quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025

O GOLPE NA MARCA DO PÊNALTI



O STF pode tirar o Brasil do rol de países que sofreram muitos golpes mas nunca puniram um só golpista

Rafael Mafei

Em novembro passado, quando veio à tona o relatório da Polícia Federal que indiciou Jair Bolsonaro e dezenas de seus aliados por tentativa de golpe de Estado, escrevi na piauí que Paulo Gonet passaria pela maior provação desde que assumiu a Procuradoria-Geral da República, em dezembro de 2023. “Sua atuação nesse caso será a melhor oportunidade para sabermos se o procurador-geral foi forjado no mesmo barro que seu antecessor, Augusto Aras.”

A resposta veio na noite de terça-feira (18). Gonet enviou ao Supremo Tribunal Federal uma denúncia de 270 páginas que endossa as revelações da PF e pede a prisão de 34 investigados, entre eles Bolsonaro. Embora o desfecho ainda não seja claro, a denúncia já é um marco da história brasileira. Se aceita, levará militares e policiais ao banco dos réus para prestar contas às autoridades civis por crimes cometidos contra a democracia, algo que o Brasil nunca foi capaz de fazer. A fartura de provas colhidas leva a crer que, até o final do ano, deixaremos o vergonhoso rol de países que sofreram múltiplos golpes mas nunca puniram um só golpista.

Os 34 denunciados são, em sua maioria, militares. Todos desempenharam, na visão de Gonet, papel relevante no percurso criminal (iter criminis) que se iniciou em março de 2021, momento em que Lula começou a superar seus reveses na Justiça e entrou no páreo da disputa presidencial de 2022. Com a desculpa de que perderia a eleição por uma trapaça, Bolsonaro passou a trapacear antes. Dedicou-se a longas lives, ao menos uma delas transmitida na TV Brasil, em que desacreditava as urnas eletrônicas. Gonet, que chefiou o Ministério Público Eleitoral na eleição de 2022, assistiu de perto à escalada desse discurso. Na denúncia apresentada ontem, assinalou como marco zero da execução do golpe a transmissão ao vivo feita por Bolsonaro em julho de 2021, no Palácio do Planalto, em que o então presidente pôs em dúvida até a eleição de Dilma Rousseff, em 2014.

Considerando o que já havia sido tornado público durante a investigação, a peça acusatória não traz grandes surpresas, exceto talvez por quem ficou de fora. Valdemar Costa Neto, o presidente do PL que apresentou uma contestação fajuta às urnas logo após o segundo turno em 2022, escapou da denúncia, embora tenha sido indiciado pela Polícia Federal. Não é garantia de que sairá ileso: Gonet já disse que não descarta apresentar novas denúncias, e é possível que Costa Neto seja contemplado em uma delas. Mas, como a maior esperança dos bolsonaristas neste momento é a anistia que tentam obter no Congresso Nacional, não se pode descartar que o procurador-geral tenha escolhido poupar, por estratégia, o presidente do partido que tem a maior bancada na Câmara e a segunda maior no Senado.

Bolsonaro foi enquadrado na denúncia como líder, ao lado de Braga Netto, de um grupo que, com o intuito de subverter o resultado das eleições e continuar no poder, praticou os crimes de tentativa de abolição violenta do estado democrático de direito, ⁠⁠golpe de Estado, ⁠⁠dano qualificado pela violência, deterioração de patrimônio tombado e organização criminosa. Somadas, as penas máximas podem passar de quarenta anos de prisão, caso todos os crimes resultem em condenação.

É verdade que penas máximas quase nunca são aplicadas. Nem seria mesmo o caso de aplicá-las a Bolsonaro, pois nem tudo em sua condição ajuda a inflar o cálculo (ele ainda é réu primário, por exemplo). Mas também é verdade que alguns dos condenados pelo 8 de janeiro, peixes miúdos perto do ex-presidente, amargaram penas de 14, 15 e 17 anos. Para não dar margem à alegação de que os invasores estão sendo tratados com dureza desproporcional, a pena aplicada aos seus líderes precisará ser maior.

Para respaldar acusações tão graves, Gonet descreveu as diversas maneiras pelas quais Bolsonaro agiu para viabilizar o golpe de Estado, que, embora não tenha dado certo, foi posto em prática. Em primeiro lugar, o que é fato inconteste, o ex-presidente foi o líder carismático e popular da intentona. Deu o tom do discurso golpista na live de julho de 2021 e, pouco depois, reuniu-se com embaixadores para repetir as mentiras contra as urnas eletrônicas, agora mirando uma audiência planetária. Dali em diante, o Supremo e o ministro Alexandre de Moraes, com quem Bolsonaro vinha se desentendendo desde a pandemia, tornaram-se alvos de uma campanha sistemática de contestação, cujo ato mais emblemático foi o discurso do ex-presidente no Sete de Setembro de 2021 (“Sai, Alexandre de Moraes. Deixa de ser canalha. Deixa de oprimir o povo brasileiro, deixe de censurar o seu povo.”) Bolsonaro, em outras palavras, usou seu capital político e a respeitabilidade do cargo de presidente para desacreditar a Justiça Eleitoral e justificar a virada de mesa que pretendia dar.

