
Eleitores celebram vitória da esquerda em Paris 7/7/2024 (Foto: Abdul Saboor/Reuters)
Ser realista de esquerda implica reconhecer que há novas formas de expressar opiniões políticas, novas narrativas, novos repertórios que não cabem nos manuais
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A questão da relação entre realismo e política é muito antiga e é universalmente válida. Mas os termos da discussão variam de país para país. Só em alguns é que a política está estruturada entre esquerda e direita com graus diferentes tanto de uma como de outra. No início da década de 1980, na ressaca do levante de Maio de 1968, da permanência das ditaduras no continente latino-americano e do início da ascensão do neoliberalismo como versão dominante do capitalismo, um dos temas mais debatidos pela esquerda na Europa e na América Latina foi a questão do realismo: o que é ser realista em política? Muito se escreveu sobre o tema. Um dos livros coletivos mais notáveis foi escrito por grandes cientistas sociais latino-americanos hoje quase esquecidos: Que es el realismo en política? (1987, Buenos Aires), organizado por Norberto Lechner, com textos do próprio e de Franz Hinkelammert, Angel Flisfisch, Gabriel Cohn, Ludolfo Paramio, Oscar Landi e Regis de Castro Andrade. Não foram apenas os autores que foram esquecidos, foram igualmente esquecidas as ideias de um debate de alta qualidade. Embora formulada em geral, a questão do realismo centrava-se nas políticas de esquerda e tinha em mente o momento político do tempo. Passaram quarenta anos, os tempos e os momentos políticos são outros, mas a questão do realismo na política, sobretudo na política de esquerda, permanece e, por isso, vale a pena voltar a ele.
A questão do realismo pressupõe uma certa distância entre a política e a ética, entre a teoria e a prática, entre o ideal e o real, entre a coerência e o êxito, entre o desejável e o possível, entre o acontecimento e a duração. Para Maquiavel, ser realista era aceitar a maldade humana, a distância entre o que se diz e o que se faz. E Max Weber não anda longe disso ao afirmar que a política obriga a disfarçar uma mera questão de poder sob a capa das convicções puras e logicamente concluía que quem quisesse salvar a alma não devia entrar na política. Estas e outras concepções de realismo tendem a ser conservadoras porque obrigam a um taticismo sem princípios e justificam um status quo injusto. Este é o realismo próprio da direita. À luz dele, a esquerda terá necessariamente de ser irrealista. Nos anos de 1980-1990 o Partido dos Verdes na Alemanha viveu um conflito interno muito profundo entre os fundamentalistas (fundis) e os realistas (realos). Enquanto os primeiros eram partidários de uma ecologia profunda ou do eco-socialismo e opunham-se a qualquer cooperação com o governo, os segundos, liderados por Joschka Fischer, eram mais moderados e eram adeptos de entrar para o governo. Esta última posição prevaleceu e, em minha opinião, acabou por sucumbir ao realismo de direita.
Há, pois, que inquirir o que pode ser hoje o realismo como qualidade e não defeito da esquerda. Considero defeito toda a concepção de realismo que conduza à confusão da esquerda com a direita. Se, em meu entender, o Partido dos Verdes alemão é um caso de realismo de esquerda como defeito, já o Partido Die Linke (a Esquerda) é um caso de realismo de esquerda como qualidade. O seu programa e a sua prática são bem a demonstração disso mesmo. (https://www.die-linke.de/bundestagswahl-2025/wahlprogramm/)
1 - O realismo da esquerda não pode dispensar a utopia. Sobretudo hoje, um tempo histórico conservador, devorador de todas as bandeiras da esquerda, que promove o conformismo e o ressentimento como virtudes, a esquerda tem de partir da ideia de que o real não é racional. Só tendo uma concepção do impossível se pode distinguir entre o possível autorizado (repetição do status quo) e o possível não autorizado (a antecipação das possibilidades emergentes que ameaçam o status quo, mas são permitidas pelas condições materiais, políticas e culturais). Por outras palavras, a esquerda tem de ser utópica, uma utopia que seja a referência última para o que é possível num dado momento histórico e é requerido como transição ascendente. Considero transição ascendente toda a política que confirme e aprofunde a diferença entre a esquerda e a direita. O importante é ir confirmando e aprofundando essa diferença sabendo que o ideal nunca se atinge. Quem só pensa no ideal pode parecer um iluminado, mas é cego. Quem perde de vista o horizonte desiste de caminhar.
