
Cúpula europeia reunida emergencialmente em Londres em 2 de março de 2025 (Foto: Reuters)
Hoje a realidade copia desavergonhadamente a ficção.
Cristiano Addario de Abreu (*)
Et voici enfin ce que je me permets d'ajouter pour mon compte personnel: Maudites soient les démocraties ploutocratiques qui affament la Russie; je ne suisqu'un vieillard dont l'existence est à la merci de minimes accidents; mais puissè-je,avant de descendre dans la tombe, voir humilier les orgueilleuses démocratiesbourgeoises, aujourd'hui cyniquement triomphantes (1)
Eis que o giro de 180° da política estadunidense, com a eleição do Trump, deixou nua a regressiva colonização política e mental da Europa. Num constrangedor espetáculo de adultos infantilizados, em choque com a realidade esfregada em suas caras, as lideranças tradicionais europeias reagem negando a realidade de forma infantil: e o histórico sequestro da esquerda europeia, desde a Guerra Fria (a primeira...), é central para este ponto chocante hoje alcançado na política europeia. A metáfora orwelliana é cristalina (2) para se entender este processo, usando a obra 1984 como distopia didática. Pois, curiosamente, hoje a realidade copia desavergonhadamente a ficção. Na referida obra a novilígua era a colonização das palavras, logo das ideias, para colocarem as pessoas a serviço dos objetivos do Grande Irmão: na novilígua guerra significava paz, liberdade é escravidão, ignorância é força. A inversão orwelliana aqui invocada explicita perfeitamente o que ocorre na Europa, com a inversão dos valores, das ideias e palavras. O atlantismo otantista corrompeu a conexão da política europeia com a realidade, ao transformarem as palavras em seu oposto, com uma insistência repetida mais de mil vezes, que alcançou a meta de Joseph Goebbels de transformar as mentiras em verdades. A grande crise europeia de 2025 é que com a vitória de Trump ocorre o que ocorria no 1984 quando havia uma mudança de acordos geopolíticos entre Oceania, Eurásia e Lestásia: mudando o tabuleiro da geopolítica, a história tinha que ser reescrita. E é isso que o governo Trump está fazendo, de forma desestabilizadora para o mundo, mas enlouquecedora para a velha Europa.
Contexto e Texto
Historicamente, as forças de esquerda sempre foram tributárias e defensoras do pacifismo. Sendo o apoio do partido social-democrata alemão aos créditos de guerra em 1914 uma virada histórica desta tradição nos partidos de esquerda, que traiu a larga tradição pacifista da esquerda europeia. Os quadros da esquerda que em 1914 seguiram fiéis ao pacifismo internacionalista foram: Lenin, Rosa Luxemburgo, e outros quadros dissidentes da social-democracia histórica, e o de Jean Jaurès no socialismo francês, não por acaso este deputado foi assassinado após seu discurso negando seu voto aos créditos de guerra no parlamento francês. Estes dissidentes pacifistas criariam a Terceira Internacional com Lenin. E a Primeira Guerra comprovaria que a esquerda europeia cometeu uma traição histórica aos seus fundamentos naquele verão europeu de 1914, que custaria até 1945 para ser digerido.
No pós Segunda Guerra a social-democracia europeia aprendeu, depois de muito erro, a força da neutralidade naquele quadro de confronto entre EUA e URSS, cujos casos de Áustria, Finlândia e Suécia foram os mais bem acabados: os 3 países ficaram fora da OTAN, politicamente neutros, construíram desenvolvimentos notáveis por décadas, com pleno emprego, ampla participação democrática, com destacado papel arbitrário internacional, obtido justamente por conta da neutralidade.
Logo, a neutralidade política, e o pacifismo, estão na base do sucesso de maior duração da esquerda europeia (a ocidental) em sua história. E a destruição dessa herança é obra do neoliberalismo, que destrói toda herança do estado de bem-estar social, sobretudo depois de 2008, e destrói além das conquistas sociais, também as conexões lógicas, cognitivas, entre as palavras e as coisas.
