das classes médias.
e) A esquerda atravessa uma crise surpreendente, que subestima o perigo real e imediato de um neofascismo com peso de massas.
A necessidade de recuperar a classe trabalhadora
Esta viragem para posições reacionárias e até neofascistas e para a divisão dos trabalhadores é um desastre político incomensurável. Não será possível transformar a sociedade se a esquerda não recuperar a maioria da classe trabalhadora. A história “ensina” que sempre haverá uma parte do mundo do trabalho assalariado que se sentirá atraída pela liderança burguesa. Mesmo quando a relação social de forças for invertida e uma divisão irreconciliável entre facções burguesas favorecer uma aproximação entre setores da classe média e causas populares, será inevitável que uma minoria de trabalhadores seja hostil à esquerda. Sem o apoio de uma maioria, que deve traduzir-se em organização e consciência, será impossível para a esquerda abrir caminho às transformações necessárias, mesmo que ganhe as eleições. Não se trata de um cálculo eleitoral, mas de uma aposta estratégica.
Durante vinte anos, a esquerda foi maioria no setor da classe trabalhadora com contrato, tanto no setor privado como no serviço público, entre 1990 e 2013. Este foi o núcleo original da base social do PT. Trabalhadores assalariados que ganham mais de três salários mínimos: metalúrgicos, professores, bancários, petroleiros, etc. O lulismo ganhou maioria entre os mais pobres, especialmente no Nordeste, somente após a chegada ao poder em 2002, devido ao imenso impacto do Bolsa Família e de outras políticas públicas de transferência de renda. Paradoxalmente, enquanto o PT consolidou uma grande maioria entre os mais pobres, a esquerda perdeu influência entre setores de trabalhadores com direitos e organização.
Existem muitas razões objectivas e subjectivas para este terrível resultado da luta de classes, fundamentais para explicar a ascensão da extrema direita. Ignorar a experiência dos treze anos de governos liderados pelo PT e o impacto da crise brutal de 2015/16 após a eleição de Dilma Rousseff seria frívolo. Esta crise incluiu uma recessão sem precedentes que reduziu o PIB em 7%, aumentou o desemprego, alimentou a inflação nos serviços essenciais e trouxe consigo um aumento de impostos. Tudo isso afetou um modelo de consumo e um padrão de vida. Também não podemos ignorar a campanha de denúncias de corrupção e de deterioração da segurança pública da Lava Jato . O ressentimento social e o ressentimento moral-ideológico cresceram dramaticamente. Ambos estão interligados. Dezenas de milhões viram a pobreza extrema dos mais pobres ser reduzida, mas as suas vidas pioraram comparativamente porque a desigualdade social não diminuiu. Mas estes factores por si só são insuficientes. Eles são muito temporários. Temos que nos perguntar quais são os fatores estruturais. A tragédia é que uma parte da classe trabalhadora com certos recursos, que sempre foi uma minoria urbana da classe trabalhadora, tenha “divorciado” o seu destino da imensa maioria popular miserável e não branca, ou seja, os negros. Não foi assim durante décadas. Algo mudou.
O Brasil é um laboratório histórico de desenvolvimento desigual e combinado, uma mistura do arcaico e do moderno. Está inserida no mundo como um híbrido de semicolônia privilegiada e submetrópole regional. É uma sociedade profundamente injusta, onde a extrema desigualdade social é a sua principal peculiaridade. Todas as nações capitalistas, quer estejam no centro ou na periferia do sistema, são desiguais, e a desigualdade tem aumentado desde a década de 1980. Mas o capitalismo brasileiro tem um tipo anacrônico de desigualdade. O Brasil continua a ser um país dependente e atrasado, tanto econômica quanto socialmente, culturalmente e educacionalmente. Embora a pobreza extrema tenha diminuído em comparação com as últimas décadas, a desigualdade social permanece em níveis escandalosos. Os índices de desenvolvimento humano mostram o Brasil numa posição atrasada em comparação com outros países sul-americanos, como Chile, Argentina e Uruguai.
O impressionante poder do lulismo e do PT, juntamente com outras organizações de esquerda como o PSOL, deve-se a décadas de luta contra a injustiça. No entanto, a sociedade continua ideologicamente racista, sexista e homofóbica. Embora a esquerda brasileira tenha posições influentes em movimentos sociais como o MST e o MTST, a sua luta ideológica tem sido fraca. Em comparação com países vizinhos como a Argentina, o anti-imperialismo e o movimento das mulheres têm uma audiência menor, e a luta anti-racista é fraca em comparação com as nações de maioria indígena.
Fenômenos complexos nunca são monocausais. Existem muitos fatores determinantes. Entre eles, deve notar-se que o estatuto social dos homens brancos, mesmo entre os assalariados da classe média, permaneceu, anacronicamente, muito acima do das massas populares, maioritariamente negras. A opressão baseava-se no que pode ser definido como status ou privilégios de casta. As sociedades não estão divididas apenas em classes sociais. O mundo do trabalho não é homogêneo em nenhum país, mas no Brasil, um país com grandes desigualdades regionais, a heterogeneidade é abismal. Ser branco, educado e do Sul é muito diferente de ser negro e do Nordeste. Felizmente, desde a onda de 2013, surgiu uma nova geração nos movimentos negros, feministas, LGBTQIA+ e ambientalistas. Mas o bolsonarismo se alimenta do ressentimento social e do ressentimento ideológico das classes médias. A batalha ideológica, que sempre ficou para depois, não pode mais esperar.