2 -A utopia é o bem viver ou viver saborosamente. Trata-se de uma ideia dos povos originários dos diferentes continentes traduzida criticamente e atualizada para o nosso tempo. Depois de cinco séculos da acumulação de riqueza de alguns à custa do empobrecimento de muitos, da imposição de um único sistema de conhecimento válido, da entronização da humanidade, tratando parte dela como sub-humana e tratando a natureza como um recurso infinita e incondicionalmente disponível, bem viver ou viver saborosamente deve significar justiça social, econômica, cultural e epistêmica, dignificação e celebração da vida humana e não humana (a natureza não nos pertence; nós é que pertencemos à natureza), promoção de comportamentos cooperativos como alternativa a comportamentos competitivos. É uma utopia simultaneamente global e contextual. Numas regiões do mundo esta utopia chamar-se-á socialismo/comunismo, noutras buen vivir, sumak kawsay, suma qamaña, ubuntu, swaraj, habiter la terre poetiquement, Noflaay, etc.
3 - Os conceitos de "bem viver" ou de "viver saborosamente" devem substituir os conceitos de desenvolvimento e de sustentabilidade, os quais devem a prazo desaparecer do vocabulário político de esquerda. O conceito de desenvolvimento é o nome que os vencedores da história deram à acumulação capitalista infinita. O conceito de sustentabilidade foi inventado para manter a prevalência do conceito de desenvolvimento, dando-lhe um verniz de moderação assentado na ideia, também gravada na paisagem e na vida das pessoas, de que o que se destrói vale menos do que aquilo que se constrói sobre as suas ruínas. Sustentável é o mais recente adjetivo para legitimar o desenvolvimento. Antes dele, usaram-se outros adjetivos sempre com o mesmo fim, tais como desenvolvimento humano ou desenvolvimento integral. O adjetivo sempre proibido nos discursos oficiais é o adjetivo com que o desenvolvimento foi batizado para sempre na modernidade ocidental capitalista e colonialista: o adjetivo "infinito" e, por arrastamento, progresso e bondade. A proibição do adjetivo implica a proibição das perguntas sobre tudo o que está relacionado com ele. Tais como: houve progressos; mas houve Progresso, com P grande? Progresso para quê e para benefício de quem? Bondade oposta a que maldade? Quem tem poder para definir o que é progresso e determinar a sua bondade?
Ao contrário do desenvolvimento e da sustentabilidade, os conceitos de "bem viver" ou "viver saborosamente" assentam na ideia de que a natureza tem direitos e que, se não os respeitarmos, as piores consequências recairão nas gerações futuras. Viver em harmonia com a natureza nada tem a ver com o conservacionismo new age. Tem a ver com uma relação com a natureza como se ela fosse nossa mãe: aprendermos com ela e irmos para além dela sem nunca a desrespeitarmos.
4 - Realismo implica mediações e transições. Ser realista de esquerda implica espacializar-se não só em transições ascendentes como em mediações inclusivas. As mediações inclusivas são as que dão razões a mais sujeitos privados para se tornarem sujeitos políticos interessados em processos de democratização das instituições, das relações sociais e das relações dos humanos com a natureza. Os processos de democratização implicam sempre um movimento de monoculturas (de poder, de saber, de sentir e de agir) para ecologias e uma sábia gestão das diferentes temporalidades sociais. Arriscam-se a antecipar o futuro mesmo sabendo que o futuro é imprevisível.
5 - Ser realista de esquerda significa partir do princípio de que, na sua configuração atual, os partidos de esquerda são obsoletos. São máquinas eleitorais, interclassistas, tal como os partidos de direita, e, tal como estes, desprezam o aprofundamento da democracia. Este desprezo, que é fundamental para os partidos de direita, é fatal para os partidos de esquerda. Para serem pilares da democracia representativa, de que a esquerda é hoje garante, os partidos de esquerda têm de ser internamente geridos segundo os princípios da democracia participativa. Só assim serão partidos-movimento.
