quinta-feira, 12 de dezembro de 2024

Após a queda de Assad: deve ser construída uma verdadeira linha de resistência


Kemal Okuyan [*]

Discutir se se trata de uma guerra civil ou de uma intervenção estrangeira na Síria é um esforço inútil. O país tem sido uma zona de conflito onde é completamente ambíguo quem é “nacional” e quem é “estrangeiro”.

Nestas circunstâncias, é obviamente difícil determinar a força motriz dos últimos acontecimentos que acabaram por desencadear a queda de Assad. No entanto, é evidente que a propaganda “o povo derrubou um ditador” dos países da NATO, principalmente dos EUA e do Reino Unido, e da Turquia (que é membro da NATO, mas que também age com ambições neo-otomanistas) não passa de uma falsa retórica.

O governo da Síria foi enfraquecido por intervenções estrangeiras, guerras prolongadas, sanções econômicas, práticas que não unificaram o povo, corrupção, políticas econômicas liberais, conflitos entre países que deveriam ser aliados de Assad, mas que apenas impuseram à Síria políticas para os seus próprios interesses. Isto causou o fim desse governo, quer ele caísse ou fosse derrubado.

Estas causas profundas de fraqueza tornaram o colapso inevitável face à agressão israelense, às intervenções abertas dos EUA, à intervenção encoberta do Reino Unido, à presença militar que a Turquia tentou legitimar invocando o direito de lutar contra o “separatismo curdo” e à recente operação levada a cabo por todas estas potências de forma coordenada.

É evidente que não foi um movimento popular do povo da Síria que provocou a queda do regime de Assad. Há vestígios de uma operação internacional em toda a interação entre a justa indignação popular contra o regime e as forças que acabaram por derrubar o governo. Trata-se, sem dúvida, de uma operação imperialista seguida de uma paz imperialista que se abateu sobre a Síria. Uma paz imperialista nunca trouxe a paz a lado nenhum e, infelizmente, o mesmo se aplicará à Síria.

Desde há dois meses, o Partido Comunista da Turquia tem vindo a alertar para a possibilidade de se desencadearem conflitos imprevistos na Síria, sublinhando que foram feitos preparativos para um acordo entre os EUA e a Rússia envolvendo a Ucrânia e a Síria, ou que têm sido espalhados rumores nesse sentido. O Partido também tem sublinhado constantemente que o período entre as eleições nos EUA e a tomada de posse de Trump é o período mais perigoso.

Não é por acaso que a administração Biden e a Grã-Bretanha, que estão de acordo em que a guerra ucraniana deve continuar por mais algum tempo, decidiram agir rapidamente na Síria. É claro que o armamento e o treino do Hayat Tahrir al-Sham (HTS) na região síria de Idlib, que foi deixada sob o controlo da Turquia em conformidade com o acordo de Astana entre a Rússia, o Irão e a Turquia, não começou recentemente. O HTS é classificado como “organização terrorista” pela Turquia e por muitos outros países, mas há anos que esta organização ligada à Al-Qaeda tem vindo a reforçar a sua presença e a sua preparação naquela região. Embora se afirme que esta organização, ao contrário do Exército Nacional Sírio, não está completamente sob o controlo da Turquia, é óbvio que o apoio a esta organização é fornecido pela coordenação dos EUA, Grã-Bretanha, Israel e Turquia.

No mesmo dia em que a administração Biden, juntamente com a Grã-Bretanha e Israel, decidiu fazer um movimento para mudar o poder na Síria, o governo do Presidente Erdoğan começou a afirmar que “Israel está a ameaçar-nos depois do Líbano e da Síria” e o líder ultranacionalista do MHP decidiu chocantemente apelar ao “diálogo com Öcalan” (líder preso do PKK) e declarou que “é necessário reforçar a frente interna”.

Era impensável que o governo do AKP, que há anos reforça a sua presença militar, política e econômica na Síria numa perspetiva neo-otomanista, ficasse de fora deste plano.

É preciso não esquecer que vivemos numa conjuntura internacional em que aqueles que atuam de forma concertada estão também em concorrência e até em conflito uns com os outros. Uma confusão é claramente visível nas relações da Turquia com o Irão e Israel. A classe dominante da Turquia está a cooperar com ambos contra o terceiro.

O Irão, que não está disposto a confrontar os EUA e Israel numa guerra aberta, e a Rússia, à espera de Trump, foram apanhados desprevenidos por esta jogada. E, num curto espaço de tempo, a vantagem síria que a Rússia ia colocar em cima da mesa nas negociações sobre a Ucrânia foi-lhes retirada. Pelo contrário, a Rússia está atualmente a procurar formas de proteger as suas bases na Síria. Este resultado explica o entusiasmo da Ucrânia em envolver-se na operação para Damasco.

O Governo de Erdoğan ou chega a um acordo com a região curda da Síria e ganha peso econômico e político, como fez com a região curda do Iraque sob Barzani, ou prossegue as operações militares contra a presença curda armada. Estamos perante uma situação estranha em que ambas as opções beneficiam os EUA e Israel.

