Presidentes Lula e Maduro durante encontro da Unasul em Brasília 29/05/2023 (Foto: REUTERS/Ueslei Marcelino)
Considero que a decisão do presidente Luiz Inácio só pode ser analisada nos termos daquela conjunção de fatores atávicos personificados na elite brasileira
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O Brasil ainda não é uma nação, se aplicarmos o devido rigor conceitual, nos termos da Teoria Geral do Estado, ao significado do vocábulo. É apenas um país, noção semanticamente mais aberta, fluída e, por isso mesmo, melhor aplicável à condição brasileira. Historicamente, considero ter existido no país um projeto de nação durante o Império, sob D. Pedro II, e durante a era Vargas, mediante as quais houve uma concepção, esboçaram-se projetos e, até certos limites, foram realizadas agendas reformistas / revolucionárias profundas.
A referida asserção é sustentável já a partir do caráter político-ideológico dominante da sua elite, profundamente reacionário à identidade social e antropológica da formação brasileira. Se houver algum atavismo (quase, por assim dizer, uma marca filogenética), para explicar o comportamento dessa elite, creio ser possível identificá-lo em a) sua submissão a poderes políticos externos objetivamente adversários dos interesses geopolíticos e geoeconômicos nacionais; b) seu racismo em face da massiva miscigenação entre os três grandes vetores étnico-raciais; c) sua síndrome do que denomino de “vergonha das origens”, relativamente à colonização portuguesa (supostamente negativa se comparada ao que seria à exploração (expropriação) “ideal”, pois calvinista e anglo-saxã); d) seu arraigado preconceito à cultura e religiosidade populares, sobretudo se expressão de fontes negras, índias e brancas, menos ou mais sincréticas no imaginário e prática sociais; e e) sua repulsa / nojo às classes assalariadas, “horda” de preguiçosos, estúpidos e bastardos sociais que representariam a razão do “atraso” brasileiro ancestral.
Peço desculpas pelo intróito talvez longo, mas, como cientista que tenta explicar fenômenos focando na racionalidade do ator político, considero que a decisão do presidente Luiz Inácio em vetar a integração da Venezuela e da Nicarágua ao Brics+, durante a cúpula de Kazan, só pode ser analisada nos termos daquela conjunção de fatores atávicos personificados na elite brasileira. De fato, algumas delas (senão todas), explicariam, no caso, a profunda irracionalidade dos vetos, os quais são, a rigor, um veto ao Brics+ como bloco e, subliminarmente, um veto à Rússia, à China e ao Irã.
Se não é possível, imediatamente, discernir os efeitos mais importantes da decisão (a referência àquelas três potências energéticas / petrolíferas e bélicas não é casual), podemos especular suas causas, pois também por meio da Ciência Política (assim como pela Psicologia) é possível deduzir as “razões da loucura” dos dirigentes de Estado. Sempre como suposição, vou considerar quatro causas incidentes nos vetos, a saber: a) um "conselho” / acordo advindos, provavelmente, da Casa Branca**; b) uma “demonstração de força” na escalada das tensões entre os dois Estados; c) um ato de vaidade política onipotente e arrogante; e d) um sinal ao eleitorado reacionário e à elite integrante da frente de governança que o Executivo se dispõe a aplicar e prova, na prática, sua adesão às agendas não apenas econômicas, mas também político-ideológicas da direita / extrema-direita.
Essas causas não se excluem, entre si. E arriscaria considerar, aqui, que elas convergiram in totum para um ponto de virada, fatal e irreversível, na história da “esquerda” petista e na história política de Luiz Inácio; virada a qual desnudou realeza e reinado nos limites de um perjúrio ideológico que não é difícil vislumbrar na ascensão do PT ao poder. Não é defensável, sob qualquer hipótese, o veto à Venezuela, à Nicarágua e ao Brics+. Nas linhas a seguir, ao resenhar as referidas causas, vou tentar demonstrar a dimensão radicalmente irracional da decisão, e como, per se, ela se conecta ao comportamento histórico da elite do país. Elite contra a qual, diga-se de passagem, o antigo operário Lula construiu, com pregações até radicais, sua carreira de profissional da política.
Numa perspectiva puramente hipotética, não é exagero afirmar que o duplo veto brasileiro se articula com os interesses estratégicos dos Estados Unidos na região: bloqueia a ascensão política e econômica da Venezuela ao Brics+ e seu fortalecimento na própria América do Sul e Central; golpeia o Presidente Nicolás Maduro, enfraquecendo o perante a oposição de direita / extrema-direita, no país e no exterior; e demonstraria que, abaixo da Linha do Equador e dos Estados Unidos, a única subpotência regional é (e só poderá ser) o Brasil. Ora, sob qualquer desses aspectos o veto seria irracional, dado que enfraquece a confiabilidade do Brasil no interior do bloco, desmoraliza o PT como partido progressista e o presidente Luiz Inácio como líder solidário e de “esquerda” no contexto do Sul global e das agendas anti-imperialistas.