6 - Ser realista de esquerda implica reconhecer que a esquerda institucionalizada perdeu a juventude. Ao contrário do que geralmente se julga, nem toda a juventude está dominada pelo conformismo e pelo narcisismo. Com boas razões, os jovens de hoje não se mobilizam por partidos, mas por causas. E muitas vezes, são causas a que a esquerda institucionalizada não dá grande relevo. Na última década, os jovens europeus mobilizaram-se contra o colapso ecológico. Em tempos mais recentes, os jovens norte-americanos e de outros países mobilizaram-se contra o genocídio de Gaza, os jovens moçambicanos, contra possíveis fraudes eleitorais, os jovens gregos e os jovens sérvios, contra a corrupção, os jovens senegaleses, contra a corrupção e o desrespeito pela diversidade cultural, os jovens colombianos, contra a guerra, pelo direito à educação e pelo direito à terra. Na maioria dos casos, a esquerda institucionalizada ou os ignorou ou aderiu tardia e oportunisticamente.
7 - Ser realista de esquerda implica reconhecer que há novas formas de expressar opiniões políticas, novas narrativas, novos repertórios que não cabem nos manuais de atuação política. Os jovens senegaleses distinguiram-se pelo recurso ao rap para expressar a sua revolta. As minorias marginalizadas das periferias urbanas usam uma linguagem religiosa que a esquerda tem dificuldade em acomodar dada a sua tradição laica ou mesmo anti-religiosa. Os jovens colombianos de Cali inventaram novas formas de criação artística e de educação comunitária. Bloquearam estradas de maneira inovadora, não destrutiva nem violenta, mas antes criativa e pedagógica. Fazer comida para alimentar os jovens revoltosos (as cozinhas comunitárias) foi um ato revolucionário.
8 - Ser realista de esquerda significa que a esquerda tem de ter um pé nas instituições e um pé nas comunidades empobrecidas e marginalizadas; tem de ter um pé dentro do Estado e um pé fora do Estado. Isto significa que participar em eleições é apenas uma pequena parte do trabalho político de esquerda. E a esquerda pode mesmo estar preparada para, em certas circunstâncias, não participar em eleições nem disputar o poder político autorizado pelas elites. A tragédia da esquerda foi não entender que, quando a esquerda passou a respeitar as instituições, a direita passou a desrespeitá-las.
9 - Ser realista de esquerda significa conhecer o campo de interação em que se move e lutar sempre por relações de reciprocidade que contribuam para democratizar tanto as instituições como as subjetividades. Não há democracia, há uma luta constante entre processos de democratização e processos de desdemocratização. As forças políticas de esquerda têm de ser vigilantes para não se equivocarem sobre o campo em que estão nessa luta, sobretudo num tempo em que os processos de desdemocratização são dominantes. Ganhar eleições graças a processos de desdemocratização é o caminho mais curto para o suicídio da esquerda. Desdemocratização significa tudo o que favorece sistematicamente os ricos e empobrece as maiorias já empobrecidas; tudo o que agride violentamente a natureza; tudo o que prevalece exclusivamente graças à pós-verdade algorítmica; toda a ostentação da riqueza como forma de ocultar a miséria; toda a participação democrática concentrada no que é menos relevante para o bem-estar das populações empobrecidas; toda a concentração da gestão política na gestão de crises. Democratizar os mínimos é o mesmo que minimizar a democracia. Governar permanentemente em crise é congelar as oportunidades emergentes.
10 - Ser realista de esquerda é reconhecer que as novas tecnologias de informação e comunicação, as redes sociais e a inteligência artificial, vão destruir a prazo a democracia tal como a conhecemos. O próprio Estado pode desaparecer tal como o conhecemos. O desaparecimento gradual do Estado é precisamente uma das bandeiras da esquerda de que a extrema-direita se apropriou e procura agora realizar por via da inteligência artificial. A verdade da pós-verdade reside na pornográfica nudez com que se exibe e na estonteante rapidez com que se difunde. Estamos a entrar num tempo em que as ficções/mentiras produzem mais efeitos políticos que a realidade/verdade. A utopia como referência última de que falei atrás é fundamental para que a luta pelo que virá depois seja uma democracia de tipo novo e não uma ditadura de tipo novo, a hipótese atualmente mais provável.
