Os interesses do
grande capital internacional e da fração da burguesia brasileira a ele
completamente integrada, representados pelo PSDB, encontraram uma base de apoio
no Brasil. Essa base não é “a classe média”. A parte majoritária da classe
média apoia a política neodesenvolvimentista dos governos do PT. Essa base de
apoio é a fração superior da classe média brasileira, a alta classe média. Em
termos eleitorais, não é muito e vem daí as agruras do PSDB
I
Muitos analistas e
observadores políticos têm escrito que o PSDB representa a classe média. Será
verdade?
É meritório colocar a
questão de saber quais setores sociais um determinado partido político
representa. Tal questão poderá parecer óbvia para alguns, mas ela não o é para
a maioria dos que escrevem sobre os partidos políticos. Nas universidades, os
cientistas políticos analisam os partidos de maneira formalista. São consideradas
sua estrutura interna e seu papel no sistema partidário sempre isolando a vida
do partido da estrutura social e econômica da sociedade.
Esse enfoque, que
omite a questão da função representativa dos partidos, é praticado pelos
neoinstitucionalistas, corrente amplamente hegemônica na Ciência Política
contemporânea. Ainda nas universidades e também nos jornalões, a questão é
omitida inclusive por outras razões.
Os articulistas que
se apresentam como conhecedores da política brasileira se deixam iludir pelo
discurso dos próprios partidos. Apegam-se à superfície desse discurso e tomam
ao pé da letra suas proclamações de princípios e de intenções bem como suas
declarações de ocasião. O resultado é que o exame rigoroso da representação
partidária é deixado de lado.
Os partidos políticos
representam, no geral e de modo complexo e flexível, interesses de classe e de
frações de classe sociais. Partindo desse ponto, voltamos à pergunta: os
tucanos representam a classe média?
II
No fundamental, a
resposta é não, não representam. Como tentei argumentar em texto escrito
anteriormente para o Brasil de Fato, o PSDB representa o grande
capital internacional – financeiro e produtivo – e a fração da burguesia
brasileira subsumida a esse capital.
A plataforma do PSDB,
como tentei então mostrar, sistematiza e representa os interesses desse setor
da classe dominante. Ao dizer isso, não me refiro às declarações genéricas
desse partido, que é, como a de muitos outros, a “construção de um país mais
próspero e mais justo”.
Refiro-me, isto sim,
ao elenco de medidas práticas que esse partido defende, nas linhas ou nas
entrelinhas dos seus documentos e nas manifestações de seus líderes, e que ele
de fato aplica quando está no poder: controle rigoroso e por meios ortodoxos do
processo inflacionário, taxa de juro elevada, câmbio estável e apreciado,
redução dos gastos públicos com investimentos, com o funcionalismo e com
programas sociais – mas não com a rolagem da dívida interna – e a retomada do
programa de privatizações e da reforma trabalhista.
Indiquei, ainda no
referido artigo, como é possível visualizar, por detrás dessas propostas, os
interesses inconfessáveis – posto que contemplam uma restrita minoria – do
grande capital internacional e da fração da burguesia brasileira a ele
integrada. O PSDB tem sido, pelo menos até o presente, o principal partido
político desse setor da classe dominante.
Se o PSDB fosse o
partido da classe média, seríamos obrigados a concluir que essa classe social
controlou o poder governamental durante os governos FHC e teria, então,
dirigido o processo de implantação do modelo capitalista neoliberal no Brasil.
Ora, não seria difícil demonstrar que não foi essa classe social, tão vasta e
heterogênea, a grande beneficiária da desregulamentação do mercado de trabalho,
da redução dos direitos sociais, das privatizações, da abertura comercial e
financeira da década de 1990.
Contudo, numa
dimensão que não é a fundamental embora seja também importante, o que se pode
dizer a respeito da relação do PSDB com a classe média é que esse partido tem
como base social mais ampla um setor da classe média. Esse setor não dirige o
partido, mas oferece-lhe apoio ativo. A ação do partido deve, por isso,
contemplar alguns interesses desse setor social, mesmo que não os priorize.
Mas, atenção: é
apenas uma parte da classe média, a sua camada superior, que serve de base
social para esse partido burguês e neoliberal. A classe média é demasiado
heterogênea e raramente intervém unificada no processo político.
Podemos resumir
assim: o PSDB representa os interesses do grande capital internacional e da
fração da burguesia brasileira completamente integrada a esse capital e se
apoia na alta classe média. Ou, dito de outro modo, o grande capital
internacional dirige o PSDB enquanto a alta classe média tem, de maneira
secundária, alguns dos seus interesses atendidos por esse partido [1].
A baixa classe média
e mesmo a classe média remediada – camada intermediária e inferior do
funcionalismo público, trabalhadores de escritório, comerciários e outros – têm
votado preferencialmente em partidos como o PT. É certo que a divisão entre a
parte superior, intermediária e inferior da classe média não é uma separação
nítida, mas ela indica tendências efetivamente atuantes.
III
Para comprovar
afirmações como essas seriam necessárias pesquisas mais amplas do que as que
temos disponíveis. Porém, os mapas eleitorais de uma cidade como São Paulo são
expressivos indicadores da procedência do que dissemos acima.
Nos bairros burgueses
e de alta classe média, a população tem votado, de maneira amplamente
majoritária, nos candidatos do PSDB, enquanto nos bairros onde habitam a classe
média empobrecida e remediada, o proletariado e os trabalhadores da massa
marginal, nesses últimos, o PT colhe a esmagadora maioria dos votos.
Para citar casos
extremos mas significativos, no segundo turno da eleição para a prefeitura de
São Paulo em 2012, o candidato do PT chegou a ter mais de 80% dos votos em
bairros da Zona Leste e da Zona Sul da cidade, enquanto o candidato do PSDB
atingiu a mesma marca nos Jardins.
