Fernanda Torres com o prêmio Globo de Ouro de melhor atriz e Vinícius Júnior o prêmio de melhor jogador do mundo no The Best FIFA de 2024. Créditos: Divulgação/Globo de ouro VINIJR/Instagram
Fernanda Torres e Vinícius Júnior, dois brasileiros com biografias extraordinárias ganharam prêmios que elevaram toda a nação a um patamar de destaque no contexto global
Jonathan da Silva Marcelino
O Brasil ainda está sob o efeito inebriante da
conquista inédita protagonizada pela atriz Fernanda Torres, que se tornou a primeira atriz brasileira a ganhar o Globo de Ouro, um dos prêmios mais prestigiados do cinema mundial. Fernanda foi laureada como a melhor atriz de drama por sua atuação no filme Ainda Estou Aqui, do diretor Walter Salles.
A admirável façanha ocorreu dezenove dias depois de o atleta Vinícius Júnior ter conquistado o prêmio de melhor jogador do mundo no The Best FIFA de 2024. O atacante do Real Madrid se tornou o primeiro brasileiro a ganhar a premiação desde 2007, quando o meio-campista Kaká conquistou o troféu para o país.
Embora não exista nenhuma relação a priori entre esses dois acontecimentos memoráveis, tanto a premiação da atriz Fernanda Torres quanto a do futebolista Vinícius Júnior, cada um em sua respectiva área, reconhecidos publicamente como os melhores do mundo, revelam que estamos vivendo um momento auspicioso no que concerne à ascensão de brasileiros no contexto das artes cênicas e do esporte. Inclusive, no último, o Brasil vem se destacando há algum tempo, apresentando uma safra de atletas de excelência, vide o desempenho espetacular da ginasta Rebeca Andrade e da judoca Beatriz Souza, que brilharam nos Jogos Olímpicos do ano passado. Beatriz conquistou o primeiro ouro do Brasil em Paris 2024, e a ginasta Rebeca, bicampeã olímpica, é a maior medalhista da história do Brasil.
Mas, por ora, vamos nos concentrar nos feitos notáveis das estrelas do momento: Fernanda Torres e Vinícius Júnior, dois brasileiros com biografias extraordinárias que, ao se consagrarem recentemente, elevaram toda a nação a um patamar de destaque no contexto global. Evidentemente, uma conquista da importância simbólica alcançada por essa dupla – Globo de Ouro e The Best FIFA – deveria provocar um sentimento de orgulho, felicidade e satisfação em todos os nossos conterrâneos, seja no Brasil ou em qualquer parte do mundo. Ao menos, esse era o esperado. Entretanto, ao tratar da realidade brasileira, nada é tão simples, e sempre existe uma camada adicional de “complexidade sociológica”, especialmente para agradar grupos, classes e segmentos sociais com preferências, costumes, valores e ideologias tão diametralmente divergentes.
É constrangedor, mas o que temos testemunhado nesses últimos dias, na contramão de qualquer justificativa plausível, é uma quantidade expressiva de ofensas, de menções infames e recalcadas que têm se multiplicado nas redes, com o objetivo de obliterar a contundência e a relevância desse momento histórico para os homenageados, bem como para todo o país.
É bem verdade que, já há algum tempo, as mídias sociais foram capturadas por uma gente extremista e colérica, que não dispensa uma oportunidade de destilar o ódio, algo que deve aumentar potencialmente com as novas mudanças anunciadas pela Meta no que tange às questões de “confiança, segurança e moderação de conteúdo“. Mas esse também é um debate para uma outra oportunidade. Nessas poucas linhas que disponho, quero lançar luz sobre um aspecto que considero de absoluta pertinência e que não posso deixar de abordar neste texto.
Ao promover uma observação mais atenta das centenas e milhares de ofensas publicadas por usuários nas plataformas digitais, constatei uma curiosa coincidência. Os que produzem ataques direcionados à atriz Fernanda Torres são rigorosamente os mesmos que publicam injúrias contra o jogador Vinícius Júnior. São pessoas da mesma estirpe, em geral ultraconservadoras, com uma retórica violenta muito semelhante. Eles desqualificam a atriz e questionam seus méritos porque ela adquiriu notoriedade global ao interpretar uma personagem real, a advogada Eunice Paiva, mãe de cinco filhos e esposa do engenheiro e deputado Rubens Paiva, preso e assassinado pelos órgãos de segurança do regime militar. Eunice, interpretada (com exímio) por Fernanda, dedicou sua vida à luta pela responsabilização dos culpados pelo homicídio de seu marido.