11 - Ser realista de esquerda é saber voltar às origens com originalidade. Voltar às origens com originalidade significa transformar o passado reprimido ou por cumprir em tarefa de futuro. É saber, por exemplo, que no princípio da resistência anticolonial e anticapitalista não havia cartilhas, nem manuais, nem receitas de atuação política. Havia diversidade cultural e diversidade de vocabulários política. Havia conversas, organização comunitária, presencialidade e educação popular. Os anarquistas, tão demonizados ao longo do século XX, foram os que mais cedo viram que a educação popular era uma fundamental arma de luta. Até hoje, na maioria dos países, a esquerda esteve mais tempo na oposição do que no governo. O tempo de oposição começou por ser um tempo de reflexão, de difusão de ideias, de organização, de promoção de experiências sociais de bem-estar à margem do Estado (um patrimônio hoje apropriado pelas igrejas). Nas condições do nosso tempo as universidades populares e a Universidade Popular dos Movimentos Sociais (http://www.universidadepopular.org/site/pages/pt/em-destaque.php), por mim proposta no Fórum Social Mundial de 2003, hoje espalhada por vários países, podem ser poderosos instrumentos de educação política emancipatória.
12 - Ser realista de esquerda é ter um pé na interação digital e um pé na presencialidade. O pé na interação digital é um pé-travão contra o triunfalismo que impede ver os limites da utilidade e assinalar os perigos que corremos se ultrapassarmos tais limites. O pé da presencialidade é o pé da educação popular onde os seres humanos aprendem a ter relações de confiança e a partilhar riscos. Como já hoje começa a ser evidente, ser de esquerda no futuro vai envolver muitos riscos pessoais. Só a educação popular pode ensinar a resistir. Toda a outra educação ensinará a desistir, a conformar-se, a autocensurar-se, a pensar apenas o já pensado e autorizado. A uberização do aconselhamento psicológico portátil visa legitimar o conformismo, o narcisismo, a desistência e, finalmente, conceber a diferença com indiferença (e, no pior dos casos, como ameaça).
13 - Ser realista de esquerda é reconhecer que o pior perigo da esquerda não vem das armadilhas que a direita lhe lança, mas das armadilhas que ela própria tece no seu interior. No momento em que a extrema-direita está no poder em vários países e é o segundo maior partido no país da maior economia da Europa (a Alemanha), a esquerda institucionalizada ou se une ou desaparece a médio prazo. Mesmo a curto prazo é possível antever duas tragédias no horizonte, na Bolívia (entre Evo Morales e Luis Arce) e na Espanha (entre Sumar e Podemos). Um vírus que vem de longe, e para o qual não se encontrou uma vacina até agora, reside no fato de a esquerda ser mais exuberante em alimentar divisões entre si do que divisões com a direita. Por isso, pode ser facilmente infiltrada pela direita ou servir de idiota útil da direita. O identitarismo neoliberal transformou-se na mais recente autofagia da esquerda.
14 - O realista de esquerda arrisca-se a ser incompreendido por dois tipos de parceiros de esquerda. Será considerado irrealista para aqueles que julgam que não se pode pensar senão o que é possível fazer com autorização do status quo. E será considerado conformista para aqueles que pensam que ser de esquerda é pensar o impossível. O realista de esquerda sabe que o possível e o impossível são um todo dialético: o possível está delimitado por aquilo que em cada momento se considera impossível. O realista de esquerda luta pelo impossível para poder ampliar o possível não autorizado, a transição ascendente. Suspeito que estamos a entrar num período em que esta luta terá de ser feita cada vez mais fora das instituições do que dentro delas. O movimento dos líderes e militantes de esquerda terá de ser invertido: em vez de transitarem das ruas e das comunidades para os parlamentos, transitarem dos parlamentos para as ruas e as comunidades.
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