quinta-feira, 23 de janeiro de 2025

Democracia e liberdade são conquistas do capitalismo?


Por Erik Olin Wright
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Muitas pessoas sentem que a democracia, em especial a liberdade, está profundamente conectada ao capitalismo. Milton Friedman, em seu livro Capitalismo e liberdade, chegou a argumentar que o capitalismo era uma condição necessária para a realização de ambos valores. E talvez esse seja o caso, se tivermos uma visão mais panorâmica sobre a história, considerando que a emergência (e o subsequente desenvolvimento) do capitalismo está diretamente associada à expansão da liberdade individual para muitas pessoas e, eventualmente, à disseminação das formas mais democráticas de poder político. Dessa maneira, deve parecer estranho para quem tem que lidar com as críticas centrais ao capital amparando-se nos valores de democracia e liberdade.

A afirmação de que o capitalismo prejudica a democracia e a liberdade é mais complexa do que simplesmente a oposição entre o capitalismo e esses valores. Em vez disso, proponho que a lógica seja de que o capitalismo gera graves déficits na realização dos valores de democracia e liberdade. O sistema promove a emergência e até mesmo o parcial desenvolvimento tanto da democracia quanto da liberdade, é verdade, mas obstrui a total realização desses valores. E aqui há cinco argumentos que corroboram esse ponto.

O primeiro é que os limites entre a esfera pública e a privada, da forma como eles são constituídos no capitalismo, acabam excluindo muita gente da capacidade de tomar decisões cruciais e de participarem do controle democrático. Talvez o direito mais fundamental que acompanha as companhias detentoras do capital seja o seu direito de decidir onde e quando investir e desinvestir. No momento em que uma corporação decide mover sua produção de um lugar para outro, isso é uma escolha privada. Mesmo que signifique, por exemplo, o fechamento de uma fábrica nos Estados Unidos e sua subsequente mudança para um país com trabalho mais barato e com piores regulações ambientais, e que isso acabe com a vida dos norte-americanos que dependiam da fábrica e destrua o valor dos imóveis na comunidade. As pessoas que vivem nessa vizinhança devastada não vão poder participar dessa decisão, ainda que ela afete imensamente suas vidas. Mesmo que alguém possa dizer que tal concentração de poder nas mãos da empresa é uma necessidade para garantir a eficiente alocação de capital para o funcionamento da economia capitalista, o fato dessa decisão ser excluída de qualquer controle democrático inequivocamente viola a essência dos próprios valores democráticos de que as pessoas devem poder participar, de forma significativa, das decisões que afetam suas vidas.

O segundo argumento é que o controle privado sobre grandes investimentos cria uma constante pressão nas autoridades públicas para que criem regras favoráveis aos interesses dos capitalistas. A ameaça de desinvestimento e a mobilidade do capital são constantes no cenário de discussões sobre políticas públicas e, consequentemente, os políticos (independentemente de suas orientações ideológicas) são forçados a se preocupar com a manutenção de “um clima favorável para os negócios”. O fato de que os interesses de uma classe de cidadãos tenham prioridade sobre os dos demais é uma
violação dos valores democráticos.

O terceiro é que os ricos têm muito mais acesso ao poder político do que os cidadãos que não são ricos. Isso funciona assim em todas as democracias capitalistas, ainda que em alguns países as desigualdades baseadas na riqueza sejam maiores do que em outros. Os mecanismos específicos para esse acesso mais amplo são muitos: podem ser as contribuições para campanhas eleitorais; os esforços lobistas de financiamento; as redes sociais e de parentesco das elites; subornos diretos e outras formas de corrupção. Nos Estados Unidos, por exemplo, não são apenas indivíduos ricos, mas as próprias corporações capitalistas que não lidam com praticamente nenhuma restrição a sua capacidade de investir recursos privados para fins políticos. Isso acaba violando o princípio democrático de que todos os cidadãos deveriam ter igual acesso à participação no controle do poder político.

