Apoiantes do PYD no funeral de um aldeão nos arredores de Afrin, na Síria. (Via Wikimedia Commons)
Para compreender o cenário aberto pela derrubada da dinastia al-Assad na Síria, é necessário também conhecer os crimes que o Estado turco vem cometendo há anos em alguns dos seus territórios.
O artigo a seguir faz parte do livro Curdistão Urgente, de Leandro Albani. Histórias de um povo em resistência, editado por Batalla de ideias (2024).
Num pequeno território do Curdistão, a brutalidade exercida pelo Estado turco é vivida diariamente. Mercenários que sequestram, estupram mulheres e saqueiam propriedades. Bombardeios da aviação turca que destroem casas e instituições. O roubo sistemático da produção de oliveiras e de relíquias antropológicas. A deslocação forçada de quase trezentas mil pessoas e a mudança demográfica aplicada pelos ocupantes.
Tudo isto desde 2018 numa região que, em plena guerra na Síria, foi considerada a mais pacífica do país, e onde cerca de quinhentos mil sírios se refugiaram para escapar de um conflito bélico que parece não ter fim.
Aquele lugar onde a morte é agora galopante por todo o lado é Afrin, o cantão curdo composto por cerca de 380 aldeias e cidades, localizado a quarenta quilómetros da cidade de Aleppo. Dividida em sete distritos, a área possui grandes plantações de oliveiras devido à sua geografia montanhosa e de vale. A terra de Afrin também é fértil para a produção de frutas e vegetais, sendo um pequeno celeiro dentro de Rojava.
Você ouve os governantes europeus chorando lágrimas de crocodilo por Afrin, como fazem pela Ucrânia? E ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, que diz abraçar a democracia e a liberdade? Ouviram, talvez, que dentro da sede da NATO há ameaças contra a administração turca, determinada a bombardear os curdos, onde quer que estejam? Claro que não.
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«Recitei suratas do Alcorão para salvar nossas vidas. "Se não, eles teriam nos matado." As palavras são de Emira Fuat, uma mulher de 65 anos que foi deslocada de Afrin. Emira diz que esta foi a sua resposta quando mercenários e soldados turcos vieram à sua casa e acusaram-na de ser uma infiel por professar o Yazidismo, uma das muitas religiões do Médio Oriente.
A história de Emira foi divulgada pelo jornalista Beritan Sarya na agência de notícias ANF . O relatório lembra que cerca de 25 mil yazidis viviam em Afrin, mas hoje restam apenas dois mil. Do total de curdos yazidis, cerca de sete mil sobrevivem agora no campo de refugiados de Shehba, no norte da província síria de Aleppo.
Emira foi despojada de todos os seus bens materiais, mas o mais doloroso foi que os mercenários que ocupavam o cantão curdo, apoiados e financiados por Ancara, assassinaram um dos seus filhos. Como se não bastasse, também sequestraram o marido dela. Para ganhar a liberdade, ele teve que pagar um resgate: US$ 5.000, que obteve como pôde. Quando ela se reencontrou com o marido, ela estava com o pé quebrado e as costas machucadas. Uma marca registrada deixada pelos jihadistas que controlam Afrin.
A Emira tem conhecimento de muitos casos de homens e mulheres raptados em Afrin, de casas saqueadas e de bens roubados.
“O que está a acontecer em Afrin é horrível”, disse ao jornalista da ANF. A vida já não é possível sob a ocupação e os Yazidis estão a ser particularmente e cruelmente oprimidos. Só tenho um desejo: que os turcos e os seus bandos desapareçam de Afrin. Queremos voltar para nossa terra natal.
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A ocupação ilegal de Afrin ocorreu entre 16 e 18 de março de 2018. Dois meses antes, a aviação turca iniciou bombardeios massivos contra a região. Inicialmente, as SDF [Forças Democráticas Sírias] e as YPG/YPJ [Unidades de Proteção Popular/Unidades de Proteção às Mulheres, pela sua sigla em curdo] resistiram aos ataques, mas as suas capacidades militares foram insuficientes para enfrentar os ataques aéreos. Então eles decidiram transferir o máximo possível da população para locais seguros.
