por José Augusto
Fontoura Costa e Gilberto Bercovici, especial para o Viomundo
Recente parecer da
Advocacia Geral da União (AGU) interpreta a Lei 12.772/12 de modo a impedir que
as Universidades Federais exijam, nos concursos públicos para ingresso na
carreira, títulos de mestre e doutor. Tal leitura, equivocada, desfigura a
autonomia constitucionalmente garantida às Universidades e pode reduzir a
precisão dos processos seletivos, levando à inclusão de fases inadequadas para
a boa escolha de professores.
Há quase um milênio
se convive com as universidades. Nasceram antes dos modernos Estados nacionais
e, mesmo na América, antecedem em pelo menos mais de cem anos as independências
políticas de quase todos os países– com a precedência da peruana San Marcos
(1550). No Brasil, dado o zelo metropolitano em manter a submissão intelectual,
o ensino superior teve de esperar a família real, antecedendo-a por alguns
dias. Universidade mesmo, só no século vinte.
Embora a relação
entre essas instituições e o Estado tenha variado histórica e geograficamente,
o normal, sempre e em todo o mundo, é a determinação dos cursos, programas,
projetos de pesquisa e, evidentemente, escolha de professores seja feita de
maneira autônoma.
Diga-se, a propósito,
que a memória da ingerência externa é invariavelmente triste. Em nosso país,
dada a origem das primeiras e das principais escolas, a proximidade com o poder
público é significativa, mas a consciência da necessidade de um ensino superior
independente e sua proteção jurídica são muito recentes.
Embora as
constituições de 1946 (Arts. 168, VI e 171) e 1967 (Arts. 168, VII e 172)
falassem de liberdade de cátedra, bem como em ciências, letras e artes livres,
foi só em 1988 (Art. 207) que a autonomia universitária e a indissociabilidade
entre ensino, pesquisa e extensão fizeram sua estreia.
Assim, respondendo a
lutas e reivindicações históricas, o Constituinte pôs, com eficácia plena e
aplicabilidade imediata, as decisões em matéria didático-científica,
administrativa e de gestão financeira e patrimonial nas mãos das Universidades.
Não é que se possa
fazer qualquer coisa. Autonomia não é soberania. Há limites constitucionais e,
especificamente, o dever de proporcionar não apenas o ensino, mas realizar
pesquisa e atividades de extensão. São tarefas que as universidades, quando
devidamente equipadas, com corpos docente e discente capacitados e preparados,
realizam naturalmente.
Mesmo que com
vocações e preferências diversas, os verdadeiros professores sabem que só pode
ensinar bem aquele que consegue se mover com familiaridade e segurança nas
fronteiras do conhecimento, o que só é proporcionado pela pesquisa de ponta. Do
mesmo modo, a sociedade apenas pode receber os benefícios do fazer educacional
se os projetos desenvolvidos têm qualidade e arrojo suficientes para
impulsionar todos a novas atitudes, novas técnicas e ampliar a consciência da
cidadania.
Disso tudo, há
tarefas que o bacharel ou licenciado podem cumprir. Outras, apenas podem ser
levadas a cabo por doutores que são, por excelência, os componentes típicos dos
quadros docentes das instituições de ensino superior de todo o mundo.
Doutores passam por
um intenso e exigente processo de treinamento em pesquisa, que permite a pronta
identificação dos assuntos relevantes e das técnicas a serem utilizadas; só
isso coloca os professores no limiar da descoberta científica e inovação
técnica. Sem eles, desfalece a pesquisa e o ensino se limita à mera declamação
dos manuais. Isso, apesar do que possa imaginar a AGU, é muito pouco, é uma
visão medíocre e distorcida de universidade.
Tão pouco que a
própria Lei de Diretrizes e Bases da Educação estabelece o mínimo de um terço
de mestres e doutores como corpo docente para que a instituição possa ser uma
Universidade. É o mínimo.
As estaduais
paulistas, por exemplo, exigem que todos os ingressantes na carreira detenham
titulação de doutor. Baixar tanto o nível de exigência parece, infelizmente,
dar eco à percepção de que a democratização do ensino superior deve ser
acompanhada da perda de qualidade.
Ampliar o acesso é
necessário e urgente, mas isso só tem sentido histórico e social se realizado
com vistas à excelência e a partir das decisões tomadas em plenas condições de
autonomia universitária.
Há, portanto, algo de
amarga ironia no texto do parecer da AGU: a menção de que se trata de uma
interpretação sistemática, como se tivesse sido realizada com “boa técnica”. No
caso, porém, o técnico se comportou como um lacaio da literalidade estreita; só
assim se pode ler em “será exigido o diploma de curso superior em nível de
graduação” (Lei 12.772/12) como “as universidades (entidades
constitucionalmente autônomas e que atuam a partir da indissociabilidade entre
ensino, pesquisa e extensão, devendo, nos termos da lei, ter seu corpo docente
composto por um mínimo de um terço de mestres e doutores) não podem exigir
mestrado ou doutorado como requisitos de ingresso”.
A lei não estabelece
nenhuma proibição expressa: como se interpreta restringindo, portanto, a
autonomia, que é mais que a discricionariedade? Não se fala “só será exigido”,
mas se estabelece um padrão mínimo razoável em um país onde as desconfortáveis
desigualdades regionais não permitem a todos os mesmos luxos de São Paulo. Não
é padrão máximo, qualquer um que tenha o mínimo de experiência universitária vê
isso.
Espera-se que não se
perceba o óbvio tarde demais, como, na guerra civil espanhola, quando o
filósofo Miguel de Unamuno viu seu templo do saber profanado pelos fascistas de
Millán-Astray e os brados do paradoxal “viva la muerte”. A noção de
ensino, pesquisa e extensão de elevada qualidade sem que as universidades
possam escolher contratar mestres e doutores é, pelo menos, tão contraditório
quanto.
José Augusto Fontoura
Costa, professor da Faculdade de Direito da USP.
Gilberto Bercovici,
professor titular da Faculdade de Direito da USP.
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