Queda do Muro, queda do Equilíbrio
Pois desde a queda do muro de Berlim (1989), que derrubou o “socialismo real” não para o neoliberalismo (como os mistificadores midiáticos repetem eternamente), mas para o “capitalismo renano” que viam do outro lado do muro (3): os alemães orientais olhavam para um capitalismo ultra regulamentado pela hegemonia social-democrata/gaulista da Europa ocidental, que criou uma próspera sociedade de pleno emprego, produtivista e não financista, e com forte cobertura trabalhista e previdenciária universal. Nunca foi o capitalismo neoliberal que seduziu o leste europeu a derrubar o muro, mas sim o modelo de capitalismo altamente regulado, que o neoliberalismo segue buscando destruir! Pois esta desonestidade narrativa imposta pela mídia empresarial, de que o socialismo real do leste europeu, teria sido “vencido” pelo neoliberalismo, é a trilha orwelliana para transformarem o sentido das palavras, para imporem mentiras como verdades, e transformarem “guerra em paz, liberdade em escravidão, ignorância em força”... Pois a memória de curto prazo já é corrompida com esta mentira que imputa ao neoliberalismo a “vitória” sobre o socialismo real do leste europeu. Assim é lógico que não apenas na economia a armadilha orwelliana espreita a realidade, mas nas relações internacionais também: pois o sucesso dos “30 anos gloriosos” da Europa do pós guerra, foi uma experiência econômica social-democrata viabilizada pelo equilíbrio político da época, alavancado pelas forças neutralistas da Escandinávia, e no coração da Europa, pelo gaullismo (que não por acaso chegou a retirar a França da OTAN). Gaullismo este sempre tributário com um nacionalismo popular, mas não fascistizante (como a retirada da manutenção ao colonialismo em 1962 na Argélia demonstrou: De Gaule tentou sim manter a Argélia, mas acabou reconhecendo a marcha inevitável da história, se indispondo com forças da direita que o apoiavam então). De Gaulle é o exemplo da direita que cabe na mesa da esquerda, com seu nacionalismo efetivo, mas sereno, tal figura histórica deve ser aqui lembrada, neste momento em que grande parte da União Europeia acha que pode ignorar uma liderança como Putin na mesa dos destinos planetários...
Pois a guerra narrativa das palavras corrompidas corroendo a história, não só corrompe a memória coletiva do que foi o sucesso econômico europeu do pós guerra (os “30 anos gloriosos), mas corrompe também o sucesso político diplomático, na base daquele sucesso econômico: que foi a neutralidade política! Pois tal tendência a neutralidade foi a base política para o sucesso econômico europeu na segunda metade do século XX.
Claro que nenhuma neutralidade é total, e a Europa ocidental era submetida militarmente ao EUA com a OTAN, mas havia a janela política para uma efetiva neutralidade relativa então, que possibilitou imensos avanços sociais, políticos e humanos. Neutralidade esta que por sinal era a palavra de ordem da política externa dos EUA desde a sua Independência até a Primeira Guerra: tal república sempre primou e cultivou sua independência política e econômica ao máximo por todo o século XIX (4). E numa versão política e diplomática do “chutando a escada” dito por List sobre a economia, toda a política externa dos EUA, depois da II Guerra pelo menos, busca impedir que outros países pratiquem políticas de neutralidade em busca de seus interesses: pois a neutralidade política é imprescindível para o desenvolvimento econômico de longo prazo aos entes semiperiféricos da geopolítica.
Regressão Neocolonial europeia sob a OTAN: destruição da esquerda europeia sob a sombra orwelliana do partido democrata
Pois tal objetivo colonial da política externa dos EUA (“nós ou eles”, “não há neutralidade”...) foi alcançado de forma surreal na Europa da Guerra da Ucrânia: um continente inteiro, continente este que é o berço do capitalismo e das relações geopolíticas mundiais, se atirou na fogueira de acreditar nas mentiras na narrativa neoliberal. Assim a Europa, de sócia menor do imperialismo estadunidense, beneficiária de relativos baixos custos com segurança, se jogou numa guerra perigosíssima com seu vizinho secular: a Rússia, que tem muito mais ogivas nucleares que Inglaterra e França somadas, e seguirá na fronteira europeia, a não ser que o mundo se acabe.
