
Imagem: Somchai Kongkamsri
ERIK CHICONELLI GOMES*
Como o Itamaraty operou um sistema secreto de vigilância global durante a ditadura militar
A história da ditadura militar brasileira continua revelando suas camadas mais obscuras, mesmo décadas após seu fim. Entre as descobertas mais impactantes está a operação de uma divisão clandestina de inteligência dentro do próprio Ministério das Relações Exteriores, o Centro de Informações do Exterior (Ciex), que monitorou mais de 17 mil pessoas ao redor do mundo durante duas décadas de atividade.
Esta revelação não apenas desconstrói a imagem do Itamaraty como uma instituição neutra durante o período ditatorial, mas também evidencia a sofisticação e o alcance global do aparato repressivo brasileiro. O sistema de vigilância estabelecido demonstra como a diplomacia brasileira foi instrumentalizada para servir aos interesses do regime militar, transformando embaixadas e consulados em pontos de coleta de informações sobre cidadãos considerados subversivos.
A magnitude desta operação clandestina, que permaneceu em funcionamento de 1966 a 1986, revela um capítulo crucial da história brasileira que transcende as fronteiras nacionais. O monitoramento sistemático de brasileiros e estrangeiros no exterior demonstra como o regime militar brasileiro expandiu seu controle para além do território nacional, estabelecendo uma rede de vigilância que se integrava a um sistema maior de repressão na América Latina.
Prado comenta que a criação do Ciex representou uma ruptura significativa na tradição diplomática brasileira, inaugurando um período em que a política externa foi subordinada aos imperativos da segurança nacional¹. A autora destaca como esta mudança afetou profundamente a estrutura e o funcionamento do Itamaraty.
De acordo com Fico, o estabelecimento do Ciex foi parte de um processo maior de militarização das instituições brasileiras, onde órgãos civis foram gradualmente incorporados à estrutura de informações e repressão do regime². Este processo refletia a paranoia anticomunista que caracterizou o período.
Silva argumenta que a cooperação entre o Ciex e outros serviços de inteligência sul-americanos foi fundamental para a consolidação da Operação Condor³. Esta colaboração demonstra como as estruturas diplomáticas foram utilizadas para facilitar a repressão transnacional.
Setemy analisa como o Ciex desenvolveu métodos sofisticados de vigilância, incluindo a infiltração em comunidades de exilados e o monitoramento de atividades culturais e acadêmicas no exterior⁴. Estas práticas revelam a amplitude do controle exercido sobre a diáspora brasileira.
Green destaca o impacto devastador desta vigilância sobre as comunidades de exilados, que viviam sob constante temor de serem descobertos e deportados para o Brasil⁵. O autor ressalta como esta pressão afetou a organização política da resistência no exterior.
As pesquisas de Quadrat demonstram como o Ciex contribuiu para a construção de um banco de dados internacional sobre opositores políticos, facilitando a coordenação repressiva entre as ditaduras do Cone Sul⁶. Esta infraestrutura informacional foi crucial para a eficácia da repressão transnacional.
O funcionamento do Ciex representou uma violação sistemática dos direitos humanos e das convenções internacionais que protegem refugiados políticos. A utilização da estrutura diplomática para fins de espionagem e perseguição política demonstra a complexidade do aparato repressivo da ditadura militar.
A classe trabalhadora exilada foi particularmente afetada pela atuação do Ciex, que monitorava especialmente sindicalistas e líderes operários no exterior. Este foco demonstra como o regime militar via o movimento trabalhista organizado como uma ameaça fundamental à sua estabilidade.
O legado desta vigilância permanece relevante hoje, levantando questões sobre os limites da atuação diplomática e a necessidade de maior transparência nas atividades de inteligência do Estado. A revelação dos documentos do Ciex contribui para a compreensão dos mecanismos de controle e repressão utilizados durante a ditadura.
A documentação agora disponível permite reconstruir as redes de colaboração entre diferentes agências de inteligência na América Latina, evidenciando como a repressão política foi coordenada em nível regional. Esta perspectiva é fundamental para entender a dimensão internacional da ditadura brasileira.
Os arquivos do Ciex revelam também como a vigilância se estendia além dos opositores políticos diretos, incluindo artistas, intelectuais e profissionais liberais que manifestavam qualquer forma de dissidência em relação ao regime. Esta amplitude demonstra a natureza totalitária da vigilância exercida.
A abertura destes arquivos representa um passo importante no processo de justiça de transição brasileiro, permitindo que vítimas e familiares compreendam melhor os mecanismos de perseguição aos quais foram submetidos. Este conhecimento é fundamental para a construção da memória histórica do período.
A atuação do Ciex demonstra como instituições aparentemente neutras podem ser cooptadas por regimes autoritários para fins de repressão política. Esta lição histórica permanece relevante em um contexto global onde o equilíbrio entre segurança nacional e direitos civis continua sendo debatido.
O estudo deste período obscuro da diplomacia brasileira oferece importantes lições sobre a necessidade de mecanismos de controle democrático sobre as atividades de inteligência do Estado. A transparência e a prestação de contas são fundamentais para evitar a repetição de abusos similares.
A história do Ciex nos lembra que a construção da democracia exige vigilância constante e compromisso com a transparência institucional. O conhecimento deste passado é crucial para fortalecer as instituições democráticas e prevenir retrocessos autoritários.
O legado desta história continua ressoando na sociedade brasileira contemporânea, lembrando-nos da importância de preservar a memória histórica como instrumento de fortalecimento democrático e garantia de não repetição de violações aos direitos humanos.
*Erik Chiconelli Gomes é pós-doutorando na Faculdade de Direito na USP.
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