sábado, 15 de fevereiro de 2025

Mentiras políticas na era digital

Imagem: Büşranur Aydın

ADEILDO OLIVEIRA*

O contexto comunicativo e informacional das sociedades de massa criou um ambiente onde as fraudes e as mentiras são colocadas na mesma categoria de informação ao lado das verdades

1.

Em “A Verdade saindo do poço”, de 1896, o escultor e pintor francês Jean-Léon Gérome retrata a parábola “da verdade e da mentira. Em resumo, a parábola conta que a verdade e a mentira se encontraram e decidiram caminhar juntas até encontrarem um poço, onde a mentira convenceu a verdade a entrar na água. Aproveitando um descuido, a mentira roubou as roupas da verdade e fugiu, vestindo-se como ela.

A verdade, recusando-se a usar as roupas da mentira, ficou nua, mas ao caminhar assim pelas ruas, foi rejeitada e julgada pelas pessoas, que preferiram a mentira disfarçada de verdade. Em uma versão da parábola, a verdade, desiludida, esconde-se para sempre; em outra, continua sua jornada nua, percebendo que muitos preferem a ilusão da mentira à realidade da verdade nua e crua.

Entende-se que nessa obra, pode-se enxergar um retrato do conflito histórico entre verdade e política. Na última década, não faltaram exemplos concretos dessa tensão histórica no cenário político mundial, comprovando a solidez de uma frase atribuída a Oscar Wilde: “a arte imita a vida mais do que a vida imita a arte.”

A posse de Barack Obama em 2009 contou com mais de 1,8 milhão de pessoas e 67% de aprovação. Já a posse de Donald Trump, em 2017, teve cerca de 600 mil pessoas e 45% de aprovação. Mesmo assim, o porta-voz Sean Spicer afirmou que foi a maior posse da história. Imagens e números oficiais mostravam o contrário, desmentindo sua declaração. Questionada sobre o assunto, a conselheira Kellyanne Conway defendeu Sean Spicer. Ela alegou que ele estava apresentando “fatos alternativos”.[i]

Surgia aí uma expressão que virou símbolo da negação dos fatos evidentes e que, na nossa perspectiva, expõe a permanência do histórico embate entre verdades factuais e opiniões neste início de século XXI. Outros exemplos que corroboram esse entendimento podem ser citados.[ii]

Durante a pandemia de COVID-19, viu-se uma negação generalizada das mortes por todo o planeta e um ataque sistemático à efetividade das vacinas e à sua importância para a contenção das mortes. No Brasil, políticos projetam suas carreiras nas redes sociais e monetizam divulgando mentiras.

Ao participar de um evento relacionado à posse do presidente Donald Trump, Elon Musk fez um gesto – no mínimo, inusitado – que gerou grande polêmica e questionamentos nas redes sociais. O fato é que o gesto foi uma notória saudação nazista (sieg heil ou Hitlergruß) e qualquer defensor dos direitos fundamentais e da democracia, com noções mínimas sobre todas as problemáticas históricas que o gesto pode suscitar, normalmente evitaria fazê-lo em contextos de manifestações políticas ostensivas.

Por outro lado, aqueles que buscam os holofotes – sedentos por atenção – e cujos objetivos políticos são marcados pela ausência de valores republicanos e democráticos conseguem facilmente disfarçar atos dessa natureza. No caso de Elon Musk, bastou uma simples frase – “meu coração está com vocês” – entre o gesto e sua repetição para que aqueles mais simpáticos ao governo de Donald Trump e ao homem mais rico do mundo ignorassem completamente a simbologia subjacente aquilo.

O que deveria ser algo relegado ao passado e levar aqueles que o repetem ao ostracismo tomou, então, a forma de um apito de cachorro (dog whistle), tudo graças à polarização afetiva que acomete boa parte do eleitorado mundial já há alguns anos.[iii]

Não especularei sobre as possíveis razões que levaram Elon Musk a fazer um gesto que ele e qualquer um que conheça minimamente a história do século XX sabe o que significa. Isso, deixo ao crivo pessoal dos leitores.