O padrão de desigualdade social no Brasil não é apenas uma aberração arcaica, tem sido funcional para uma acumulação capitalista mais rápida desde a década de 1950. A superexploração do trabalho tornou possível extrair taxas excepcionalmente altas de mais-valia. As classes dominantes não só confiaram na grande migração do mundo rural, mas também exploraram a suspeita e a desconfiança, fomentando assim o racismo, o machismo e a divisão entre a classe média e a maioria popular. No processo, a classe dominante construiu uma hegemonia política, mas também ideológica. A redução da pobreza absoluta através de altas taxas de crescimento econômico manteve graus suficientes de coesão social para manter a dominação sociopolítica, mesmo com níveis anacrônicos de desigualdade social, uma anomalia. Aqueles da esquerda brasileira que defendem uma estratégia de reformas regulatórias do capitalismo devem enfrentar este dilema da história. Se a classe dominante não aceitou uma negociação consistente e duradoura de reformas quando o seu capitalismo periférico ainda tinha um dinamismo intenso, porque aceitaria tal pacto agora que esse impulso histórico foi perdido e uma fase de decadência começou?
A esquerda diante do perigo neofascista
A recente manifestação liderada por Jair Bolsonaro na Avenida Paulista, no dia 7 de setembro, foi mais uma demonstração de força. Não foi um fiasco, nem um revés. Quase 50 mil pessoas se reuniram durante três horas, sob um sol escaldante, exigindo anistia aos golpistas e a demissão de Alexandre de Moraes, enquanto torciam por Pablo Marçal, que se deixava levar pela multidão.
O marxismo é o realismo revolucionário. Minimizar o impacto da radicalização da extrema direita – o erro mais constante e fatal da maioria da esquerda brasileira, tanto moderada como radical, desde 2016 – seria ingénuo. O argumento de não subestimar nem superestimar é uma fórmula “elegante”, mas evasiva. Esse escapismo é uma solução negacionista: uma postura defensiva para evitar reconhecer que enfrentamos um perigo imenso.
Serve apenas para perder tempo, alimentando o autoengano de que o tempo está sendo “ganho”. Um exemplo: a única capital realmente importante onde a esquerda tem chance de vencer as eleições municipais em menos de um mês é São Paulo. E dos três candidatos empatados tecnicamente, dois representam variantes do bolsonarismo.
Existe um setor de massas que está “contra tudo”. A radicalização anti-sistema é de extrema direita. Mas este extremismo não é neutro, é reacionário. A atração da histeria anti-establishment na extrema direita não pode ser contestada pela esquerda. Não há espaço simétrico para um discurso antissistêmico de esquerda. Um discurso antissistêmico seria fazer oposição ao governo Lula.
A “prova” é que as organizações que radicalizaram a sua agitação contra Lula são invisíveis. Não existe tal espaço, porque a correlação de forças mudou. Estamos numa situação ultra-defensiva: a confiança dos trabalhadores nas suas organizações e na sua própria capacidade de luta é muito baixa e as expectativas caíram drasticamente. Mesmo nos setores mais conscientes e combativos da classe trabalhadora predomina a apreensão. A correlação de forças é-nos desfavorável.
A esquerda moderada entrou em crise entre 2013 e 2022 – Trabalhista, PS francês, PSOE, PASOK, SYRIZA, PT, Peronismo – mas foi um processo parcial e transitório, e conseguiu recuperar em parte. As massas protegem-se com as ferramentas que têm à sua disposição. A esquerda mais radical pode ocupar um lugar, mas não deve recuar para a propaganda. Deve demonstrar que é um instrumento útil na luta dentro da Frente Única, acompanhando com paciência revolucionária o verdadeiro movimento de resistência ao neofascismo.
Não estamos numa verdadeira polarização social e política. A polarização só existe quando os dois campos principais – capital e trabalho – têm forças semelhantes. O Brasil está fragmentado. A ideia de que a vitória eleitoral de Lula, por apenas dois milhões de votos entre 120 milhões de votos válidos, reflita uma equivalência de posições sociais é uma fantasia. Estamos na defensiva e por isso a unidade da esquerda, tanto nas lutas como nas eleições, é essencial.
A unidade da esquerda não deve ser usada para silenciar críticas justas a vacilações desnecessárias, maus acordos, decisões erradas ou capitulações indesculpáveis. No entanto, o principal inimigo continua sendo o neofascismo. Uma estratégia de oposição esquerdista ao governo Lula é perigosa e estéril. Deveríamos ter aprendido algumas lições com o slogan “Fora Todos” no contexto em que a extrema direita agitava o “Fora Dilma”, especialmente porque a situação piorou desde 2016.