Como tal absurdo foi possível?
Pois as reações dos grupos políticos europeus ao choque de realismo de Trump podem nos dar o fio de Ariadne para sairmos do labirinto dessa história de loucura política europeia. Dom Quixote mostrou os monstros da loucura da Espanha dos Habsburgos, diante da decadência de seu império. Hoje a Europa revela instintos destrutivos diante da emersão de um mundo multipolar, para além de seu jardim imaginário... E a mais bisonha manifestação desta demência e senilidade europeia é dada pelas forças ditas de “esquerda” naquele continente, que como uma “princesa Europa” reclama que seu Zeus americano não a está mais sequestrando: sem pudência alguma, numa síndrome de Estocolmo nostálgica do colonialismo, as lideranças “democráticas” da Europa choram por mais guerra!!!
Há uma Europa, não dos povos, mas das lideranças decrépitas, que chora para ser sequestrada pelo seu Zeus americano, e este a despreza em busca da paz com a Eurásia... que curiosamente é a melhor saída para a própria Europa!
Tal demência coletiva das lideranças europeias claro que tem a irrigação do dinheiro da corrupção dos interesses militaristas, do famigerado complexo industrial militar (bem alojados na França e na Inglaterra), mas é mais complicado que isso, sendo fruto da guerra narrativa neoliberal de longue durée. Pois além de passarem mais de 40 anos repetindo que o neoliberalismo “venceu o socialismo real”, que a associação acéfala à OTAN é a melhor segurança para o mundo... Tal guerra narrativa neoliberal ataca todas as forças políticas que defendam interesses nacionais desenvolvimentistas, quando estes se realizam: como o golpe contra Dilma e a prisão do Lula mostraram quando a política industrial, e de partilha, do Pré-Sal brasileiro era posta em prática por decretos presidenciais. Ou quando Gaddafi fez um fundo lastreado em ouro, e um acordo de abastecimento de gás para a Itália na Líbia. Ou mesmo quando toda e qualquer liderança nacionalista laica do mundo árabe se coloca... Tais nacionalismos causam urticária ao imperialismo, tendo este que os destruir o quanto antes. E eis que é essa a causa do Sr Putin, com todas as suas contradições complicadas e sérios problemas, causar tanto ódio nos centros do poder ocidental: sua continuidade no poder, que permite construções políticas estruturantes, já é um péssimo exemplo para o mundo subdesenvolvido. E contra este, já a tanto tempo, morador do Kremlin, toda uma narrativa de desqualificação foi levantada para criar uma negação do nacionalismo que Putin representaria. O partido democrata dos EUA liderou isso, e num processo de destruição da política europeia, conseguiu fazer na Europa o que busca fazer com o PT no Brasil: transformou (quase) toda esquerda europeia num espelho fosco do partido democrata dos EUA, centrando o eixo destes partidos em agendas race and gender, neoliberais em economia, e ignorando as pautas do trabalhismo, do desenvolvimentismo e do nacionalismo popular.
O infantilismo generalizado transformou o Putin no bicho papão, no maior machista e maior homofóbico do mundo... Enquanto o regime da Arábia Saudita (este sim: que condena à morte as pessoas por homossexualidade!) não causa nenhuma reação mais geral nas esquerdas europeias, pelos seus recorrentes absurdos contra os direitos humanos de homossexuais e mulheres na Arábia Saudita! E assim o discurso fantasmagórico eclipsa a realidade, e a loucura cresce sem peias, sem contrapontos.
