quarta-feira, 15 de janeiro de 2025

Anais das redes sociais - A LIBERDADE SEGUNDO ZUCKERBERG


O aceno da Meta à extrema direita reforça a descrença de que as big techs possam, algum dia, agir voluntariamente pelo bem comum

Pedro Abramovay e Yasmin Curzi de Mendonça

Em dezembro de 2018, Mark Zuckerberg fez um post em seu perfil no Facebook. Como um usuário qualquer, enumerou suas conquistas pessoais naquele ano. Orgulhava-se de ter tentado resolver “algumas das mais importantes questões” da plataforma, como a “prevenção contra interferência em eleições” e a contenção dos “discursos de ódio e desinformação”. O bilionário garantia que o Facebook havia mudado muito desde 2016, ano em que Donald Trump foi eleito e o Brexit aprovado com o impulso de notícias falsas disseminadas na rede social.

Continuou: “Nós alteramos essencialmente nosso DNA para focar mais em prevenir danos em todos os nossos serviços, e redirecionamos sistematicamente uma grande parte de nossa empresa para trabalhar na prevenção de danos. Temos agora mais de 30 mil pessoas trabalhando em proteção e investimos bilhões de dólares em segurança anualmente.” A mensagem é longa. Fala ainda sobre a repressão a contas falsas, a contratação de checadores de fatos e o uso da moderação contra discursos de ódio.

A estrutura descrita por Zuckerberg era realmente robusta e incluía uma inédita “comissão eleitoral independente de pesquisa”, responsável por coibir crimes políticos na plataforma. Tudo isso – a comissão, a moderação, os checadores, a repressão a contas falsas – foi demolido na semana passada. Em um vídeo de poucos minutos publicado em 7 de janeiro, Zuckerberg chamou de censura o esforço do qual se dizia muito orgulhoso em 2018.

O que levou o dono do Facebook (agora, Meta) a uma guinada tão brusca?

A desinformação e todo tipo de descalabro não desapareceram no decorrer desses seis anos, embora tenham se adaptado a novos formatos e redes (em muitos países, o Facebook perdeu protagonismo para o Instagram, que também é da Meta, e para o TikTok). O alcance das redes sociais tampouco diminuiu – pelo contrário. No Brasil, uma parcela significativa da população se informa quase exclusivamente pelo WhatsApp (também da Meta) e já se mostrou vulnerável a teorias conspiratórias rocambolescas.

O nome dessa guinada é oportunismo. A vitória de Joe Biden, em 2020, trouxe consigo algumas medidas que contrariaram os interesses do Vale do Silício. A mais importante talvez tenha sido a nomeação de Lina Khan para presidir o Federal Trade Commission (FTC), agência do governo americano que processou a Meta e a Amazon por medidas anticompetitivas e formação de monopólio. Khan, uma jovem advogada de 35 anos, se notabilizou como uma voz crítica às gigantes de tecnologia. Angariou a inimizade da trinca que governa parte de nossas vidas: Elon Musk, Jeff Bezos e Mark Zuckerberg.

Para os três, a aliança com Trump foi oportuna. Escondido sob o discurso da liberdade de expressão sem restrições, reside o interesse econômico. Acenando para o novo presidente, Zuckerberg busca decisões e acordos que inviabilizem – ou ao menos limitem – as investigações contra a Meta. A empresa quer manter intacto seu domínio sobre a internet, hoje parcialmente ameaçado pelo TikTok e aplicativos similares.

Em março de 2018, o mundo se assombrou com uma revelação do The Guardian. O jornal inglês descobriu que a empresa Cambridge Analytica havia obtido dados de 50 milhões de perfis do Facebook com o objetivo de montar o que, até então, era o mais sofisticado programa de desinformação eleitoral já visto. Programa que trabalhou intensamente do outro lado do Oceano Atlântico, turbinando a campanha presidencial de Trump em 2016.

A reação à denúncia foi enorme. O Facebook, que entregou de bandeja os dados de seus usuários sem que eles consentissem com isso, perdeu bilhões de reais em valor de mercado e entrou na mira de autoridades, tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra. Olhando em retrospecto, o episódio marcou uma mudança histórica na relação entre internet e democracia.

No fim dos anos 1990, o mundo digital era puro otimismo. Acreditava-se que a democracia poderia ser revitalizada agora que – como escreveu Yochai Benkler em A Riqueza das Redes – os indivíduos tinham voz própria, livres da opressão da mídia tradicional. O escândalo da Cambridge Analytica mostrou pela primeira vez o lado sombrio desse sonho. As redes, onde a desinformação nadava de braçadas, também tinham potencial destrutivo. O processo de “plataformização” da internet, que concentrou os usuários em alguns poucos aplicativos, criou um terreno fértil para manipulação da opinião pública. Anúncios pagos ou algoritmos treinados para capturar a atenção começaram a priorizar conteúdos agressivos e mentirosos, que geram mais engajamento e, consequentemente, mais dinheiro.

