“Lamento desiludir os racistas
disfarçados, mas a selvageria não é exclusiva de nenhuma religião, coexiste bem
com todas”
Crônica de Nuno Ramos de Almeida
| Imagem: gravura medieval, autoria desconhecida / http://outraspalavras.net/
Estava em Florença durante o
primeiro Fórum Social Europeu, em 2002. Na altura, a jornalista Oriana Fallaci
fez um texto em que comparava o encontro dos militantes alter-globalização com
a marcha dos camisas negras de Mussolini. Afirmava-se disposta a defender a sua
cidade e impedir, mesmo dando a vida, a chegada a Florença desses selvagens.
“Ouçam-me com atenção. Não apunhalo pelas costas. Luto abertamente para impedir
este absurdo [o Fórum] e vou à luta. Florença não é Porto Alegre [cidade berço
do Fórum Social Mundial], apesar das atrocidade cometidas todos os dias pelos
filhos de Alá, a cidade é o testemunho vivo da nossa cultura, as suas belezas
não estão apenas em museus de Florença, mas em cada estátua e pedra da cidade.
Há um século e meio uma horda vinda de Livorno também veio fazer o seu ‘fórum’
[...] mudaram-se para a Piazza Santa Maria Novella, a Via Tornabuoni, a Piazza
della Signoria, a Cidade Velha e permaneceram por lá mais de um mês para
destruir, devastar, bater e mijar nos monumentos”, escrevia a santa senhora no
“Corriere della Sera”.
Apesar da moderada previsão, mais
de 100 mil ativistas participaram nos seus trabalhos, que foram encerrados com
uma manifestação gigantesca, de um milhão de pessoas, contra a anunciada
invasão do Iraque.
No dia da manifestação, o
comércio, receoso dos selvagens, cobriu as vitrines de tapumes. No fim dos
desfiles, sem uma única vidraça partida ou loja saqueada, vi uma discreta
inscrição deixada por um dos ativistas num tapume de madeira que guardava um
oculista: “Tens de mudar de ponto de vista.”
A mártir da cidade permaneceu
sadia que nem um pera e, apesar dos antropófagos, o fórum decorreu, tranquilo,
sem a sombra dos seus superpoderes. Na altura, a estimável jornalista, que já
tinha visto melhores dias, acabava de lançar um livro intitulado La rabbia e
l’orgoglio, em que profetizava a invasão da Europa pelas hordas sujas de
muçulmanos boçais.
A Europa estava a transformar-se
na “Eurabia”, povoada de seres inferiores com uma religião selvagem, que
acabavam sempre a mijar nas igrejas de Florença (uma fixação repetida em vários
textos). “Um muezzin exortava pontualmente os fiéis à oração, incomodando os
infiéis e sufocando o som dos sinos. Junto a tudo isso, o cheiro da urina
profanava o mármore do Battistero (têm o apêndice longo esses filhos de Alá,
mas como faziam para atingir o monumento quase a dois metros do seu aparelho
urinário?)”, interrogava-se a criatura.
Com menos ou mais mijo, este
discurso da guerra das civilizações foi o pano de fundo ideológico que
justificou a guerra total contra o terrorismo e a invasão do Iraque. Mais de
dez anos depois está na altura de fazer o balanço. O fundamentalismo não é uma
reação vinda do antigamente, é um fenômeno moderno. Foi alimentado pelo
dinheiros dos sauditas, que pregam a versão xenófoba do islã com os seus
milhões, e sobretudo criada pelo ódio, pelo desespero e pelo ressentimento.
Ditaduras corruptas, algumas cúmplices dos EUA, e os bombardeios são os
profetas do fundamentalismo. Lamento desiludir os racistas disfarçados, mas a
selvageria não é exclusiva de nenhuma religião, coexiste bem com todas. Os
franceses mataram milhões na Argélia. Os nazis exterminaram 6 milhões de judeus
e não consta que fossem muçulmanos. Os sérvios e croatas que assassinaram à vez
os bósnios eram ortodoxos e católicos e as vítimas eram populações muçulmanas.
A maravilhosa cultura dos clássicos gregos que chamamos base da nossa
civilização foi salva por árabes muçulmanos enquanto a nossa inquisição se
entretinha a queimar os seus manuscritos nos intervalos de queimar judeus.
Os bandos fundamentalistas
sunitas do ISIS prosperam, depois da destruição das ditaduras laicas corridas
com ajuda do Ocidente, financiados pelo maior aliado dos Estados Unidos, a
Arábia Saudita, e a sua expansão deve-se à prévia destruição das suas
sociedades pelo despotismo e os mísseis dos EUA.
No deserto onde nasceram as
grandes religiões, o céu vê-se melhor. As estrelas parecem ter várias dimensões
e texturas. Mas os homens e mulheres sofrem de injustiças dificilmente
resolvidas na história dos seres humanos. Nos campos de refugiados do Saara
Ocidental, vegetam ao sol quase 200 mil pessoas, há dezenas de anos. A
comunidade internacional esqueceu-as e fecha os olhos à opressão marroquina. O
desespero muda as pessoas e as sociedades. Os sarauís são majoritariamente
berberes, as mulheres são tradicionalmente emancipadas. Foi aí que conheci
Mohamed Moulud, o fotógrafo que nos anos 70 seguiu a revolta do deserto com uma
máquina fotográfica numa mão e uma AK-47 na outra. Os registos mostram
raparigas de cabelo ao vento com as camisas abertas e decotadas, a combater com
os homens em igualdade. Fui duas vezes ao campos da Polisario, com dez anos de
intervalo. A última foi há quatro anos. Impressionou-me o número crescente de
mulheres tapadas e de madrassas pagas pelo dinheiro saudita. Os sarauís como os
palestinos são dos povos mais laicos da região. O seu fundamentalismo é
alimentado por injustiças, desespero, bombardeios e dinheiro sujo do petróleo.
Cabe-nos a nós escolher um mundo
mais justo ou apostar nas ideias que sustentam a miséria do povo árabe e
justificam as guerras. No mundo há apenas homens e mulheres iguais a todos, com
direito a uma vida decente.
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