A questão sobre a qual propõe-se a reflexão é que os acontecimentos relatados geraram uma onda de acusações virtuais recíprocas de mentira, manipulação e deturpação da realidade e dos fatos subjacentes ao famigerado ato. Negações de fatos e gestos notórios. Negações de informações facilmente aferíveis com uma simples pesquisa virtual comprometida com a verdade. Em síntese: um quadro geral de negação ou deturpação dos fatos e imagens.

2.

Esse quadro de miopia política – acentuado por uma crise na autoridade informacional da imprensa – é agravado pela influência do modelo de negócios das big tech e suas novas tecnologias da informação no debate público, como a internet, as plataformas e redes sociais.[iv]

Tais tecnologias da informação democratizaram o debate, dando voz a qualquer um com acesso à rede mundial de computadores. Essas pessoas, muitas vezes sem qualquer checagem dos fatos, compartilham informações que destoam da realidade como se fossem verdades inquestionáveis. Pior, veem gestos ostensivos e evidentes e, ainda assim, negam seus significados historicamente comprovados. As razões disso são as mais variadas, desde vieses de confirmação a interesses políticos e econômicos.[v]

Propõe-se, então, uma reflexão sobre o quadro. Nós, enquanto cidadãos, devemos focar nos fatos, nas ideias e nas mensagens, não no mensageiro. Sei que é difícil para muitos encarar os fatos e a realidade quando eles entram em rota de colisão com nossos desejos, paixões e ideologias – como bem destacou Freud[vi] –, mas é algo necessário.

Aqui, não importa “quem”, mas “o que se fala e o que se faz”. Não importam as supostas intenções, mas as efetivas ações. A preocupação, portanto, deve focar na realidade factual. Isso, porque políticos mentem desde que existe a política, como bem destacou Hannah Arendt ao afirmar que “a veracidade nunca esteve entre as virtudes políticas, e mentiras sempre foram encaradas como instrumentos justificáveis nestes assuntos”.[vii]

A verdade factual, bom, ela também entra no tabuleiro da política, mas o mais comum é que ela seja chamada ao centro das atenções apenas quando serve a interesses políticos. George Orwell já havia denunciado essas práticas em meados do século passado, ao criticar o relativismo ideológico no Reino Unido. Para Orwell, “ninguém busca a verdade, todos estão defendendo uma ‘causa’, com total desconsideração pela imparcialidade ou pela veracidade, e os fatos mais patentemente óbvios acabam ignorados por quem não quer saber deles”.[viii]

Eugênio Bucci descreve tal negação da realidade factual como um fenômeno sustentado por duas estratégias: os apagões do real e o suicídio da consciência. Nos apagões do real, a tecnologia é usada pelo poder para virtualizar os fatos, transformando-os em dados e criando uma separação entre o homem e a realidade. Esse processo substitui a experiência concreta da vida por uma versão virtual, apagando o real. Já no suicídio da consciência, as pessoas negam fatos concretos e verificáveis quando estes entram em rota de colisão com suas convicções pessoais, sejam elas políticas, religiosas ou ideológicas. Assim, o julgamento crítico é bloqueado e a realidade é rejeitada em favor de crenças.[ix]

A filosofia política já debate sobre esse problema há muito tempo. Na alegoria da caverna, Platão opõe o mundo ilusório da caverna à realidade, que só pode ser acessada através da educação (paideia). Maquiavel, por sua vez, enfatizou a relevância da realidade fática para os negócios políticos. Em sua análise sobre o comportamento de governantes, particularmente dos príncipes, ele argumentou parecer-lhe “mais apropriado ir em busca da verdade extraída dos fatos, e não da imaginação”.[x]

Max Weber, ao falar das qualidades do homem político, destacou a paixão, a responsabilidade e o senso de proporção. Este último, especificamente, é visto como uma qualidade psicológica essencial para o político vocacionado. Para Weber, “[s]ignifica isso que ele deve possuir a faculdade de permitir que os fatos ajam sobre si no recolhimento e na calma interior do espírito […]”.[xi]

3.