A possibilidade de a Turquia reconhecer Rojava, que tem sido apoiada pelos EUA há anos e, mais recentemente, por Israel, e de a Turquia estar a avançar para a resolução da sua própria questão curda num contexto preferido pelos EUA só pode equivaler a uma síntese do projeto do Grande Médio Oriente com uma perspetiva neo-otomanista. Se a Turquia procura empurrar e eliminar a região curda na Síria, hoje mais ou menos estabilizada e, contrariamente à imagem dada pelos jihadistas, de carácter moderno e laico, através do Exército Nacional Sírio, reforça a possibilidade de a Turquia vir a ser o novo teatro da intervenção regional do imperialismo americano. De facto, nos últimos meses, muitos dirigentes do PKK têm dito ao Estado turco: “ou estão connosco e crescem ou estão contra nós e encolhem”.

Nesta conjuntura complexa, em que todos os países capitalistas estão a participar numa luta imperialista pela divisão imperialista, formando alianças altamente voláteis, só uma perspetiva de classe tem a possibilidade de dispersar a poluição criada por organizações de informação, acordos secretos e abertos. No rescaldo do derrube de Assad, temos de olhar para o quadro geral e não para a corrida propagandística entre Telavive e Ancara para reclamar a “vitória” ou para a questão de saber se Assad traiu a Rússia e o Irão ou se a Rússia e o Irão traíram Assad.

No Líbano, que é um alvo aberto da agressão israelense, poderão ocorrer rápidos desenvolvimentos muito em breve. O Irão poderá transformar-se num importante campo de batalha, que poderá tornar-se ainda mais frágil com as mobilizações desencadeadas nas regiões azeri e curda, e poderá enfrentar sérios problemas com o Azerbaijão, aliado próximo de Israel, e com a Turquia, inimiga e aliada de Israel, ou enfrentar um ataque direto dos EUA e de Israel. Podemos também enumerar o nosso próprio país, a Turquia, onde se acumula uma enorme energia em profundas linhas de falha.

Os comunistas têm grandes lições a aprender com tudo isto.

Em primeiro lugar, como temos vindo a salientar há anos, ficar preso entre uma posição “anti-imperialista” e “tarefas democráticas” constitui uma grande armadilha para o movimento comunista em todo o mundo. No passado, durante a invasão do Iraque, as tarefas “democráticas” e a posição contra o imperialismo foram postas em confronto e procurou-se legitimar uma intervenção e ocupação imperialistas em nome da libertação do Iraque da ditadura de Saddam e do direito das nações à autodeterminação.

Do mesmo modo, apoiar o inimigo do povo, o governo dos mulás no Irão, devido à sua pretensa posição “anti-imperialista” e justificar as intervenções dos países imperialistas em nome da democratização e da libertação do Irão são duas faces diferentes do mesmo desvio: a perda da perspetiva de classe e o pensamento dentro dos limites do domínio da burguesia.

O mesmo problema existe na Síria. De um ponto de vista, os sírios foram libertados com a queda de Assad. Outro ponto de vista é que a fortaleza síria do anti-imperialismo caiu. No entanto, ambos estão errados.

Há anos que estamos a lidar com o mesmo problema na Turquia. O governo de Erdoğan tem sido caracterizado por todo o tipo de qualidades. Apenas o TKP tem estado a dizer a mesma coisa acerca do AKP durante 22 anos!

Foi dito pela primeira vez que Erdoğan deveria ser apoiado em nome da democracia. O TKP opôs-se. Depois foi dito que todos se deviam unir contra Erdoğa para a luta pela democracia. O TKP opôs-se novamente. Quando se disse que o AKP era pró-americano, não nos opusemos, mas pedimos-lhes que não se esquecessem de que o capitalismo turco tem os seus próprios desígnios. Depois, houve quem fizesse uma petição à NATO queixando-se de Erdoğan em nome da “democracia e da liberdade”. Ao mesmo tempo, algumas pessoas descobriram que o governo do AKP era “anti-imperialista”.

É claro que não pensamos que todas essas falácias sejam criações de “boas intenções”. No entanto, não podemos deixar de encarar com simpatia estes erros, que por vezes também se verificam nas fileiras do movimento comunista, e fazer algumas advertências a partir da nossa própria perspetiva.

Em primeiro lugar, o equívoco de que a balança de poderes só permite uma estratégia dentro dos limites do sistema imperialista, de que o movimento operário se limita ou ao paradigma da democratização e da liberdade, ou a uma oposição inconsistente e regateada aos Estados Unidos, polida pela retórica do anti-imperialismo, devido à ineficácia do movimento operário na arena internacional, deve ser totalmente abandonado depois de todas estas grandes tragédias.

A era das revoluções burguesas há muito que terminou. O movimento operário, e mais ainda os comunistas, atravessam de facto um período de fraqueza em todo o mundo, mas enquanto agirmos com base naquilo a que podemos chamar “wishful thinking” em relação às facções do mundo imperialista, só nos restará sangrar mais.