Quarto: é permitido às empresas capitalistas organizarem verdadeiras ditaduras nos ambientes de trabalho. Um poder essencial que reside nas empresas de propriedade privada é que os donos têm o direito de dizer aos seus empregados o que devem fazer. Essa é a base dos contratos empregatícios: quem é contratado concorda em seguir as ordens do empregador em troca de um salário. Obviamente um empregador é livre para dar autonomia relativa aos seus funcionários e, em algumas situações, essa pode ser uma forma de até mesmo aumentar a lucratividade da organização do trabalho na empresa. Alguns donos podem, por sua vez, oferecer uma significativa autonomia aos trabalhadores por mera questão de princípios, mesmo sem maximização dos lucros. Mas ainda assim, são os proprietários que têm o poder fundamental de decidir quando permitir tal autonomia. Isso acaba violando os princípios de autodeterminação subjacentes tanto à democracia quanto à liberdade.

Por fim, as desigualdades na renda e na riqueza intrínsecas ao capitalismo criam desigualdades naquilo que o filósofo Philippe van Parijs chama de “liberdade real”. Independentemente do que se quer dizer quando se fala sobre liberdade, ela é basicamente a capacidade de dizer “não”. Uma pessoa rica pode decidir livremente que não vai trabalhar em troca de salário; uma pessoa pobre que não tenha independência para garantir sua subsistência não poderá rejeitar o emprego tão facilmente. Mas a liberdade como valor vai muito além da capacidade de dizer não; ela também é a capacidade de agir positivamente diante dos planos de vida de alguém. E, nesse ponto, o capitalismo priva as pessoas de uma liberdade real. A pobreza em meio à abundância não apenas nega igual acesso às condições de uma vida plena; ela também nega o acesso aos recursos necessários para a autodeterminação.

Essas são todas consequências intrínsecas do capitalismo enquanto estrutura econômica. Mas da mesma forma que no valor igualdade/justiça, isso não significa que uma sociedade capitalista – uma sociedade na qual o capitalismo é dominante na economia – não se possa fazer nada para reagir a esses efeitos. Em diferentes épocas e lugares, muito foi feito para mitigar os efeitos antidemocráticos do capitalismo: limites públicos podem ser impostos aos investimentos privados das mais diferentes formas, procurando dirimir a fronteira que separa a esfera pública da privada; um forte setor público e formas ativas de investimento público podem enfraquecer a mobilidade do capital; restrições ao uso de riqueza privada em eleições e as várias formas de financiamento público de campanha podem reduzir o acesso privilegiado dos mais ricos ao poder político; leis trabalhistas podem fortalecer o poder coletivo dos trabalhadores por meio dos seus sindicatos e criar direitos trabalhistas mais robustos dentro dos locais de trabalho, incluindo exigências de que haja conselhos de trabalhadores na administração das empresas; uma imensa variedade de políticas de bem-estar social que podem aumentar a liberdade real de quem não tem acesso a uma riqueza privada. As características antidemocráticas do capitalismo podem ser parcialmente controladas, ainda que não possam ser eliminadas, mas somente em condições políticas favoráveis


Como ser anticapitalista no século XXI?, de
Como ser anticapitalista no século XXI? é um livro com forte ênfase no ativismo e na militância, pouco afeito a academicismos e voltado para os problemas reais da construção de uma alternativa anticapitalista hoje. Nele, o anticapitalismo é possível como uma defesa moral contra as injustiças e como uma instância prática e alternativa para um maior desabrochar de talentos humanos. Wright não apenas elabora um diagnóstico crítico do capitalismo, como também apresenta propostas sobre o experimento que ele entende serem socialistas em nichos do sistema capitalista dominante. Com otimismo e clareza analítica, apresenta a viabilidade de arranjos institucionais alternativos. Baseado na compreensão híbrida dos modos de organizar a economia e a vida social, inova na conceituação e crítica da transformação social.

A edição brasileira traz um Prefácio de João Alexandre Peschanski, sociólogo que trabalhou com Wright no Departamento de Sociologia da Universidade de Wisconsin-Madison. Também completa a obra um posfácio escrito pelo eminente sociólogo Michael Burawoy, grande amigo de Wright, que rememora a biografia e as valiosas contribuições do autor do livro.

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Erik Olin Wright nasceu em 1947 e foi um dos mais eminentes pensadores do marxismo analítico, grande influência para estudiosos e pensadores das teorias sociais. Ex-presidente da Associação dos Sociólogos Norte-Americanos, foi aluno do grande historiador marxista inglês Christopher Hill. Desenvolveu uma importante obra sobre alternativas ao capitalismo, que ele chamava de utopias reais, e apresentou formas inovadoras de estudos do conceito de classe social.



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