Por que a alta classe
média apoia o partido do grande capital internacional propiciando-lhe, ainda,
alguma força eleitoral? As razões são de ordem econômica e ideológica.
Desde a década de
1990, quando serviu de “base de massa” para a ofensiva neoliberal dirigida pelo
imperialismo e pela grande burguesia, a alta classe média convenceu-se de que
os direitos sociais representam, para ela, custos sem retorno.
É verdade que parte
da classe operária também embarcou nessa canoa – basta lembrarmos a atuação da
Força Sindical naquele período e as vitórias de Fernando Henrique Cardoso em
1994 e 1998. Mas os trabalhadores o fizeram por razões distintas daquelas que
moviam a alta classe média e, de resto, descobriram, em poucos anos, que tinham
embarcado numa canoa furada.
No caso das famílias
de alta classe média, elas mantiveram a sua posição. Os profissionais liberais
bem sucedidos, os ocupantes de cargos de direção e administrativos nas empresas
privadas, o alto funcionalismo público e outros setores que integram a fração
superior da classe média não queriam e não querem saber de ensino ou de saúde
pública – salvo quando a instituição pública é privilégio deles próprios, como
ainda é o caso de algumas universidades públicas.
No geral, as famílias
de alta classe média preferem os serviços privados que são, nos fatos ou na
fantasia, de melhor qualidade e que, não menos importante, permite que elas e
seus filhos se mantenham separados da população pobre. Ora, o neoliberalismo
prometia isso: suprimir e reduzir direitos sociais acenando com uma correlata
redução dos impostos.
Os governos do PT,
tanto Lula quanto Dilma, embora não tenham rompido com o capitalismo
neoliberal, têm uma política social distinta daquela da década de 1990. Em
muitos aspectos, essa política contraria os interesses e as disposições
ideológicas da alta classe média.
Tais governos criaram
o Bolsa Família, fortaleceram o Benefício de Prestação Continuada, suspenderam
as ameaças que pairavam sobre a aposentadoria rural, implantaram uma política
de reajuste real do salário mínimo e deram guarida à lei que estende os
direitos trabalhistas às empregadas domésticas.
Circunstância
agravante: tais governos estimularam um ataque em regra à reserva de mercado
que, informalmente, a alta classe média detinha de grande parte das vagas
oferecidas pelas universidades públicas. Todos pudemos ver a disposição com a
qual os intelectuais, professores e estudantes desse setor social combateram e
combatem a política de quotas racial e social.
Nesse ponto,
evidencia-se a maneira concreta como o conflito de classes articula-se com a
luta contra o racismo no Brasil atual. A política de quota racial e social
favorece a população de baixa renda, onde predominam os egressos de escola
pública e onde é grande a presença de afrodescendentes, mas prejudica a alta
classe média que detinha uma reserva do mercado em grande parte do ensino
superior público e que é na sua quase totalidade composta por indivíduos
socialmente definidos como brancos.
Ainda agora, neste
primeiro semestre de 2013, o governo tucano de Geraldo Alckmin, sentindo-se
acossado, faz acrobacias as mais variadas para manter a USP, a Unesp e a
Unicamp fora do regime de quotas.
O discurso
meritocrático, ideologia funcional para os interesses da alta classe média, foi
ativado contra a democratização – pequena, de resto – que se está verificando
no acesso ao ensino superior. Só esse discurso diante da política de quotas já
mereceria um exame à parte. Ele nos revelaria muita coisa sobre o que quer e
como age a alta classe média tucana.
No plano político, os
governos Lula e Dilma têm reconhecido, para o desgosto da alta classe média, as
organizações e movimentos do campo operário e popular, em contraste com os
governos tucanos que os ignoravam ou os criminalizavam. O Governo Lula
reconheceu as centrais sindicais, criou fóruns para sua participação, recebeu o
MST, a Contag e os sem-teto.
O Governo Dilma,
principalmente no período mais recente, tem feito algo parecido. É verdade que
ambos fizeram ouvidos moucos para as reivindicações mais sentidas desses
movimentos. As reivindicações históricas e recentes mais importantes do
movimento sindical – política de reposição automática das perdas salariais
provocadas pela inflação, jornada de 40 horas, regulamentação da terceirização
e outras – foram ignoradas. A reforma agrária foi posta de lado.
Contudo, quando
estudamos a história recente do Brasil, podemos verificar que a fração superior
da classe média é particularmente hostil a governos que reconheçam o direito
dos setores populares se organizarem e apresentarem suas reivindicações.
O problema, aqui, é
político e simbólico. Político, porque a alta classe média pressente o perigo –
hoje, eles são convidados no Palácio do Planalto, amanhã poderão ambicionar
serem os anfitriões; simbólico, porque o espaço dito público, onde se pratica o
jogo político, deveria, de acordo com o elitismo meritocrático desse setor,
permanecer um espaço reservado aos diplomados. Basta recordar o epíteto de
ignorante com o qual os bem-nascidos – mas muito malcriados – estigmatizam os
políticos de origem popular.
Os interesses do
grande capital internacional e da fração da burguesia brasileira a ele
completamente integrada, representados pelo PSDB, encontraram uma base de apoio
no Brasil. Essa base não é “a classe média”. A parte majoritária da classe
média apoia a política neodesenvolvimentista dos governos do PT. Essa base de
apoio é a fração superior da classe média brasileira, a alta classe média. Em termos
eleitorais, não é muito e em daí as agruras do PSDB.
[1] Há algumas diferenças
entre a alta classe média inserida no setor público e a que está no setor
privado, mas, para efeito deste texto, podemos deixar isso de lado.
Armando Boito Jr. é professor de Ciência
Política da Unicamp
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