Joe Biden e Volodymyr Zelensky em Kiev, fevereiro de 2023: rumo a mais uma derrota humilhante? (AFP)
Sustentar Zelensky é cada vez mais difícil e custoso, mas seu provável fracasso abalará ainda mais o prestígio internacional dos EUA. Por isso, é possível que a OTAN cogite expandir e recrudescer o conflito – o que abriria as portas do inferno
Por Rafael Poch, em CTXT | Tradução: Antonio Martins
A derrota militar da Ucrânia são favas contadas, mas o mais perigoso é que será também, e acima de tudo, uma derrota “por procuração” da OTAN contra a Rússia, carregada de consequências para a liderança global ocidental, dentro e fora da Europa. Tratando-se disso, a pergunta do momento é: como a OTAN responderá à sua derrota na Ucrânia?
“É o momento de restabelecer a diplomacia e voltar às negociações, embora leve algum tempo para inverter a propaganda da última década e preparar o público para uma nova narrativa. Como vimos no Afeganistão, as elites político-midiáticas nos assegurarão que estamos ganhando, até que fujamos de forma desorganizada, com pessoas caindo dos aviões”, diz o analista norueguês Glenn Diesen.
Muito dependerá das eleições presidenciais de novembro nos Estados Unidos. A Rússia terá que moderar as exigências de sua “vitória”, seja qual for o significado e o conteúdo real dessa palavra, pois a guerra também está cobrando um alto preço em Moscou. Certamente haverá mais de 200 mil mortos e inválidos. Além disso, a ocupação de território ucraniano pode ser uma fonte de problemas, como apontamos há mais de um ano. Mas o que acontecerá se a OTAN não aceitar sua derrota – ou seja, se os Estados Unidos persistirem na sua vontade de sangrar a Rússia, agora às custas de uma guerra maior? A histeria dos bálticos e dos poloneses sobre uma “ameaça (ofensiva invasora) russa” contra a Europa – que além de inexistente, mostrou-se impossível, dadas as limitações militares na Ucrânia – será desencadeada? Nesse caso, os termos da equação já são conhecidos. Se for alvo do ataque de uma força militar superior, como a OTAN, a liderança russa declarará uma “ameaça existencial” para seu país, o que, segundo sua doutrina, que está sendo revisada para que se torne mais flexível, significa a possibilidade do uso de armas nucleares.
Em Moscou, há motivos de sobra para preocupação. O secretário de Estado dos EUA, Anthony Blinken, esteve esta semana em Kiev para dar o que parece ser um sinal verde para o uso de mísseis ocidentais de longo alcance contra o território russo. É algo que requer informações de inteligência e satélites militares americanos, além da participação direta de militares da OTAN. Putin advertiu na quinta-feira (12/9) que tal decisão “mudaria a própria natureza do conflito”. “Significará que os países da OTAN, os EUA e os países europeus, estarão combatendo contra a Rússia”, e, por isso, Moscou tomará “as decisões (militares) correspondentes”, disse ele. O presidente da Duma [Parlamento], Viacheslav Volodin, afirmou que a Rússia terá que usar “armas mais potentes e destrutivas na defesa de seus cidadãos”. Entre os especialistas há especulações sobre cenários como ataques a infraestruturas ocidentais ou a destruição das pontes sobre o rio Dnieper, que até agora a Rússia respeitou, e que cortariam a comunicação terrestre e ferroviária da Ucrânia ao meio.
Os programas de TV russos transmitem certo cansaço pelo estancamento da prometida “vitória inevitável”. Os militares parecem cientes de que, sem uma mobilização nacional completa – algo que o presidente Putin não quer arriscar – não há capacidade militar para expandir ainda mais a conquista de território ucraniano em direção a Nikolayev e Odessa, privando completamente a Ucrânia de saída para o mar, o que completaria uma vitória militar estratégica. Certamente, não interessa que a frente ucraniana entre em colapso antes das eleições nos Estados Unidos, mas, ganhe quem ganhar em Washington em novembro, sabe-se em Moscou que, se os Estados Unidos/OTAN não aceitarem sua derrota, a perspectiva de uma guerra maior estará à vista.
O presidente Zelenski carrega a derrota estampada no rosto. Já não é mais aquele personagem dinâmico e determinado que protagonizava capas dos principais semanários europeus e norte-americanos. Agora parece cansado, preocupado e agitado. Zelenski perdeu grande parte do apoio de seus padrinhos – chegando até a ser falsamente acusado de estar por trás do atentado americano contra o gasoduto Nord Stream. Não entendem sua última remodelação no governo, nem a ofensiva militar contra a região russa de Kursk, um gesto desesperado de imagem pelo qual pagará um alto preço militar, segundo a imprensa ocidental mais interpretativa. Os ocidentais o incitaram a romper as negociações iniciadas em Minsk e Istambul no início da guerra, e agora não estão sendo coerentes com a intensidade da ajuda que lhe prometeram. É a hora dos recriminações e ressentimentos. Zelenski tem motivos para estar preocupado.
“Superado em número e em armamento, o exército ucraniano enfrenta baixa moral e deserção”, diz a CNN em um relatório exaustivo, impensável em nossos lamentáveis meios de comunicação. Cinco são os pontos do colapso militar: as posições estratégicas dos soldados são mais fracas, faltam recursos, as cadeias de suprimentos não estão suficientemente defendidas, as comunicações costumam falhar e a moral desmorona, explica Diesen. Uma vez iniciado, o colapso tende a ter um efeito de avalanche, ele afirma.
Companhias militares inteiras estão se retirando de suas posições sem permissão, o que desmantela qualquer plano defensivo. O fato de um dos novos F-16 fornecidos pela OTAN, pilotado por um dos melhores oficiais da aviação ucraniana, ter sido derrubado em sua estreia, há duas semanas, por “fogo amigo” de uma bateria Patriot é um sintoma de graves problemas de coordenação. Em relação à retaguarda, cerca de 800 mil homens ucranianos em idade militar “foram para a clandestinidade”, mudando de endereço e trabalhando informalmente para não deixar registros trabalhistas e evitar a mobilização, relatava o Financial Times em 4 de agosto, citando o chefe da comissão de desenvolvimento econômico do parlamento ucraniano, Dmitri Nataluji.
Os efeitos da carnificina que a Ucrânia está sofrendo são incalculáveis. 78% dos cidadãos declaram ter parentes próximos e amigos que foram mortos ou feridos na guerra, de acordo com uma pesquisa telefônica realizada em maio/junho do ano passado. Veremos que preço todo esse bárbaro e injusto sofrimento humano cobrará no futuro. O ressentimento contra a Rússia de toda uma geração de ucranianos vai perdurar por muito tempo. Os vídeos sobre as razias do exército nas ruas, para prender aqueles que evitam o serviço militar, cresceram exponencialmente nas redes sociais. Aparentemente, também melhorou a informação militar russa sobre alvos, como exemplifica a destruição de um centro militar em Poltava, aparentemente com grande concentração de técnicos militares da OTAN, em 3 de setembro. E as perspectivas são ainda mais sombrias para Kiev, pois a Rússia, especialmente após a incursão militar ucraniana em Kursk, está castigando ainda mais as infraestruturas energéticas do país. Tendo já perdido um quinto de seu território nacional e um terço de sua população, a perspectiva de um inverno com severos cortes de luz e aquecimento anuncia um novo êxodo de centenas de milhares de ucranianos para a União Europeia, neste outono/inverno. Não estamos muito longe de um colapso militar ucraniano, que talvez seja questão de alguns meses.
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