Vale lembrar que, ainda em 2025, existe um grupo de brasileiros (minoritários, mas ruidosos) que contesta a veracidade da violência, corrupção e autoritarismo do regime que vigorou no Brasil entre os anos de 1964 e 1985. Para estes, a Ditadura Militar não foi real, mas uma falácia orquestrada por grupos de esquerda. Essa gente limítrofe, fruto desses tempos nefastos de ‘idade mídia’, tenta reescrever a história do Brasil segundo seus próprios ditames e interesses. Por essa razão, o sucesso da atriz Fernanda Torres e do filme Ainda Estou Aqui provoca tanto descontentamento, uma vez que, ao se consagrar como melhor atriz de drama, Fernanda projeta o filme e sua mensagem de denúncia contra a Ditadura Militar para todas as regiões do mundo.
Quanto ao jogador brasileiro, o que mais incomoda os descontentes é o fato de Vinícius ser um jovem negro, oriundo da periferia do Rio de Janeiro, capaz de protagonizar com coragem e intrepidez a luta antirracista no futebol europeu. O futebolista tem se posicionado com contundência diante dos ataques racistas que sofre frequentemente nos jogos da La Liga. Essa postura altiva e aguerrida, em vez de despertar empatia e solidariedade, tem provocado em alguns de nossos conterrâneos um sentimento de revolta e repulsa, pois não suportam a ideia de um negro que ouse ‘erguer sua voz’ contra a violência racial na Europa ou no Brasil. Não toleram a possibilidade de um negro que não conhece o “seu lugar” e que não “abaixa a cabeça”, não rindo dos insultos, como se a ofensa racial não lançasse no campo da indignidade toda a humanidade.
Arrisco afirmar que Fernanda e Vinícius representam a síntese mais bem acabada do Brasil contemporâneo. Eles representam nossa gente corajosa, resiliente e talentosa, capaz de brilhar nos palcos mais prestigiados do mundo. Em um país estruturalmente racista, com disparidades abissais entre negros e brancos, onde o genocídio negro é um projeto de Estado em franco processo de desenvolvimento, e um jovem negro tem quatro vezes mais chances de morrer do que um branco, é o jogador brasileiro quem nos recorda que a juventude negra brasileira precisa viver e ser feliz para atingir todas as suas possibilidades de realização.
Em uma sociedade despudoradamente machista e misógina, que atualmente ocupa o quinto lugar no ranking mundial de feminicídios, segundo o Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), é a atriz Fernanda Torres que nos traz à memória que as mulheres são o passado, o presente e o futuro do Brasil, pois elas são portadoras da esperança, mesmo ‘nos momentos mais difíceis, como os quais Eunice Paiva passou’, tal como verbalizou Fernanda em seu discurso de premiação.
Por fim, quero asseverar que Fernanda Torres e Vinícius Júnior merecem ser reconhecidos, celebrados e homenageados por seus feitos, por sua existência que embeleza e enche de orgulho nossa brava gente brasileira. E quanto aos haters, os inimigos do Brasil, os que tentam distorcer a história brasileira para satisfazer suas mesquinhas conveniências, aqueles que propagam o ódio como forma de política, que advogam teses irracionais em nome da regressão civilizatória, eu vos deixo com as palavras de Drummond, que sabiamente nos adverte: “Não, o tempo não chegou de completa justiça. O tempo é ainda de fezes, maus poemas, alucinações e espera…’. Mas, contra todas as probabilidades e expectativas, ‘uma flor nasceu na rua! Uma flor ainda desbotada… garanto que uma flor nasceu… Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.”
Jonathan da Silva Marcelino é geógrafo, mestre e doutor em Geografia Humana pela USP. Pós-doutorando no Instituto de Estudos Brasileiros da USP.
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