A lista de escândalos que vieram à tona desde então é extensa. No plebiscito de 2016 sobre o acordo de paz na Colômbia, campanhas de desinformação distorceram os termos da negociação, o que colaborou para a vitória do “não” e frustrou a pacificação definitiva do conflito com as Farc. Em Myanmar, o Facebook foi instrumento de uma campanha de ódio contra a minoria étnica rohingya, criando as condições que resultaram em um genocídio. A desinformação sobre vacinas, principalmente durante a pandemia de Covid, contribuiu – e o faz ainda hoje – para a baixa cobertura vacinal de alguns países. Atendendo aos interesses de petroleiras, conteúdos com desinformação sobre as mudanças climáticas circulam livremente pelas redes. Somam-se a isso os ataques frequentes a personalidades públicas, sobretudo mulheres da política e do jornalismo. É aquilo que a relatora especial da ONU para a Liberdade de Expressão e Opinião, Irene Khan (sem parentesco com Lina Khan), chama de “desinformação de gênero”.

A internet, da forma como se desenvolveu, não acabou com os chamados gatekeepers – eles apenas passaram a ser outros. No lugar da mídia tradicional, entraram Facebook, WhatsApp e TikTok. A promessa de descentralização comunicacional se esvaiu.

Zuckerberg, num primeiro momento, reagiu de forma hesitante ao escândalo da Cambridge Analytica. Depois, provavelmente temendo retaliações do poder público, anunciou medidas incisivas para conter a desinformação e limpar a barra da empresa. Por isso o post celebratório em dezembro daquele ano, quando as coisas pareciam caminhar numa boa direção. Os esforços de moderação de conteúdo, com participação de especialistas e organizações da sociedade civil, nutriram a esperança de que a Meta pudesse mesmo melhorar – por mais que seu principal modelo de negócios ainda dependesse do impulsionamento de conteúdos de qualidade duvidosa.

O retrocesso anunciado por Zuckerberg joga tudo de volta à estaca zero. E renova o ceticismo de que empresas como a Meta possam agir de forma voluntária pelo bem comum, sem que seja necessária uma regulamentação obrigando-as a adotar boas práticas.

Àluz desses acontecimentos, é curioso pensar no filme Rede Social (2010), que retrata os primórdios do Facebook. O primeiro produto desenvolvido por Zuckerberg foi um algoritmo que ranqueava as mulheres mais bonitas de Harvard. É como se, nessa atitude francamente machista, estivesse o embrião daquilo que mais tarde se proliferou na rede social – a misoginia e a desinformação instrumentalizada contra mulheres.

O deslocamento entre ideologia e prática – a “liberdade de expressão” e o discurso de ódio – não existe só nas redes. A sociedade americana é marcada por essa contradição desde a sua origem. Exemplo disso é Thomas Jefferson. O ex-presidente (1801-1809) é autor de uma das mais bonitas declarações de amor à democracia e à liberdade – a declaração de independência dos Estados Unidos. Nela, afirmou ser uma “verdade autoevidente que todos os homens são criados iguais, que foram dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, entre eles a Vida, a Liberdade e a busca pela Felicidade”. Escreveu tais palavras sem se enrubescer com o fato de possuir centenas de pessoas escravizadas. O liberalismo escravocrata, pilar da fundação dos Estados Unidos e do Brasil, ajudou a forjar sociedades que combinam, não sem algum cinismo, os mais belos ideais iluministas com as maiores atrocidades.

É sob esse ângulo que devemos interpretar o discurso de Zuckerberg no dia 7 de janeiro. O bilionário disse que, para lutar contra a “censura” e defender a “liberdade de expressão”, é necessário se livrar dos mecanismos de controle e moderação de conteúdo que ele havia anunciado, feliz, em 2018. Proferiu essas palavras com o objetivo de se aliar a um movimento que tentou dar um golpe de Estado e acabar com a democracia americana. Intento que, devemos acreditar, buscava tão somente a “liberdade”.

Zuckerberg disse ainda que quer cerrar fileira com Trump no combate às “cortes secretas” da América Latina que, a seu ver, ameaçam a liberdade de expressão. Ele se refere aos tribunais nada secretos – entre eles o STF – que vêm tentando proteger minimamente as instituições democráticas de países onde a extrema direita busca formas violentas de tomar o poder e abolir o estado de direito.

No começo de tudo, as empresas do Vale do Silício propagavam uma cultura libertária e de respeito às minorias. Depois da primeira eleição de Trump, postaram-se como polos de resistência aos valores da extrema direita, ainda que tivessem ajudado o candidato republicano. CEOs como Zuckerberg e Jack Dorsey, do Twitter (hoje X), se opuseram publicamente a políticas de Trump, como o “Muslim Ban”, que suspendeu por meses a entrada de imigrantes de alguns países muçulmanos nos Estados Unidos.

A convicção democrática, vemos agora, não era muito consistente. Em nome dos próprios interesses, Zuckerberg e seus companheiros pularam sem hesitar do barco da democracia. Abraçaram a compreensão torpe da extrema direita sobre “liberdade”, nada mais do que uma maquiagem ideológica para que possam continuar sendo o que sempre foram: homens brancos à frente de grandes corporações que, para prosperar, precisam que a sociedade mantenha inalteradas as correlações de poder existentes. Difícil não ver em Trump um aliado à altura da tarefa.







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