Se na guerra é sempre aconselhável deixar ao inimigo uma via de escape para suas tropas baterem em retirada, cercar e massacrar politicamente o governo venezuelano – é disso que se trata, ao fim e ao cabo, para além de teorias à “esquerda” que tentam salvar as aparências –, é apostar na sua capitulação absoluta, sem mediações de armistício. A elite bolivariana nunca se rendeu ou temeu aos Estados Unidos. Por que se renderia à elite brasileira, em geral tosca, predatória, pró-imperialista e essencialmente reacionária / fascista? Acuado, denunciando traição à luta anti-imperialista e os ataques à soberania do país, o governo venezuelano saiu em contra-ataque. Já há um grande derrotado nessa escalada que o governo brasileiro / Casa Branca decidiram bancar. E não é o Presidente Nicolás Maduro. Nem o Departamento de Estado norte-americano.
Outra consideração pertinente para tentar avaliar a irracionalidade do veto se circunscreve à dimensão da persona do ator político. Maquiavel, fundamentalmente, discorreu em suas análises sobre a dimensão da vaidade do “Príncipe”, para além das razões de Estado, como variável poderosa a guiar (ou desviar) a decisão política. Daí ser necessário contemplá-la, sem falsos pudores, no exame do veto amplo, geral e irrestrito ao Brics+ e à Venezuela / Nicarágua. Na crítica do sábio florentino ao perigo da arrogância / onipotência do “Príncipe” está implícito um conselho: se o homem de Estado cede à paixão / hybris da sua natureza humana, ele tende a julgar / decidir como se estivesse acima do bem e do mal. Em momentos assim (e a dedução, agora, é exclusivamente minha), seu pensamento será sempre irracional, ainda que o resultado da decisão lhe seja benéfico. Não é necessário qualquer exame mais profundo para perceber essa dimensão pessoal, terra a terra, como um fator igualmente forte para submeter e humilhar politicamente a Maduro / Venezuela. O ato enfraquece a potencial projeção de poder do Brics+ na região, manieta a Venezuela, rebaixa a influência do Brasil como subpotência, levanta suspeitas sobre o real papel político de Luiz Inácio no processo multipolar e fortalece os Estados Unidos em termos geopolíticos, econômicos e ideológicos na sua cruzada para barrar o Brics+ no Atlântico Sul. Diante disso tudo, só o fanatismo político mais radical e beócio poderá ver na decisão do “Príncipe”, mito infalível e preclaro, um golpe de maestria política.
No limite, a decisão só se explicaria racionalmente em cotejo com o item (d). Tratar-se-ia, a rigor, de um sinal / prova de que o Executivo está disposto a transigir sobre qualquer agenda (à exceção, é claro, dos sacrossantos “princípios identitaristas”, únicas cláusulas pétreas da gestão). Em outras palavras, derrotar o movimento bolivariano e “encoleirar” o Brics+ no espaço geopolítico e geoeconômico sul e centro-americano só é racional no âmbito estreito das alianças para dentro do governo de “frente ampla”. Para a elite ideológica hegemônica na direção do PT e na condução do Executivo, esse seria o jogo possível e pragmático. A agenda econômica neoliberal de Haddad / Luiz Inácio assim o demonstra, desde sempre.
Nos dois anos que restam ao governo, não há outro caminho senão aprofundar o ponto de virada, a despeito do choro e ranger de dentes dos iludidos com o programa da chapa presidencial de 2022. Pelos sinais das urnas nas eleições de 2024, não haverá presidência petista no dia 1º de janeiro de 2027. Mas haverá Nicolás Maduro no governo da Venezuela, encaminhando-se ao Brics+ (se a Casa Branca não derrubá-lo via golpe de Estado, enquanto a gestão Luiz Inácio pede a recontagem dos votos). Putin e Xi Jinping não são amadores. Façam suas apostas.
* Roberto Numeriano é mestre, doutor e pós-doutor em Ciência Política, com estudos especializados em controle e fiscalização de agências de Inteligência estatais, guerra interestatal e geopolítica.** Sou avesso por formação científica a “teorias da conspiração”, mas não me surpreenderia se, daqui a alguns anos, documentos desclassificados pelos Estados Unidos demonstrarem que tal “conselho” terá relação com o golpe de Estado de 2023, claramente derrotado no país porque, desde a Casa Branca, alguém avisou aos generais brasileiros que não haveria apoio ao golpe (um eufemismo para dizer que a ação seria neutralizada pelo Comando Sul dos EUA, o gendarme anglo-saxão a tutelar as Forças Armadas do Brasil no Atlântico Sul).
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