A vitória de Lula foi gigantesca, justamente porque a realidade é muito pior do que indicavam os resultados eleitorais. Um resultado que, aliás, só foi possível porque uma dissidência burguesa o apoiou. Muitos factores explicam porque é que o contexto é tão reacionário. Entre eles, a derrota histórica da restauração capitalista entre 1989 e 1991 define o cenário porque já não há referência para uma alternativa utópica como o socialismo há três gerações.
A reestruturação produtiva vem impondo uma série de derrotas e divisões na classe trabalhadora. Os governos liderados pelo PT entre 2003 e 2016 não são inocentes nisso, uma vez que a sua estratégia de colaboração de classes limitou as mudanças a reformas tão minimalistas que não foi possível mobilizar as massas para defender Dilma Rousseff quando ela enfrentou o impeachment . As derrotas acumuladas pesam muito.
Nossos inimigos estão na ofensiva. Uma polêmica sobre se Jair Bolsonaro poderia ter sido derrotado sem Lula não faz sentido. Lembremos que a proposta de Lula era “paz e amor” contra o gabinete do ódio, abraçada por Geraldo Alckmin. Só poderia ser vencido com táticas ultramoderadas. Contudo, isso não justifica a conclusão de que Lula estava certo ao escolher Alckmin como vice-presidente, embora deva nos guiar para avaliar realisticamente a relação das forças políticas.
O centrão é o bloco político que provavelmente sairá mais forte das eleições. Mesmo em Porto Alegre, depois da tragédia da pior enchente em meio século, Sebastião Melo, atual prefeito de Bolsonaro apoiado pelo MDB, continua sendo o favorito. As candidaturas petistas em Aracaju, Natal, Fortaleza e até em Teresina também não deveriam nos surpreender. Em Belém, uma luta heroica está sendo travada para garantir que Edmilson, do PSOL, chegue ao segundo turno. O que poderia salvar o equilíbrio das eleições de 2024 seria uma vitória de Guilherme Boulos. O equilíbrio político depois de outubro depende essencialmente do resultado em São Paulo, onde podemos vencer, embora seja difícil.
O movimento neofascista foi construído sobre denúncias incansáveis, mas não sobre quaisquer denúncias. Denunciam que há “demasiados direitos” para os trabalhadores. Bolsonaro cunhou a ameaça: empregos ou direitos? O que está em jogo perante a extrema direita são todas as pequenas mas valiosas conquistas sociais alcançadas desde o fim da ditadura: os direitos dos movimentos sociais, as lutas por habitação, género, raça, cultura, sindicalismo, ecologia e muito mais.
O bolsonarismo não é uma reação ao perigo de uma revolução, como foi o nazi-fascismo na Europa após a Revolução de Outubro. Não há perigo de revolução. Os neofascistas ganharam uma base de massas porque uma fracção da burguesia se radicalizou e lidera uma ofensiva contra os trabalhadores, com o apoio da classe média e dos sectores populares, promovendo um choque de capitalismo “selvagem”.
A extrema direita cresceu em reação à crise de 2008/09, que condenou o capitalismo ocidental – incluindo o Brasil – a uma década de estagnação enquanto a China crescia. O seu programa é o neoliberalismo em estado febril.
Entre 2013 e 2023, atravessamos a primeira década recessiva desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Em contraste: (a) durante os trinta “anos dourados”, a Europa e o Japão reconstruíram as suas infra-estruturas, implementando reformas que garantiram o pleno emprego e concessões à classe trabalhadora; (b) na década de 1980, houve um mini-boom com Reagan; (c) na década de 90, outro com Clinton; e (d) no início do século XXI, um terceiro mini-boom com Bush Jr. Brexit, Donald Trump, Bolsonaro e Javier Milei são manifestações eleitorais de uma estratégia para manter a liderança global dos EUA.
Uma fração da burguesia global, insatisfeita com o gradualismo neoliberal, adotou uma estratégia de choque hiperliberal que procura destruir direitos, promovendo a "latino-americanização" dos países centrais e a "asianização" da América Latina, para reduzir os custos de produção e competir com eles. China. Querem impor uma derrota histórica que garanta regimes estáveis durante uma geração.
Mas a extrema direita não se limita a uma estratégia económica. Não se alinha apenas politicamente com os EUA no sistema internacional. Embora heterogéneo em cada país, partilha um núcleo ideológico comum: exaltação nacionalista, misoginia, racismo, homofobia, negação climática, militarização da segurança, anti-intelectualismo e desprezo pela cultura e pela ciência.
Este confronto não é possível sem restringir as liberdades democráticas, destruindo mesmo as liberdades políticas. A extrema direita aspira a subverter o regime liberal-democrático. Não procura uma réplica do totalitarismo nazi-fascista da década de 1930, mas persegue regimes autoritários. Admiram líderes como Erdogan, Bukele ou Duterte. Só podemos detê-los com muita luta.
Valerio Arcary es historiador, militante del PSOL (Resistencia) y autor de O Martelo da História. Ensaios sobre a urgência da revolução contemporânea (Sundermann, 2016).
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