Nota-se, pois, a preocupação com a importância dos fatos para o pensamento político. Infere-se, também, que as mentiras sempre estiveram no arsenal político e o seu uso como ferramenta de ação política não é característica desta “era de pós-verdades”. Ocorre que, a despeito de a mentira ter sido e ainda ser utilizada como ferramenta de ação política, há, no contexto histórico dos últimos cem anos, um agravamento das mentiras e uma ameaça ainda maior aos fatos do que outrora. Essa ameaça é a manipulação massiva dos fatos e das opiniões que, mais do que enganar, tem apagado a própria linha divisória do que se acredita serem fatos e opiniões.

Ao analisar esse fenômeno, Hannah Arendt argumenta que há distinções entre as mentiras políticas de outrora e as que lhe foram contemporâneas. Realiza essa reflexão apontando as distinções entre as mentiras tradicionais e as mentiras modernas. Ela afirma que a mentira política tradicional lidava com segredos, escondendo dados e intenções do adversário. Era, portanto, direcionada apenas ao adversário político.

Ou seja, não visava iludir a todos. Elas eram comuns na política e na diplomacia, estando restrita aos círculos de estadistas e diplomatas. Desse modo, a mentira política tradicional não tinha a capacidade de destruir a própria verdade. No máximo, era capaz de ocultá-la, enganando apenas os adversários políticos ao causar uma fissura na trama dos fatos. [xii]

Por outro lado – e ainda segundo Hannah Arendt – a mentira moderna lida com fatos conhecidos de todos ou quase todos. É mais lesiva para a verdade factual porque, mais do que enganar o adversário político, busca reescrever a própria trama dos fatos, construindo imagens e destruindo a própria verdade, tornando-a mentira. Arendt argumenta que o mentiroso político moderno engana a si próprio e aos outros, recriando a realidade de modo a nela se encaixar sem fissuras. Para realizar essa tarefa satisfatoriamente, o mentiroso também se autoconvence da sua história.[xiii]

Aqui, ao contrário do “duplipensar” ficcional orwelliano, no qual o sujeito teria a capacidade de “[…] defender ao mesmo tempo duas opiniões que se anulam uma à outra, sabendo que são contraditórias e acreditando nas duas […]”[xiv], o mentiroso político moderno não acredita na realidade, ele a nega completamente e, ao se convencer completamente da própria mentira, destrói a verdade.

Colocada nesses termos, a distinção entre a mentira política tradicional e a moderna representa, na maioria dos casos, “a diferença entre a ocultar e destruir”.[xv] O processo político moderno, portanto, não mais se contenta em ocultar a realidade, pretende, na verdade, aniquila-la por completo.

Logo, o efeito mais lesivo – para a formação do pensamento político – da manipulação massiva dos fatos e opiniões pelo mentiroso político moderno é, portanto, a destruição mental da linha divisória entre o verdadeiro e o falso. Assim, destituídos dessa faculdade mental, os homens não seriam mais capazes de identificar a verdade e a realidade e distingui-la do que é falso. Para Hannah Arendt, não existe solução para esse problema.

No cenário atual, com a hiperconectividade, os meios de comunicação digital acabam se tornando – como se pode inferir de reflexões feitas por Arendt – sucedâneos da realidade, uma vez que construiriam uma nova realidade, substituindo a original.[xvi]

Giovani Sartori, por sua vez, alega que, no universo televisivo, a informação é tudo aquilo que circula nos meios de comunicação. Nesse contexto comunicativo, afirma Sartori que “[…] informação, desinformação, verdade, mentira, é tudo a mesma coisa”.[xvii]

4.

Resumindo: o contexto comunicativo e informacional das sociedades de massa criou um ambiente onde as fraudes e as mentiras são colocadas na mesma categoria de informação ao lado das verdades, favorecendo a ruptura da linha divisória entre verdade sobre os fatos e opiniões, pois o mentiroso ganha um poder de difusão e persuasão nunca antes visto.