Quem estava em posição de deter a Turquia? Rússia e os Estados Unidos. Mas eles não fizeram nada. Moscovo, que controla o espaço aéreo da região, devido à sua aliança sinuosa com Ancara, que é sempre lucrativa. Os Estados Unidos, que têm tropas no território, justificaram-se dizendo que as suas forças lutavam apenas contra o Estado Islâmico. Desculpas.
É um segredo aberto que a Turquia recrutou centenas de jihadistas do ISIS, aparou-lhes as barbas, mudou as suas roupas pretas e juntou-os às dezenas de grupos terroristas que compõem o Exército Nacional Sírio (SNA), encarregado de perpetuar a ocupação de Afrin.
Relatórios divulgados pela Organização Afrin de Direitos Humanos (ODHA) revelaram que a população curda no cantão caiu de 95% para 15% para 25% desde o início da invasão. Isto é uma consequência “das políticas sistemáticas de limpeza étnica e de mudança demográfica”, denunciaram.
Outros números da ODHA demonstram o que implica a invasão turca de Afrin: um total de 676 civis foram mortos e mais de setecentos ficaram feridos por bombardeamentos e tortura por parte de mercenários. Entre estes últimos estão 303 crianças e 210 mulheres. A ODHA também registou um aumento sistemático de feminicídios: 84 mulheres foram assassinadas pelos mercenários, das quais seis morreram após serem violadas.
Um dos grandes negócios dos ocupantes são os sequestros: desde 20 de janeiro de 2018, quando começaram os bombardeamentos turcos, 8.328 pessoas passaram por esta provação. Do total, segundo a ODHA, desconhece-se o paradeiro de 35% dos sequestrados. Nestes quatro anos, mil mulheres foram sequestradas pelos ocupantes.
No que diz respeito às alterações demográficas, a ODHA observou que desde a invasão de Türkiye entre quatrocentas mil e quinhentas mil pessoas foram transferidas de outros países para se estabelecerem em Afrin. Numa entrevista, o porta-voz da ODHA, İbrahim Şexo, lembrou que o povo de Afrin resistiu aos ataques turcos durante 58 dias. O representante curdo acrescentou: “Afrin foi atacado por 72 aviões, dezenas de tanques, 25 mil mercenários e milhares de soldados. Em alguns casos, também usaram gás químico. Nos últimos dias da ocupação cometeram principalmente atrocidades contra civis.
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A ocupação de Afrin pela Turquia não é um acontecimento isolado. Em Rojava, forças mercenárias apoiadas por Ancara também controlam as áreas de Al Bab, Gîre Spî e Serêkaniyê, todas tomadas aos seus povos originários e governadas pela Administração Autónoma do Norte e Leste da Síria, a autoridade máxima que reúne curdos, assírios, arménios e árabes de diferentes pensamentos políticos e religiosos.
Para o governo do Presidente Recep Tayyip Erodgan, o que está a acontecer em Rojava é inaceitável. Acima de tudo, tendo em conta que mais de vinte milhões de residentes curdos vivem no sudeste da Turquia. E que uma grande maioria apoia o Movimento de Libertação do Curdistão e o confederalismo democrático, o paradigma sintetizado por Abdullah Öcalan, que promove a libertação das mulheres, o ambientalismo, a organização comunitária e uma economia anticapitalista. Por hastear as bandeiras do confederalismo democrático, Öcalan está preso há mais de duas décadas na ilha-prisão de Imrali, uma base militar no coração do Mar de Mármara.
Com a ocupação de Afrin, Türkiye viola as leis internacionais mais básicas. Mas os Estados Unidos, a Rússia e a União Europeia (UE) não se importam muito. Todos continuam a vender toneladas e toneladas de armas a Ancara. E todos querem ter Erdogan ao seu lado. Não importa que o presidente turco lidere um regime repressivo e autoritário. Para Washington, Moscovo e Bruxelas o objectivo é conter e usar Erdogan como acharem adequado. Os gritos da população de Afrin que sobreviveu ao massacre e que agora inundam os campos de refugiados, aparentemente, não chegam aos escritórios onde são definidas estratégias para dividir, mais uma vez, o Médio Oriente.
LEANDRO ALBANIJornalista argentino especializado em questões internacionais. Autor de quatro livros sobre o Curdistão.
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