Pois o choque de realidade precisa acordar logo a Europa. E ser Trump o desencadeador disso em nada desqualifica o processo em curso: por mais desprezível e perigoso que Trump seja, coerentemente com as estratégias da extrema direita nas redes, que divulgam mentiras com elementos de verdade no meio, a ação dele contra a guerra da Ucrânia tem sido a única coisa verdadeira e positiva de seu governo (no meio de todas as outras frentes enlouquecidas...). E isso precisa ser reconhecido. Inclusive a forma agressiva de declarar a verdade na cara de Zelensky é uma típica estratégia da extrema direita, em sua agressividade anti-política (o que agrada os eleitores deste campo), mas que no caso o texto de Trump é verdadeiro (mesmo que a forma seja podre). Sendo a grande mentira de Trump que os EUA “deram 350 Bi para a Ucrânia”(teria sido 180 Bi...). Mas a verdade sobre a quantidade é eclipsada por outra: é a que deram a quantia para o complexo industrial militar dos EUA ao cabo, e não para a Ucrânia! E isso Zelensky, se fosse um político de verdade e não um espantalho do imperialismo, poderia responder de volta ao Trump. Mas nada disse ele: engoliu as grosserias de Trump, e vai assinar a paz colonial, que fará a Ucrânia entregar todas suas terras raras aos EUA.
E é isso o que a “esquerda” europeia finge não reconhecer, e enlouquece ao encarar: que foi ela partícipe da destruição da Ucrânia, ao nunca ter defendido a “finlandização” da Ucrânia, nunca tendo defendido a neutralidade da Ucrânia (pedida por Putin desde 2007!), mas buscado enfiar a Ucrânia na OTAN, e assim jogou este país no inferno da guerra.
Há neste vácuo da racionalidade política europeia a ascensão da extrema direita, que curiosamente fala em negociar a paz. E de forma cínica os traidores da esquerda (travestidos como esquerda) seguem votando pela continuação dos créditos de guerra para uma Ucrânia, cada vez mais sem população masculina, e fingem que são “pró Ucrânia”, ao defenderem a continuação da fábrica de carne moída do povo ucraniano no altar dos complexos industriais militares.
Pois na verdade os que defendem a continuação da guerra nada têm de esquerda! E não defendem o povo ucraniano: defendem apenas os complexos industriais militares, defendem a indústria da guerra, e o partido da guerra eterna, centrado na City londrina. A “esquerda” que seguir defendendo a guerra de devastação da Ucrânia, simplesmente, não é mais de esquerda. E se a extrema direita defende a paz na Ucrânia ela, neste ponto, estará com os povos do mundo, mesmo que em tudo o mais sejam anti povo.
Ser de esquerda é ser anti guerra na Ucrânia primeiramente. E o jogo de espelhos entre democratas (dos EUA) e Trump, para destruir a esquerda europeia é um jogo de pensamento complexo sujo, que precisa ser visto na longue durée, e que rebaixou a Europa a um espantalho de seu passado, reduzida agora a uma Desunião Europeia: com uma Polônia visceralmente anti-russa, militarizada e empoderada, enquanto os centros tradicionais da Europa (Paris e Berlim) seguem perdidos, e a capital histórica do neoliberalismo (Londres) segue manipulando. É sintomático que tenha sido em Londres, capital deste país que abandonou a União Europeia, a sede do encontro “europeu” do partido da guerra, para seguirem alimentando os complexos industriais militares, com o sangue do povo ucraniano.
Como sabia De Gaulle, a Inglaterra é o cavalo de Tróia da União Europeia. E este 51° estado da Oceania orwelliana segue sendo estratégico para impedir a união da Eurásia prevista por Orwell. Assim o jogo de War segue com uma Oceania integrada, uma Lestásia em ascensão, e uma Eurásia rachada, sangrando nas terras negras da Ucrânia.
NotasSOREL, Georges. Réflexions sur la violence, 1908. Paris: Marcel Rivière et Cie. pg 204Orwell, George. 1984. Editora Companhia das Letras, 2009.https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8137/tde-11082023-125212/pt-br.php Pg 91, 97, 173, 178.
(*) Cristiano Addario de Abreu é Doutor em Economia
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