Os diagnósticos de Hannah Arendt e Giovani Sartori foram realizados na segunda metade do século passado, mas possuem uma atualidade evidente e assustadora.

Na era das redes sociais, esse quadro foi potencializado ao extremo e ganhou contornos dramáticos para a política democrática. Nesse mundo das tecnologias digitais pós-massivas (internet, plataformas, aplicativos, redes sociais etc.), o real vem sendo cada vez mais substituído pelo digital, desde as relações humanas até o pensamento político em torno da realidade que o cerca.

Nessa moldura contextual, a fórmula que afirma que “nós escolhemos nosso amor” traveste-se em “nós escolhemos no que acreditar”. E, assim como o sugerido na parábola “da verdade e da mentira”, estamos escolhendo a ilusão limitadora da mentira à realidade da verdade nua e crua, porém libertadora.

Talvez seja esse estímulo comportamental que faz com que políticos se tornem cada vez mais propícios a fazerem uso da mentira como instrumento de ação política, o que demonstra o acerto de Alan Moore e David Lloyd na HQ transformada em filme “V de Vingança”, onde se afirma que “[o]s artistas usam a mentira para revelar a verdade, enquanto os políticos usam a mentira para escondê-la”. Eis o estado da arte na era digital da democracia.

*Adeildo Oliveira é mestre em direito constitucional pela Universidade Federal do Ceará (UFC).

Notas


[i] MELLO, Patrícia Campos. A máquina do ódio: notas de uma repórter sobre fake news e violência digital. São Paulo: Companhia das Letras, 2020, p. 126-130.

[ii] OLIVEIRA, José Adeildo Bezerra de. Economia de dados, capitalismo de vigilância e erosão dos fatos na política democrática. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Programa de Pós-Graduação em Direito, Fortaleza, 2023, p. 28.

[iii] Iyengar, Shanto; Sood, Gaurav; LELKES, Yphtach. Affect, Not Ideology: A Social Identity Perspective on Polarization, 76 Pub. Opin. Q. 405 (2012).

[iv] OLIVEIRA, José Adeildo Bezerra de. Economia de dados, capitalismo de vigilância e erosão dos fatos na política democrática. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Programa de Pós-Graduação em Direito, Fortaleza, 2023.

[v] OLIVEIRA, José Adeildo Bezerra de. Economia de dados, capitalismo de vigilância e erosão dos fatos na política democrática. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Ceará, Faculdade de Direito, Programa de Pós-Graduação em Direito, Fortaleza, 2023, p. 28.

[vi] FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. São Paulo: Penguin Classics e Cia das Letras, 2011.

[vii] ARENDT, Hannah. Crises da República. Trad. José Volkmann. São Paulo: Perspectiva, 2010. p. 15.

[viii] ORWELL, George. Sobre a verdade. Trad. Claudio Alves Marcondes. São Paulo: Companhia das letras, 2020. p. 115.

[ix] BUCCI, Eugênio. Existe democracia sem verdade factual? Barueri: Estação das Letras e Cores, 2019. p. 81.

[x] MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Barueri: Novo Século Editora, 2018. p. 85-6.

[xi] WEBER, Max. Ciência e política: duas vocações. São Paulo: Martin Claret, 2010. p. 108.

[xii] ARENDT, Hannah. Entre passado e futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 312.

[xiii] ARENDT, Hannah. Entre passado e futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2009.

[xiv] ORWELL, George. 1984. Trad. Alexandre Hubner. São Paulo: Cia. das Letras, 2019. p. 77.

[xv] ARENDT, Hannah. Entre passado e futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2009. p. 312.

[xvi] ARENDT, Hannah. Entre passado e futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2009.

[xvii] SARTORI, Giovanni. Homo videns: televisão e pós-pensamento. Bauru: EDUSC, 2001. p. 84.



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