Em segundo lugar, perante assessores e demais subordinados, Bolsonaro foi o líder político do golpe. Fixada a tese (jamais comprovada) de que haveria fraude na eleição, o então presidente se cercou de fiéis seguidores que topariam acompanhá-lo no “golpe preventivo”. Vídeos divulgados posteriormente mostram que ele passou a cobrar de seus ministros que atacassem as urnas e deixou claro que não aceitaria uma derrota para Lula. Os mais diligentes, como Filipe Martins (na época, assessor do presidente para assuntos internacionais), redigiram considerandos e textos jurídicos para legitimar atos de força que mantivessem Bolsonaro no poder. Em ao menos uma oportunidade essas peças foram revisadas e chanceladas pelo próprio presidente. A denúncia apresentou provas de que Bolsonaro supervisionava e dirigia o passo a passo do golpe, acompanhando de perto até mesmo suas frentes mais violentas, como o plano “punhal verde amarelo” e a “operação Copa 2022”.

Em terceiro e último lugar, Bolsonaro foi o presidente do golpe. Usou os vastos poderes, cargos e estrutura material do Palácio do Planalto com fins ilegais, segundo a denúncia. Como líder supremo das Forças Armadas, reuniu a cúpula militar para expor o plano de romper com a ordem constitucional; como residente do Palácio da Alvorada, usou seus aposentos para fazer pronunciamentos contra as urnas e sediar reuniões que trataram do golpe; como chefe da administração federal, deu cargos de prestígio a militares dispostos a executar as trapaças, a começar por Mauro Cid; como titular privativo das relações internacionais brasileiras, convocou embaixadores para desacreditar mundialmente o sistema eleitoral brasileiro, tudo em benefício da fraude que pretendia cometer.

Nada disso é especulativo. A Polícia Federal chegou a essas conclusões com base em vídeos, registros de entrada e saída dos palácios, logs de acesso a sistemas, mensagens recuperadas de WhatsApp, arquivos apreendidos em computadores e celulares. Há nisso alguma ironia: Bolsonaro exerceu a Presidência da República se alimentando da ilusão de que as redes e a internet iriam libertá-lo da liturgia do cargo, e, no fim, vieram delas as provas que podem, em breve, levá-lo à prisão.

O Supremo tem sofrido com um grande número de processos politicamente delicados que são de sua competência originária (isto é, que começam e terminam no próprio tribunal). Nessas situações, perde-se a principal vantagem de que as altas cortes desfrutam: receber casos difíceis só depois de uma longa tramitação nas instâncias inferiores, em que os argumentos são depurados e a opinião pública aos poucos amadurece.

A denúncia contra Bolsonaro e seus 33 aliados é mais uma que se soma à lista de processos nascidos no Supremo. Trata-se, no entanto, de um caso excepcional. A maior parte das querelas jurídicas que o tribunal terá de enfrentar já foi debatida à exaustão em processos anteriores, sobretudo depois do 8 de janeiro. Acumulação abusiva de acusações; dosimetria draconiana de penas; competência excessivamente alargada do tribunal; parcialidade do ministro Alexandre de Moraes: todas essas críticas serão, certamente, repisadas pelos advogados de defesa, mas as respostas do Supremo já são conhecidas por todos e não têm dado resultado favorável aos acusados.

O maior desafio que o Supremo terá pela frente é o de fazer com que a maioria dos brasileiros enxergue nos julgamentos o exercício de uma jurisdição justa, técnica e serena, com mais conceitos jurídicos do que adjetivos. Em processos que começam e terminam na última instância, quando não há outro tribunal ao qual os réus possam recorrer, é fundamental que se garanta o amplo direito de defesa. Doze anos atrás, quando o plenário do STF julgou os réus do mensalão, os advogados de todos eles puderam sustentar seus argumentos diante dos ministros e do país, em sessões televisionadas. Com o advento dos julgamentos virtuais, muitos réus condenados recentemente não tiveram essa possibilidade. Não parece uma boa tática para quem precisa convencer o grande público de que ali se faz justiça.


Rafael Mafei



 

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