Estão constantemente a ser colocadas armadilhas ao movimento comunista.

Em quase todos os países, aqueles que desafiam o poder político são acusados de serem agentes estrangeiros. É o caso dos EUA, é o caso do Irão, é o caso do Cazaquistão, da Geórgia, da Turquia, da Rússia...

O que é interessante é que há realmente agentes e o seu número está a aumentar. O facto de os comunistas não conseguirem desenvolver uma posição política independente e de estarem presos a alianças intra-sistema traz o risco de esta mancha propagar-se até ao movimento comunista.

Para dar um exemplo: Os soldados americanos estão a treinar e a equipar os guerrilheiros do PYD na região de Rojava, na Síria. Se é um facto que anos de agressão contra o povo curdo em vários países o empurraram para o patrocínio dos EUA e de Israel, poderá esta cooperação aberta e sistemática ser legitimada nas fileiras revolucionárias? O colaboracionismo americano e israelense foi a linha vermelha dos comunistas durante décadas, haverá alguma razão para recuar agora?

Não. Mas o paradigma libertário é deslumbrante e há quem o tolere em nome do esquerdismo.

Perante isto, o governo do AKP aumenta a sua agressividade, chamando-lhes “americanistas e israelitas”. Um país membro da NATO pode acusar os outros de serem pró-americanos! Isto é uma confusão. É necessário sair desta confusão e tomar uma posição clara. Nem a democratização, nem a solução da questão nacional, nem o anti-imperialismo podem ser tratados dentro de um quadro de pensamento burguês.

Mesmo que o movimento operário esteja na estaca zero no que diz respeito ao equilíbrio de forças, a menos que actue com uma estratégia independente e se exclua dos equilíbrios intra-sistémicos, ficará preso entre a democratização e a posição anti-imperialista e ficará preso nesta linha de tensão, independentemente das escolhas que fizer.

A lista não pára de crescer. Não esqueçamos que, na Jugoslávia, uma das mais extensas operações imperialistas da história foi defendida com base na liberdade-democracia – o direito à autodeterminação das nações, quase à semelhança da Primeira Guerra Mundial. Era difícil, mas possível, opor-se a esta operação e desenvolver uma posição independente da classe trabalhadora sem apoiar a linha nacionalista burguesa representada por Milosevic. E essa era a única opção.

Depois, o número de exemplos só aumentou. Não tivemos de escolher entre uma ditadura liderada por Saddam e uma invasão americana. É claro que o que se propõe não é igual distância, é possível desenvolver uma posição independente enfatizando as tarefas prioritárias do momento, para agir sem esquecer alguns princípios básicos. Do dilema Biden-Trump, Harris-Trump à Síria, do Brasil à Rússia de Putin, do Irão a Erdoğan, o movimento internacional está constantemente em risco de ficar preso entre duas opções dentro do sistema.

A tragédia que os pobres sofrem na Síria há décadas entrou agora numa nova fase com consequências muito críticas e graves. Devemos manter-nos optimistas, mas a verdade é que a Síria entrou numa fase muito, muito negra.

Como já disse, temos de aprender com estas lições. Uma vez que o TKP se depara constantemente com estes dilemas, pois luta numa região que os produz constantemente, o Partido procura determinar a sua posição preservando os seus princípios básicos e não se prendendo a modelos.

Um desses princípios básicos é o de tomar uma posição clara e inequívoca contra todas as intervenções diretas ou indiretas, tentativas de “revolução colorida” e ocupações por parte dos países imperialistas. No entanto, este princípio só faz sentido quando é acompanhado pelo princípio de não se aliar a nenhum governo burguês e de não participar nos governos dos capitalistas. Em tempos em que estes dois princípios parecem contradizer-se, a forma de ultrapassar as dificuldades e desenvolver uma atitude independente é colocar tanto a luta pela liberdade como a luta anti-imperialista no eixo de classe e ganhar terreno e avançar.

Essa atitude independente e revolucionária não pode ser exercida durante uma crise se não tivermos preparado bem e construído os canais políticos e sociais necessários para essa atitude durante os “períodos estáveis”. Se não tivermos uma saída de emergência, um equipamento e um plano, a única coisa que podemos fazer em caso de incêndio é saltar para o lençol que está aberto e à nossa espera nas mãos de outros atores.

Sim, temos de preparar o terreno para uma posição política independente e criar uma nova linha de resistência que possa ser facilmente transformada numa base para uma ofensiva.

Caso contrário, amanhã seremos obrigados a apoiar novas operações contra os jihadistas na Síria, que já começaram a cometer massacres, a serem lançadas por Israel e pelos Estados Unidos sob o pretexto de limpar a Síria dos extremistas islâmicos.

Resistência, sucesso e vitória para os comunistas da Palestina, do Líbano, da Síria, do Irão e do mundo inteiro!

11/Dezembro/2024

[*] Secretário-Geral do TKP
Este artigo encontra-se em resistir.info



 

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